Do mito do trabalho por amor à luta pela dignidade e reconhecimento do trabalho doméstico no Brasil: diálogo com a interseccionalidade entre raça e gênero

AutorAdriana Avelar Alves
Ocupação do AutorGraduada em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Páginas302-318
CAPÍTULO 20
(1) Graduada em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Mestra em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista pesquisadora do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA). Pesquisadora integrante dos Grupos de Pesquisa Direito, Justiça e Pluralismo Étnico Racial, da Universidade Fe-
deral Fluminense (UFF/CNPq) e Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq).
(2) PEREIRA, Ana Claudia Jaquetto. Intelectuais negras brasileiras: horizontes políticos. Belo Horizonte: Letramento, 2019. p.171.
Do Mito do Trabalho por Amor à Luta pela Dignidade e
Reconhecimento do Trabalho Doméstico no Brasil:
Diálogo com a Interseccionalidade entre Raça e Gênero
ADRIANA AVELAR ALVES
(1)
Resumo: Este trabalho pretende resgatar a dignidade como princípio informador do trabalho doméstico no Brasil. Para tanto,
necessário breve recorte histórico sobre a luta pela visibilidade e remuneração do trabalho doméstico no Brasil, por meio das
mulheres negras que protagonizaram esta luta desde o ano de 1936 até a Constituição Federal de 1988, pelo reconhecimento
deste trabalho e igualdade de tratamento político e jurídico ao mesmo. Ainda, por meio da interseccionalidade entre raça e gê-
nero, paradigma teórico apto a balizar a discussão com o princípio do trabalho digno, tratar-se-á da problematização de como
o trabalho doméstico foi (e é) desempenhado no Brasil, e como o Estado Democrático de Direito e as instituições do sistema de
justiça– especialmente a Justiça do Trabalho– foram instrumentos de viabilização de tutela e proteção dessas trabalhadoras. Por
fim, necessário percurso jurídico do contrato doméstico no Brasil até a Lei Complementar n.150, de 1º de junho de 2015 (conheci-
da como a Lei das Domésticas) e os desafios atuais da proteção do trabalho doméstico frente à Reforma Trabalhista será realizado,
de modo que se evidencie que, embora a categoria do trabalho doméstico tenha conquistado direitos historicamente negados, a
luta dessas mulheres segue em permanente militância e resistência, para que estes não sejam retirados ou precarizados.
Palavras-chave: Trabalho Doméstico. Interseccionalidade. Raça. Gênero.
Abstract: This paper aims to recover the dignity as the informing principle of the domestic labor in Brazil. Therefore, it is necessary
a brief historical cut about the struggle for visibility and remuneration of domestic labor in Brazil, by the black women who were
the protagonists of this fight since 1936 until the National Constitution of 1988, for the recognition and equality of treatment of
this job in the political and legal scope. Still, through the intersectionality between race and gender, research paradigm able to
guide the discussion with the principle of decent work, it will deal with the problematization of how domestic labor was (and is)
performed in Brazil, and how the Democratic State of Law and the institutions of the justice system– especially the Labor Court–
were instruments for the custody and protection of these workers. Finally, the necessary legal path from the domestic contract in
Brazil to the complementary law 150/2015 (known as the Housekeepers Law) and the current challenges of protecting domestic
work from the Labor Reform will be done, so that it is clear that while the category of domestic labor has conquered historically
denied rights, their fight continues, in permanent militancy and resistance, so that their rights are not violated or removed.
Keywords: Domestic Labor. Intersectionality. Race. Gender.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho doméstico no Brasil tem raça, classe e
gênero, “os dois primeiros enquanto dimensões priori-
tárias nas estruturas de poder, e de gênero enquanto
qualificador das experiências dos diferentes grupos
inscritos nessa estrutura”(2).
Este texto parte da dimensão interseccional entre
esses três elementos para pensar o trabalho domésti-
Do Mito do Trabalho por Amor à Luta pela Dignidade e Reconhecimento do Trabalho Doméstico no Brasil
Capítulo 20
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co no Brasil, que já conta com valiosos estudos acerca
da questão, e que serão citados ao longo da escrita, de
modo a dialogar não somente do ponto de vista econô-
mico do trabalho realizado por essas mulheres– princi-
palmente mulheres negras– mas, sobretudo, sobre os
feitos realizados por elas na ação política por cidadania
e garantia de direitos.
