Do Ético ao Poiético: uma comparação entre o dito e o não dito nas Reformas (de Estado) Trabalhista e Previdenciária

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas184-197

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1. Introdução

São Paulo, 30 de maio de 2017. Reunidos em um requintado hotel cinco estrelas do principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América do Sul, um grupo de políticos da ala governista, inclusive o próprio Michel Temer (PMDB/SP), então Presidente da República, além de vários empresários e acadêmicos representantes do mainstream econômico, buscavam – como diriam os profissionais de marketing – vender a imagem de um Brasil como um dos países mais atraentes e seguros do mundo para se investir. Era o primeiro dia do “Fórum de Investimentos Brasil 2017”. Tomando a palavra, o Deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), atual Presidente da Câmara dos Deputados, sem maiores evasivas, assim se pronunciou: “[...] a Câmara vai manter a defesa da agenda do mercado”2.

A razão da afirmação é explicada, entre outros motivos, pelo profundo comprometimento da classe política presente no evento em se aprovar as Reformas Trabalhista e Previdenciária, já que, àquela época, embora ainda não convoladas em regras jurídicas, tramitavam a todo vapor. A primeira, já aprovada na Câmara, encontrava-se passando pela primeira Comissão do Senado a emitir parecer – a Comissão de Assuntos Econômicos3

–, e a segunda, por mais que ainda na Câmara dos Deputados – a Casa Iniciadora do processo legislativo –, estava já bastante adiantada na Comissão Especial criada para discuti-la, dependendo apenas da votação do Parecer ali apresentado4.

Afinal, a aprovação das reformas, além de ser um dos assuntos da Sessão Especial daquele fórum, abordado no painel intitulado “Ambiente Internacional e Econômico e Reformas no Brasil” – que teve início após a abertura do evento e foi proferido pelo Ministro do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Dyogo Oliveira e pelo Ministro da Fazenda Henrique Meirelles –, também fazia parte da estratégia governista para a construção de um cenário de “previsibilidade e [...] sustentabilidade dos investimentos estrangeiros”5, seguramente, um dos itens da “agenda do mercado”, referida na fala anterior do Presidente da Câmara dos Deputados.

Desafortunadamente, segundo entendemos, no momento em que escrevemos o presente ensaio, a Reforma Trabalhista deixou de ser um mero projeto e se converteu na Lei n. 13.467, sancionada sem vetos em 13 de julho de 2017, publicada no dia seguinte no Diário Oficial da União e com entrada em vigor marcada para ocorrer em 10 de novembro desse mesmo ano6. Quanto à Reforma Previdenciária, como se trata de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), portanto, de tramitação mais complexa e dificultosa que a primeira, e, por conta do recente agravamento da crise política que assola o país, encontra-se estacionada na mesma comissão em que se encontrava quando da realização do evento acima referido – na Comissão Especial da Câmara dos Deputados –, mesmo após ter sido votado o Parecer ali prolatado.

Especificamente no que concerne à Reforma Trabalhista, conforme dissemos, conquanto já exaurido o processo legislativo que antecedeu sua entrada no ordenamento jurídico, tencionamos, neste trabalho, resgatar uma das etapas de sua tramitação – falamos do momento em que, já no Senado

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Federal, apresentou-se o Substitutivo de autoria do Senador Ricardo Ferraço (PSDB/ES), seu relator na Comissão de Assuntos Econômicos daquela Casa.

O objetivo, ao se retomar a mens legislatoris da lei que aprovou a Reforma Trabalhista, é justamente procurar compreender a força simbólica e as relações de poder significados naquele texto a ser analisado, ainda que tais elementos dali não transpareçam de forma tão cristalina. Não porque nos coloquemos caudatários da já desgastada concepção subjetivista de interpretação do direito, que buscava o sentido da lei na vontade do legislador histórico e não nela própria7 – até porque sabemos dos graves problemas hermenêuticos decorrentes da referida orientação teórica8 –, mas porque julgamos relevante, neste momento, reunir argumentos para demonstrar as pós-verdades9 que foram massivamente exploradas, pela grande mídia, pelos acadêmicos alinhados ao mainstream econômico, por parte considerável do empresariado nacional e pelos parlamentares da base governista para naturalizar as inúmeras iniquidades e injustiças perpetradas por essa reforma.

Quanto à Reforma Previdenciária também recorreremos ao mesmo expediente, analisando o texto da justificativa da proposta de emenda à constituição, assinado pelo Ministro da Fazenda Henrique Meirelles. Tudo para que possamos comparar as reformas e, ao fim, demonstrar que ambas se articulam na materialização de um único sentido: o de implementação da lógica ultraliberal no Brasil.

