Do 'pater familias' à coparentalidade: breve análise da evolução familiar

AutorDébora Spagnol
Páginas87-101

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1. Introdução

Desde o surgimento da civilização humana, o viver em sociedade se deu por meio de arranjos formulados com base em objetivos e interesses vigentes em cada época de surgimento. A família, considerada a célula-mater da sociedade, foi a instituição que mais sofreu o resultado da evolução cultural, social e econômica da civilização ocidental.

Dos pequenos grupos reunidos com a finalidade única de sobreviver, a família evoluiu para os clãs liderados pelo poderoso “pater famílias”, a quem eram concedidos os poderes de chefe político, sacerdote e juiz.

Na Idade Média, o Cristianismo, cada vez mais influente nos usos e costumes, instituiu o casamento, legitimando-o socialmente e trazendo em seu bojo também a finalidade de amparo e assistência entre seus membros.

Da Idade Moderna, quando foram atribuídos ao Estado os papéis de defesa e assistência aos cidadãos, evoluindo-se para o período pós-Revolução Industrial, no qual os cidadãos passaram a exercer função econômica ao invés da mera

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sobrevivência, chegando-se aos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade pregados pela Revolução Francesa.

Surgem novos modelos familiares, baseados inicialmente no amor romântico surgido como contraposição à finalidade exclusivamente econômica e culminando nos atuais relacionamentos pós-modernos ? a “modernidade líquida” definida por Bauman: fluídos, descompromissados e frágeis.

Desse novo modelo de se relacionar, surgem então famílias com outros formatos, desprovidas de uma figura central de poder e cuja finalidade, em geral, é a de valorização individual de seus membros e a satisfação imediata dos desejos.

Entre eles, o destaque é para a COPARENTALIDADE: a união sexual de duas pessoas sem finalidade amorosa, unicamente para a geração de filhos.

O objetivo do texto é lançar luz sobre o tema, deixando ao leitor suas próprias conclusões.

2. Conceito de família – antecedentes históricos

O termo família vem do latim “famulus”, que significa criado ou servo, escravo doméstico2. Inicialmente, a palavra designava o conjunto de empregados de um senhor e só mais tarde passou a ser utilizada para determinar um grupo de pessoas que, unidas por laços de sangue, viviam na mesma casa e estavam submetidas à autoridade comum de um chefe3.

Aristóteles afirmava que “a família é uma comunidade de todos os dias, com a incumbência de atender as necessidades primárias e permanentes do lar”4. Cícero disse que a família é “o princípio da cidade e origem ou semente do Estado”.5Segundo a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e como tal deve ser protegida.6Com a evolução social e econômica, as relações humanas naturalmente resultaram em novos formatos e costumes, aos quais a “família” e sua conceituação foram se adaptando.

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Na busca do entendimento da evolução da sociedade (e no caso específico do presente texto, de abordar a família), foram criadas algumas teorias. Friedrich Engels, por exemplo, demarcou as fases de evolução do homem e da sociedade pelos progressos na produção dos meios de sobrevivência, dividindo os estágios pré-históricos da cultura em três épocas principais: estado selvagem, barbárie e civilização. A estes três estágios o pensador atribuiu três modelos de família: consanguínea, panaluana e sindiásmica.7

A sociedade humana teve seu início com a reunião de pequenos grupos de pessoas – bandos de caçadores e coletores que se espalharam nas áreas mais habitáveis do mundo por volta de 12.000 a.C. A agricultura somente foi introduzida em torno de 10.000 a.C, a roda e o uso dos metais foram criados por volta do ano 3.500 a.C, após o que foi formada a primeira civilização na Suméria (atual Iraque), estendendo-se para o Mediterrâneo (norte da África, oeste da Ásia e sul da Europa), Índia e China.8

A crescente produção agrícola ? em detrimento da redução da caça e da coleta ? trouxe mudanças sociais relevantes. Enquanto a caça e a coleta permitiam um sistema de razoável igualdade entre homens e mulheres, com baixas taxas de natalidade e melhor divisão de tarefas, a agricultura trouxe maior responsabilidade

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dos homens para com a plantação, resultando no domínio dos meios de produção e, depois, no poder sobre o capital. A vida das mulheres passou a ser definida pelas gravidezes frequentes (famílias numerosas eram necessárias para dar conta do trabalho) e cuidados com as crianças. Surgiu então o cenário para um novo patriarcalismo.9Culturalmente, o patriarcalismo foi muito injusto com as mulheres: na Mesopotâmia, o Código de Hamurabi punia aquelas que não desempenhassem de forma diligente as suas atribuições domésticas. Várias sociedades permitiam que o homem tivesse várias esposas (desde que tivesse condições de sustentá-las), enquanto à mulher era restrito inclusive o direito de aparecer em público. Alguns historiadores utilizam como razão de existência do patriarcado a “garantia” de paternidade: regulando a sexualidade das esposas, esperavam ter certeza de que os filhos que herdariam seu patrimônio eram efetivamente seus.