E aqui cabe destacar que a escolha pela escrita no
gênero feminino, ou seja, dizer que o trabalho domés-
tico é uma atividade realizada pelas mulheres, decorre,
como será demonstrado nos capítulos, que é uma área
do mercado de trabalho que ainda concentra uma mão
de obra majoritariamente feminina e negra:
A centralidade do trabalho doméstico na histó-
ria econômica do Brasil refere-se ao fato de esta
ser a principal profissão até hoje exercida majo-
ritariamente por mulheres negras, num contin-
gente atual de sete milhões de trabalhadoras. O
trabalho doméstico teve e tem uma grande im-
portância para o estabelecimento de condições
materiais mínimas de sobrevivência para o grupo
negro como um todo, o que dá a dimensão da
participação das mulheres negras na vida econô-
mica da população negra e do país.(3)
Por isso, inicia-se o presente trabalho resgatando a
história do movimento das trabalhadoras domésticas
no Brasil, de sorte que não é possível entender os con-
tornos e nuances da execução deste trabalho, sem tra-
zer o protagonismo e luta dessas mulheres negras em
ter este trabalho reconhecido, visibilizado, remunerado
e protegido pelo Estado:
O isolamento a que foi condenada retrata a di-
ficuldade de inserção da questão de gênero e
raça na estratégia política, principalmente pelos
partidos políticos, para pensar o Estado– nação,
compostos por uma imensa diversidade. E por
outro lado, a negação da mulher negra como su-
jeito político. Como estratégia para romper com
o isolamento, as mulheres negras têm busca-
do enfrentar conjuntamente esses elementos a
(3) WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. (Org.).
Mulheres negras: um olhar sobre as lutas sociais e as políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Criola, 2009. p.76-84.
(4) PEREIRA, Ana Claudia Jaquetto. Intelectuais negras brasileiras: horizontes políticos. Belo Horizonte: Letramento, 2019. p.173.
(5) Ibidem, p.139.
(6) BRASIL. Lei Complementar n.150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis n.8.212, de 24 de julho
de 1991, n.8.213, de 24 de julho de 1991, e n.11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art.3º da Lei n.8.009, de 29 de março
de 1990, o art.36 da Lei n.8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei n.5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art.12 da Lei n.9.250,
de 26 de dezembro de 1995; e dá outras providências. Brasília, 2015. Disponível em: .br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.
htm>. Acesso em: 15 dez. 2019.
partir de lutas para a melhoria das condições de
vida e pela dignidade do povo negro. Rompendo
também com o anonimato e o silêncio de milha-
res de mulheres negras duplamente exploradas
e oprimidas, apontando as suas necessidades,
bem como lutando pela realização do direito à
vida, ao corpo, à dignidade, ao respeito, à indi-
vidualidade e, sobretudo, ao direito de ser o que
são: mulheres negras.(4)
E por ser um trabalho realizado em larga medida pe-
las mulheres negras, que se recorre no segundo capítulo
à teoria da interseccionalidade, paradigma teórico apto
a balizar a problematização do que representa o quar-
to da empregada na estrutura das relações de trabalho
no país – em particular esta atividade que é realizada
em âmbito privado doméstico– que conforme leciona
Ana Claudia Jaquetto, a interseccionalidade trazida pela
ativista e intelectual negra Kimberlé Crenshaw é como
uma metáfora que busca capturar consequências estru-
turais e dinâmicas engendradas por eixos de subordina-
ção, como o racismo, o patriarcalismo e a opressão de
classe, impondo posições desiguais para as mulheres. E
também, como um instrumento que permite identificar
convergências de intervenções estatais com tais eixos.(5)
Por meio dessa ferramenta analítica desenvolvida
pelas intelectuais negras, que é possível construir o
percurso sociopolítico e jurídico do contrato domésti-
co no Brasil até a Lei Complementar (LC) n.150, de 1º
de junho de 2015(6), e partir para uma reflexão sobre
os desafios contemporâneos de proteção do trabalho
doméstico no Brasil, frente à Reforma Trabalhista em
vigor, capítulos finais do trabalho.
Dito isto, e pensando na importância do protago-
nismo das mulheres negras na discussão do trabalho
doméstico no Brasil, trazemos a valiosa lição de Jurema
Werneck, Nilza Iraci e Simone Cruz sobre a questão:
Somos aproximadamente cinquenta milhões
de brasileiras vivendo um quadro opressivo que
restringe nossa possibilidade de viver de forma
confortável em sociedade, demandando de nós
a ampliação de nossa capacidade de agencia-

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