Do Parcelamento do Solo: Loteamento Fechado, Condomínio Deitado ou Propriedade Horizontal Especial

AutorHaroldo Guilherme Vieira Fazano
Ocupação do AutorMestre e Doutor pela PUC-SP em Direito Civil
Páginas215-244

Page 215

1 Escorço histórico

O parcelamento do solo, como aconteceu com inúmeros outros institutos, surgiu em Roma, para estimular o aproveitamento das terras, as quais eram divididas em lotes e cedidas, mediante insignificante remuneração ou gratuitamente, aos velhos guerreiros que se constituíam em grupos de colonizadores. Foi, talvez, o prelúdio ou o embrião da reforma agrária.1Em 1919, a França editou uma lei sobre o parcelamento do solo urbano, com o objetivo de fixar o homem dentro das estruturas urbanísticas da época.

Posteriormente, em 1924, foi a vez de a Alemanha editar sua legislação sobre o parcelamento do solo, seguida, pela França, que aperfeiçoou a lei de 1919, com o objetivo de harmonizar a convivência nas cidades, além de tentar prevenir a eclosão de conflitos sociais, decorrentes das grandes concentrações populacionais, em torno de pequenas porções territoriais2.

A legislação francesa, que inspirou grande parte do conjunto de leis na América do Sul, particularmente, no Brasil, inspirou também a legislação do Uruguai, de 1931. Conforme Serpa Lopes e Frazão do Couto, essa legislação visava não só à proteção ambiental, como também aos direitos dos adquirentes de lotes urbanos3.

No Brasil, as Ordenações foram silentes sobre o parcelamento do solo. Nenhuma referência encontramos em qualquer legislação até o Império e durante este. Somente a partir de 1936, passou-se a regulamentar o parcelamento do solo, com o objetivo de proteger os compromissários compradores de lotes, conforme se vê no Projeto de Waldemar Ferreira, de 1936, e nos considerandos do Decreto-lei n. 58/374.

Em 1967, Hely Lopes Meirelles pretendeu reformular o Decreto-lei n. 58, mas, conforme ele próprio, foi distorcido, surgindo, então, o Decreto-lei n. 271/67, que tratou exclusivamente do parcelamento do solo urbano, posto que o parcelamento do solo rural era tratado pelo Estatuto da Terra.

Esse Decreto-lei, apesar de trazer algumas inovações propostas por Hely Lopes Meirelles, na realidade, não conseguiu ordenar corretamente o parcelamento do solo urbano, não por falha do seu idealizador e, sim, pelas alterações legislativas por que passou5.

Page 216

Finalmente em 1977, o Senador Lehmann apresentou um projeto de lei tratando do parcelamento do solo, que culminou com a edição da Lei n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979.6

Esta lei foi alterada, e uma importante alteração foi pela Lei n. 9.785, de 29 de janeiro de 1999, possibilitando que compromisso de compra e venda, tenha valor como título para o registro da propriedade do lote adquirido, quando acompanhado da respectiva prova de quitação (parágrafo 6º, artigo 26).

2 Conceito

Parcelamento do solo é a divisão de uma grandeza territorial em número legalmente limitado de grandezas territoriais menores, regidas e protegidas pelo direito. Parcelar quer dizer fracionar, dividir ou subdividir. Parcela é a parte, o quinhão, o pedaço que cabe a cada um dos parceleiros.

A origem etimológica da palavra parcela é francesa (parcelle), que, por sua vez, se originou do latim “particella”, diminutivo de “pars”, “partis”, “parte”.

Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados à edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamentos, modificação ou ampliação das vias existentes.7A respeito, diz Pontes de Miranda: “é parcelamento material o que se faz, precisamente ou não, na imagem da coisa (planta, delimitação), ainda sem se fazer na coisa. Donde existe, ainda no plano material, execução da parcelação material, que não foi executada”.8De outro lado, devemos distinguir o parcelamento do solo da denominada multipropriedade imobiliária, a que alude Maria Helena Diniz9, bem como do loteamento fechado.

A multipropriedade imobiliária “é uma espécie condominial relativa aos locais de prazer, pela qual há um aproveitamento econômico de bem imóvel, repartido, como ensina Gustavo Tepedino, em unidades fixas de tempo, assegurando a cada cotitular o seu uso exclusivo e perpétuo durante certo período anual. Há um direito real de habitação periódica, como dizem os portugueses, democratizando o imóvel de férias, cujo administrador (trustee) o mantém em nome de um clube, concedendo e organizando o seu uso periódico. A Argentina e a Venezuela (Lei de 18-12-1995) referem-se a ela como sendo uma propriedade de tempo compartilhado”.10O loteamento fechado, ao contrário do que pensam Maria Helena Diniz, Silvio de Salvo Venosa, Arnaldo Rizzardo, J. Nascimento Franco e Nisske Gondo, não é uma modalidade de condomínio especial previsto no artigo 8º da Lei de Condomínio.11Trata-se de uma propriedade do tipo especial, horizontal, com o uso de espaços público, privativo e condominial.