Na família romana antiga, ao contrário de algumas civilizações que primavam pela consanguinidade, utilizava-se a submissão como critério de pertencimento: o que unia a família era a religião, a adoração aos mesmos deuses ? lares (agnação), a submissão ao mesmo pater famílias.10Diariamente, cada família se reunia em torno de um fogo que jamais podia ser extinto para cultuar os mortos (ancestrais deificados).

Da mesma forma que as romanas, as famílias gregas constituíam uma organização política cujo princípio básico era a autoridade que abrangia todos quantos a ela estavam submetidos. O pater familias era ao mesmo tempo chefe político, sacerdote e juiz. A figura paterna era mais importante que o indivíduo e todo o direito era voltado para manter a estrutura familiar e não individual.

Assim, foi por meio da religião que se estabeleceu a primeira instituição social: o casamento ? forma de contrato nascido para dar continuidade à família, somente dissolúvel em casos de esterilidade feminina. Ao contrair núpcias, os filhos dessas famílias também passavam a adorar outros deuses-lares, deixando de ser considerados membros da família anterior e formando novo núcleo familiar.

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Todos tinham interesse em gerar filhos, já que acreditavam que a felicidade dos mortos dependia da conduta dos descendentes após o seu falecimento. A sucessão cabia somente aos filhos e a adoção era utilizada como último recurso, para fugir à extinção da família.

O casamento romano tinha uma base nitidamente consensual, mas de caráter não absoluto (a união de patrícios e plebeus, por exemplo, não era permitida). O que distinguia o casamento da simples posse era a “affectio maritalis”: o ânimo de serem marido e mulher. O afeto na constituição da família, então, apresentava cunho subjetivo e objetivo, sendo que o conceito de “família” passou a se vincular à ideia da contração de justas núpcias – casamento legítimo, formalizado de acordo com as leis civis.

Em Roma o casamento era essencialmente monogâmico11, definindo-se como a união entre o homem e a mulher com o fim de estabelecer comunhão de vida íntima e duradoura. No plano jurídico, era um estado de fato que surgia da permanência da união baseada na convivência e na intenção de serem marido e mulher.12Na Idade Média, o conceito de família passou a ser definido e influenciado pela Igreja. Com o Cristianismo sendo reconhecido como religião oficial, o culto passou dos lares às capelas, deixando de ser realizado pelo “pater”, que foi substituído pelo sacerdote. O casamento foi então transformado em sacramento e a família foi convertida em célula-mãe da Igreja, hierarquizada e organizada a partir da figura masculina.

Na Idade Média incorporou-se ao conceito de “família” a ideia de “garantia” de assistência moral e psicológica recíproca a seus membros, uma forma de amparo contra as mazelas oriundas da exploração dos camponeses pelo Senhor Feudal.

No seio da família religiosamente constituída pelo casamento, legitimada enquanto instituição social, o sexo tinha apenas duas finalidades: a satisfação do

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desejo masculino (a mulher era considerada incapaz de sentir prazer) e a geração de filhos, o que resultava em famílias numerosas.13

Na Idade Moderna, o estado nacional substituiu o sistema feudal, tirando da família os deveres de defesa e assistência e atribuindo-os ao Estado.

Com a Revolução Industrial, as famílias iniciaram o trabalho dentro das fábricas e, ao invés de produzir para a sua própria subsistência, passaram a exercer função econômica, auferindo renda e sustento por meio da produção, ora como proprietária, ora como proletária.

Os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade condutores da Revolução Francesa foram fonte de ruptura de muitos paradigmas, até então tidos como absolutos, permitindo o surgimento de novos modelos de família.

O lado emotivo da monogamia surgiu com o advento do amor romântico, dando origem aos conceitos de exclusividade e posse não mais do patrimônio familiar ? mas do outro. O ideal romântico no casamento passou a...

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