Do Direito de Ação
Autor | Rodrigo Klippel |
Páginas | 203-288 |
CAPÍTULO 5
DO DIREITO DE AÇÃO
1. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE AÇÃO
O desenvolvimento do direito processual civil sempre seguiu de perto a evolu-
ção da concepção do direito de ação, que é peça primordial no mecanismo de tutela
dos direitos.
Isso porque, não obstante seja o cumprimento das normas de conduta a regra
para as sociedades, a não observância destas é dado relevante, devendo ser coibida
de forma severa, impedindo que a proliferação da desobediência ponha por terra a
paz social. A validade do direito está ligada a um mínimo de eficácia social.1 Por isso
o direito também deve voltar sua atenção para a reversão das lesões ou ameaças de
lesão aos direitos que fazem parte do patrimônio pessoal dos sujeitos, sem o que a
norma jurídica seria uma mera retórica vazia.2
Justamente o método eleito para que os indivíduos possam pleitear a tutela (pro-
teção) de suas posições de vantagem em face de outros é o acionamento do Estado
para que seja exercitada a função jurisdicional.
Tem-se o direito de ação, portanto, como instituto essencial na dinâmica do
direito, como forma fidedigna de restaurar seu império quando sua simples “ameaça
potencial” tiver falhado. O direito de ação é mecanismo diretamente ligado à transição
do direito de sua forma estática à dinâmica.
Mas como se pode definir “o que é direito de ação”? Qual o seu fundamento? Ao
longo do tempo, muitas foram as tentativas de resposta às perguntas acima formula-
das e a outras que circundam o tema. Teorizou-se muito sobre o direito de ação, que
talvez tenha sido o instituto de direito processual ao qual mais se tenham dedicado
estudos científicos.
As principais teorias que visaram a explicar o direito de ação estão expostas abai-
xo. Sobre elas, desde logo, cabe repisar as sábias palavras de Moacyr Amaral Santos:
Já reconheceu Mortara, com aplausos de Siqueira Ferreira, que em todas as teorias há um fundo
parcial de verdade, cumprindo recolher e condensar o melhor suco de cada uma.3
1. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. 2 tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 11 e ss.
2. Vide sobre essa perspectiva SATTA, Salvatore. Diritto processuale civile. 13 ed. Padova: Cedam, 2000, p. 130.
Importante notar, no entanto, que Satta era monista.
3. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. v. I. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1992,
p. 152.
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TEORIA GERAL DO PROCESSO & TEORIA DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO • RODRIGO KLIPPEL
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Complementando a ideia, Podetti4 traz que o problema da natureza da ação
“constitui uma verdadeira emboscada para o jurista que pretende dar soluções de-
finitivas (tradução livre)”.
A construção das teorias mais modernas sobre o direito de ação não prescindiu
– nem poderia tê-lo feito – das conclusões de pesquisas prévias, que, no mínimo,
serviram de ponto de partida para a formulação de críticas que propiciaram o desen-
volvimento científico atual.
Em outros casos, foi verdadeiramente a união de concepções antagônicas que
produziu uma nova teoria – uma dialética que gerou, por exemplo, a Teoria Eclética
de Liebman, que recebe este nome por representar uma concepção intermediária
entre as teorias concretistas e abstratistas, que serão abordadas logo em seguida.
Para dar ao leitor uma visão mais ampla desse desenvolvimento, facilitando sua
compreensão do porquê da existência, hoje em lei, de algumas das teorias ao longo
dos séculos formuladas, passa-se à análise daquelas que mais repercussão e alcance
obtiveram.
2. TEORIA IMANENTISTA
A primeira das teorias da ação que geralmente se estuda é a chamada Teoria
Imanentista, ou Teoria Civilista da Ação. Seja qual for a designação utilizada, ela muito
diz sobre o conteúdo que carrega.
Segundo seus defensores, o direito de ação é algo imanente, característica pró-
pria do direito material lesado. É seu aspecto dinâmico, ou seja, o direito de ação é o
direito material, num segundo estágio, após o seu inicial descumprimento.