Page 217

José Afonso da Silva conceitua o loteamento fechado como uma modalidade especial de aproveitamento de espaço, para fins de construção de casas residenciais térreas ou assobradadas ou edifícios. Caracteriza-se pela formação de lotes autônomos, com áreas de utilização exclusiva de seus proprietários, confinando-se com outras de utilização comum dos condôminos12.

Do mesmo modo, Elvino Silva Filho entende que o loteamento fechado, apesar de não estar previsto na Lei n. 6.766/79, “é forma de parcelamento do solo urbano, que deve ser submetido às disposições desse diploma legal, e que as vias de comunicação, praças e espaços livres integrantes do loteamento fechado passam, desde a data do registro do loteamento, a integrar o domínio dos Municípios”13.

Também Biasi Ruggiero, no mesmo sentido, além de Diógenes Gasparini e Toshio Mukai.14Nessa mesma linha, se posiciona a jurisprudência, ou seja, ao loteamento fechado não se aplica a Lei n. 4.591/64 e nem os artigos 623 e seguintes do Código Civil Brasileiro, mas a Lei Federal n. 6.766/7915.

Enfim, podemos definir o loteamento fechado como uma propriedade especial, na qual existem uma propriedade particular (os lotes), uma propriedade condominial (de certas áreas de uso comum, como lagos, quadras de esporte, sede, etc.) e uma propriedade superfíciária, portanto, é um direito de superfície ou de uso de áreas públicas, que deve obedecer às diretrizes da Lei n. 6.766/79 para sua constituição.

3 Natureza jurídica

A natureza jurídica dos chamados loteamentos fechados pode ser explicada pela justaposição de três institutos: a propriedade individual, o condomínio e o direito de superfície.

Essa propriedade especial caracteriza-se, juridicamente, pela justaposição de propriedades distintas e exclusivas, ao lado do condomínio de algumas partes do empreendimento, forçosamente comuns, além do direito de superfície de áreas públicas.

Coexistem, pois, a propriedade em condomínio (comum), com a propriedade particular, como aludem Peretti-Griva e Maria Helena Diniz16e com o direito de superfície (artigo 7º do Decreto-lei n. 271/67 e artigos 1.368 a 1.375 do Projeto do Código Civil).

Portanto, tudo o que foi exposto a respeito da natureza jurídica da propriedade horizontal (condomínio edilício) serve, em parte, para dizer da natureza jurídica do condomínio deitado ou loteamento fechado, com relação à propriedade individual e a algumas áreas de uso comum.

Contudo, no caso dos loteamentos fechados, com relação ao direito de superfície, devemos mencionar que esse direito é sobre bens públicos, ou seja, caracteriza a denominada concessão de uso do Direito Administrativo.

Page 218

Assim, há uma estreita relação entre o direito de superfície e a concessão de uso. A concessão de direito real de uso é o contrato pelo qual a administração transfere o uso remunerado ou gratuito de terreno público a particular, como direito real resolúvel, para que dele se utilize em fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo ou qualquer outra exploração de interesse social17.

É, conforme Carluci e Chacon, O derecho de propiedad sobre una construcción en solo ajeno18.

É conceituado, segundo José Guilherme Braga Teixeira, “como o direito real de construir ou plantar em terreno alheio, por prazo determinado; a propriedade da construção ou plantação pertence, em caráter resolúvel, ao superficiário (propriedade superficiária) e é distinta da propriedade do solo”19.

O direito de superfície sempre foi adotado pelas legislações estrangeiras.

Desde o direito clássico e já no pré-clássico, vigorava em Roma, de modo absoluto, a regra assente de que “superfícies solo cedit”, por força da qual tudo quanto fosse acrescido ao solo (plantações e construções) passava a integrá-lo e ao seu dono pertencia, não podendo ser objeto de transferência senão juntamente com o solo.

Contudo, passaram a ser admitidos a alienação resolúvel e arrendamentos para edificação de lojas, ao longo das estradas, a algumas pessoas, como estalajadeiros, banqueiros20.

Observa José Guilherme Braga Teixeira que, no direito justinianeu “a superfície tornou-se um direito real de uso e fruição sobre o edifício construído em terreno de outrem, tratando-se, outrossim, de direito alienável e transmissível aos herdeiros”.21O Direito Canônico aplicou o direito de superfície, admitindo a propriedade separada de construções e plantações.

O feudalismo também deu muita importância à superfície, em especial à enfiteuse, que tem como característica a divisão do domínio, dividido em direto ou iminente (pertencente ao dominus soli) e útil (cabente ao enfiteuta). Igualmente, escravisou o homem à terra, criando a classe dos servos da gleba, formada pelos enfiteutas e subenfiteutas dos latifúndios feudais.22No direito moderno, o instituto surgiu em 1900, com o advento do Código Civil alemão, como era no direito romano, isto é, como direito real na coisa imóvel alheia e limitado apenas às edificações.

A seguir, a superfície foi contemplada pelo Código Civil suíço, de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT