Do domínio autoritário militar para a democracia constitucional: uma visão geral das políticas de direitos humanos através da redemocratização brasileira

AutorUlisses Terto Neto
CargoAdvogado e Pesquisador do Centro para Estudos de Cidadania, Sociedade Civil e Estado Democrático de Direito (CISRUL, University of Aberdeen, UK). Doutor em Direito (University of Aberdeen, UK), com bolsa da CAPES, Mestre em Políticas Publicas (UFMA, Brasil), com bolsa do CNPq.
Páginas215-252
Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 23, n. 2, p. 198-236, mai./ago., de 2018
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progresso material linear) é considerado um direito humano, assim como a ascensão
individual, a acumulação de capital e a apropriação/mercantilização dos recursos
naturais, podemos afirmar que os chamados direitos do (ao) meio ambiente servem
apenas para mitigar alguns dos efeitos da crescente produção de bens e serviços, da
crescente degradação ambiental e da extremamente assimétrica distribuição dos
recursos. É necessário, portanto, pensar a relação da humanidade com o entorno
natural desde outros paradigmas.
Chegamos então a um dos mais sórdidos paradoxos intrínsecos das
perspectivas dominantes, raras vezes discutido a sério: se a generalização desse
modo de vida é insustentável (pois requereria vários planetas, como já argumentei) e
conduz à uma progressiva precarização das condições necessárias para a produção e
reprodução da vida humana, como conservar o modo de vida ocidental, os ideais de
progresso e crescimento econômico infinito e simultaneamente preservar as
mínimas condições para a sobrevivência da espécie humana? Pelo menos três
principais “opções” emergem desse paradoxo: 1) ignorar o problema, não fazer nada e
esperar passivamente a que o planeta chegue ao seu colapso (uma opção, mesmo que
inconscientemente, suicida, genocida, ecocida e epistemicida); 2) reduzir deliberada e
significativamente a população mundial para tornar o capitalismo ecologicamente
sustentável para os “sobreviventes”, através da consequente redução quantitativa do
consumo e da produção (uma opção “apenas” genocida e epistemicida); e 3) superar o
capitalismo e defender um reparto igualitário, consciente e um uso sustentável dos
recursos existentes entre todos os seres humanos (uma opção “humanista” e
“ambientalista”, ou seja, uma opção pela vida).
Desafortunadamente, por mais óbvia que possa parecer, a terceira opção é a
menos aceita pelas perspectivas teóricas e práticas dominantes, que são capazes de
elaborar distintas e criativas explicações para justificar a compatibilidade do modo de
vida consumista e da ideia de crescimento econômico infinito com a preservação do
meio ambiente, renunciando à realidade sempre que a mesma seja inconveniente
14.
14 Nesse sentido, são amplamente difundidos e incentivados estudos “científicos” que compatibilizam o
crescimento econômico com a preservação do meio ambiente, como a absurda “curva ambiental”
derivada da proposição de Simon Kuznets (1955), quem – não por casualidade – foi ganhador do
Prêmio Nobel de Economia de 1971. Segundo essa “teoria”, o crescimento econômico não só é
compatível com a preservação do meio ambiente, mas consiste na sua única forma de salvação. Os
defensores da curva de Kuznets sustentam que a relação entre estas duas variáveis (renda per capita e
degradação ambiental) desenha um “U invertido”, de modo que, conforme aumenta o crescimento
econômico, a degradação ambiental aumenta apenas até um certo ponto, até que se chegue a um
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A COLONIZAÇÃO DAS UTOPIAS E OUTRAS CONSEQUÊNCIAS...
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Conforme explica David Sánchez Rubio (2013, p. 158): “Se sacrifica a realidad e a favor
de uma teoria ou instituição e se acaba por eliminar os contextos, as relações
humanas, a espacialidade e a temporalidade dos problemas e as mesmas condições
de existência das pessoas”. Por essa razão, o economista José Maria Cabo (2002)
definiu a ciência econômica dominante como “a ciência da renúncia”.
Se, como bons defensores dos direitos humanos realmente existentes
(burgueses), rechaçamos as soluções que impliquem na superação do capitalismo
para não renunciar às suas liberdades individuais abstratas e ilimitadas, mas também,
por outro lado, recusamos as soluções abertamente genocidas (como as que sugerem
reduzir drástica e compulsoriamente a população mundial), ao fim e ao cabo, o único
que resta são as opções suicidas: deixar tudo como está e seguir aliviando a
consciência através da mitigação de alguns efeitos da catástrofe ambiental, por mais
que o dissimulemos. No entanto, a opção suicida é também, a curto prazo, genocida,
porque condena milhões de seres humanos à miséria. A morte dos excluídos do
sistema, seja por fome, seja pela falta de condições mínimas de sobrevivência
(consequência inevitável do capitalismo), é tão definitiva e cruel quanto a morte nos
campos de concentração. Ambos genocídios obedecem a critérios arbitrários, estando
o racial tão presente no genocídio capitalista como no nazista.