Sendo este um fenômeno de cooptação do Estado brasileiro, adequado enxergá-lo sob as lentes de Joaquim Carlos Salgado, que brilhantemente desenvolveu a tese do chamado Estado poiético. Já que a referida tese será tomada como marco teórico de nossa investigação, propomo-nos a examiná-la a partir da revisão bibliográfica de alguns dos escritos do jusfilósofo mineiro e de outros juristas dedicados ao estudo de sua teoria.

Antes, contudo, é mais que conveniente justificar a escolha dos textos de nossa análise, o que faremos a partir da adequada contextualização dos momentos em que foram produzidos ao longo do processo de tramitação de cada uma das reformas.

2. Identificando o corpus do estudo

Conforme expusemos anteriormente, enquanto a Reforma Trabalhista já se convolou em lei, pendente esta de entrada em vigor, a Reforma Previdenciária, até o momento em que redigimos este ensaio, encontra-se estacionada na Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados para analisá-la.

Como se sabe, no que concerne à Reforma Trabalhista, esta teve início na Câmara dos Deputados em 23 de dezembro de 2016, por meio da apresentação do Projeto de Lei (PL) 6787/2016, pelo Poder Executivo10. Neste primeiro momento, a pretensão de mudança nas regras de regulação das relações de trabalho eram ainda bastante tímidas. Tanto que o projeto de lei em questão objetivava modificar a redação de apenas 4 dispositivos da CLT – 3 dos quais de Direito do Trabalho e 1, de Direito Processual do Trabalho –, além da criação e inserção na CLT de 3 novos dispositivos de Direito Material11. Além dos dispositivos projetados, o projeto de lei ainda contava, como justificativa, com alguns parcos argumentos apresentados pelo Ministro do Trabalho, o Deputado Ronaldo Nogueira de Oliveira (PTB/RS) – tão poucos que não valeria o esforço de analisá-los.

Ainda no âmbito da Casa Iniciadora do processo legislativo, criada a Comissão Especial, o PL 6787/2016 foi à mesma destinado em 09 de fevereiro de 2017. Em 12 de abril do mesmo ano, o Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB/RN), Relator do projeto naquela Comissão, surpreendeu ao apresentar um Substituto que ampliava sobremaneira o objeto da reforma. Neste momento, desnaturou-se a proposta originária do Poder Executivo e a Reforma Trabalhista passou a objetivar a modificação de 34 dispositivos de Direito Material e 18 dispositivos de Direito Processual, além da criação e inserção na CLT de 33 novos dispositivos de Direito Material e 11, de Direito Processual.

Um ponto ilustrativo dessa surpreendente mudança concerne, só para ficarmos com um exemplo, ao contrato de trabalho intermitente, que, embora sequer contido na

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primeira versão da Reforma Trabalhista encaminhada pelo Poder Executivo, restou previsto nesta segunda versão – e, após todo o trâmite legislativo, mantida na atual redação da lei que, infelizmente, a consagrou. Trata-se o instituto de uma nova figura contratual, prevista a par das modalidade contratuais já existentes: o contrato por prazo indeterminado, o contrato a prazo e o contrato de experiência – estes três regulados pela CLT –, além do contrato a prazo da Lei n. 9.601/1998 e do contrato temporário previsto na Lei n. 6.019/1974. Segundo a novel previsão normativa, o contrato de trabalho intermitente será aquele em que, independentemente do tipo de atividade do empregado ou do empregador, a prestação de serviços, com subordinação, não será contínua, ocorrendo com alter-nância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados ambos em horas, dias ou meses.

Sem ter a pretensão de esgotar a análise do novo instituto – até porque, este não é o objetivo do presente escrito –, a conceituação acima apresentada é suficiente para denotar o estrondoso abalo causado em vários dos alicerces teóricos do Direito do Trabalho. Em primeiro lugar, por obliterar a não eventualidade como elemento fático-jurídico da relação de emprego, acabando por conceber uma verdadeira aporia para o Direito do Trabalho brasileiro: a figura do empregado contratado por meio desta modalidade, que, a bem da verdade, será eventual e que, no entanto, para ser caracterizado como empregado, não poderia ser eventual. E, em segundo lugar, por romper frontal-mente com o conceito de empregador, que, a partir da utilização do mencionado contrato, transferirá os riscos da atividade econômica ao empregado, sujeitando a prestação de serviços à existência de demanda. Isto porque os períodos de inativi-dade, em que o empregado restará aguardando a convocação ao trabalho, não serão considerados tempos à disposição do empregador e, por isso, não serão por ele remunerados12.

E foi com esta nova formulação – bastante próxima à redação consagrada na Lei n. 13.467/201713 – que, aprovada na Câmara, a Reforma Trabalhista chegou ao Senado, sendo lá renumerado como Projeto de Lei da Câmara (PLC) 38/2017.

Precisamente nesta Casa Legislativa, em sua passagem pela primeira Comissão permanente a que deveria se...

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