Clarificando: o fundamento do direito de ação, para os imanentistas, é o próprio
direito material violado. A ação não é nada diferente deste. É simplesmente o direito
reagindo contra sua lesão.5 O direito armado para a guerra, em seu aspecto dinâmico.
Observe o seguinte exemplo: para os imanentistas, o direito de João receber de
José o carro que comprou do último teria dois estágios:
a) um estático, correspondente à formulação da norma primária, em cujo con-
sequente se encontra a relação jurídica na qual está inserido o seu direito de
receber o veículo que comprou;
b) um dinâmico, chamado de direito de ação, correspondente ao direito de
exigir a entrega do bem diante da violação de seu direito, que se trata do
consequente da norma secundária.
Graficamente, a concepção imanentista de direito de ação seria a seguinte:
4. PODETTI, Ramiro. Teoria y tecnica del proceso civil. Buenos Aires: Ediar, 1963, p. 364. No original: “cons-
tituye una verdadera emboscada para el jurista que intenta dar soluciones definitivas”.
5. Vide BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 21-22.
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Capítulo 5 • Do DIREIto DE aÇÃo
NORMA JURÍDICA PRIMÁRIA
Se → José recebeu de João R$ 20.000,00 pela compra do veículo X
Deve → entregar o veículo
NORMA JURÍDICA SECUNDÁRIA
(para os imanentistas, o direito de ação)
Se José não entregou o veículo X
Deve ser → coativamente obrigado a fazê-lo
Em suma, para os imanentistas, o direito de ação nada mais é do que um estágio
do direito material, referente à norma secundária decorrente do descumprimento
da norma primária, como já estudamos no Capítulo 3 deste livro, lembra? Não há
diferença entre direito material e direito de ação. Observem, já se analisando a questão
à luz da teoria do fato jurídico, que o direito material e o direito de ação são efeitos
do mesmo fato jurídico lato sensu (o negócio jurídico de compra e venda do carro).
O que os imanentistas pretendem dizer pode ser explicado por meio de mais um
exemplo: imagine que Arlindo, ao chegar em sua fazenda, perceba que ela foi invadida.
O ato de invasão criou uma relação jurídica entre ele e os invasores, a partir da qual
surge seu direito subjetivo de reaver o que lhe foi tomado. Para exercer tal direito,
vai ao Judiciário e ajuíza uma ação possessória. Para os imanentistas, quando Arlin-
do se dirige ao Estado-juiz para requerer a proteção ao seu alegado direito material,
não se cria uma nova relação jurídica entre o autor e o Estado, diferente do vínculo
de direito material. O que se tem é a continuação da relação de direito material, que
agora também envolveria o Estado, e que somente chegou a esse estágio por causa
da lesão provocada pelos invasores.
É o direito de ação, portanto, mero apêndice ou qualidade do direito material
lesado, só surgindo quando se verifica a mencionada lesão. O maior defensor dessa
teoria foi o romanista alemão Savigny, que inicialmente desenvolveu a doutrina
exposta.6
A essa ideia também deu desenvolvimento a doutrina francesa, como dá nota
Eduardo Couture, que, lecionando sobre as respostas que os juristas franceses apre-
sentavam sobre o tema, apontava que “a ação é o direito em movimento, algo assim
como uma manifestação dinâmica. Nenhuma diferença substancial pode ser apon-
tada entre direito e ação. E Demolombe ensinava que quando a lei fala em ‘direitos e
ações’, incorre em pleonasmo”.7
Tendo sido a ação estudada pelo direito civil por longo lapso de tempo, por in-
fluência da ideia civilista apregoada por Savigny e pela doutrina francesa em especial,
6. GOMES, Fábio. Carência de ação. São Paulo: RT, 1999, p. 20.
7. COUTURE, Eduardo Juan. Introdução ao estudo do processo civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 6.
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