Se, desde logo, recusamos a tais “soluções” racistas e insistimos em apostar
pelo reconhecimento da “humanidade” (ou da “dignidade”, se se prefere) de todos os
seres humanos por igual, convém encarar o problema de frente. Neste sentido, é
fundamental desacoplar o conceito de economia do de capitalismo (MIGNOLO, 2008),
para construir uma economia e uma ciência econômica focada nas necessidades
da vida (HINKELAMMERT; MORA JIMÉNEZ, 2005), e não da expansão do capital; que
possa satisfazer as necessidades concretas de todos os seres humanos (e não
determinado nível de desenvolvimento a partir do qual começa a diminuir, em função de fatores como a
inovação tecnológica, a terciarização da atividade econômica, o aumento do nível educativo e da
“consciência ecológica”, etc. Os defensores desta hipótese, para “comprová-la”, argumentam que o nível
de contaminação dos países “desenvolvidos” é inferior ao dos países “subdesenvolvidos”, mas ignoram
o fato de que isso se deve – em grande medida – à deslocalização industrial (que possibilita a mesma
terciarização das economias “desenvolvidas”) e ao fato de que o próprio “desenvolvimento” dos países
“desenvolvidos” (antigas metrópoles) foi e segue sendo – financiado historicamente pela exploração
dos recursos naturais e humanos dos países “subdesenvolvidos” (antigas colônias) e baseado em
relações comerciais, econôm icas, financeiras, políticas, culturais e militares assimétricas. Ademais, o
modelo de análise de Kuznets foi elaborado considerando determinados tipos de gases contaminantes,
mas desconsiderando outros e “não considera a perda da biodiversidade e outros fenômenos
irreversíveis, assim como a possibilidade de que os danos ambientais impactem os níveis de produção”
(DE CASTRO LEJARRIAGA, 2009, p. 107, tradução minha),
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produzir mais necessidades); uma economia que administre a escassez, e não a
produza; uma economia pautada pela colaboração e solidariedade, e não pela
competição e egoísmo.
Uma proposta de direitos humanos e democracia coerente com a manutenção
das bases necessárias para a produção e reprodução da vida humana deve, portanto,
passar primeiramente pela deslegitimação do imaginário econômico (CABO, 2004)
neoclássico/neoliberal desenvolvimentista (RIST, 2002) e globalizador imposto pelo
Ocidente e predominante no mundo. Não se trata de defender uma única alternativa
particular para substituir o modelo imposto pelo Ocidente, mas de apostar nas mais
diversas, plurais e criativas estratégias de sobrevivência individuais e coletivas que
representam opções ao pensamento dominante, na medida em que sejam compatíveis
com a existência simultânea a não dominadora das demais. O ponto de confluência de
uma proposta pluriversal é o rechaço a todas as formas de relação baseadas na
dominação, na exploração e na inferiorização de uns seres humanos por outros e no
combate às práticas sociais e discursos que justifiquem ou naturalizem a apropriação
exclusiva, a mercantilização e a acumulação dos recursos naturais, da terra e dos
meios de produção, além de todas as formas, não apenas as ocidentais, de relacionar-
nos com a natureza que representem ameaças às condições de produção e
reprodução da vida humana neste planeta.
7. NATURALIZAÇÃO DE UM MODELO DE DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
QUE TENDE A SER CONTROLADO PELO PODER ECONÔMICO
A ideia de democracia liberal e representativa que se impôs como hegemônica
a nível mundial pode ser definida como um conjunto de normas e procedimentos
formais que possibilitam a designação de representantes em eleições competitivas,
com a presença de diferentes partidos políticos em um ambiente demarcado pelas
liberdades individuais abstratas e pela igualdade formal. Materialmente, a democracia
liberal está vinculada aos valores patrimonialistas (ROITMAN, 2011) e ao
individualismo metodológico engendrados desde modernidade/colonialidade ocidental.
Esses valores são resguardados pelo reconhecimento a priori da validade das já
mencionadas liberdades e garantias individuais abstratas, cujo exercício efetivo

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