Do princípio da dignidade da pessoa jurídica

AutorVinícius Jose Marques Gontijo
Páginas151-158

Page 151

1. Introdução

Ultimamente, temos assistido a uma escalada no desconhecimento de institutos jurídicos. Pior, muitos aplicam teorias e institutos que mal conhecem trazendo prejuízos a eles e instalando uma confusão técnica e insegurança jurídica, que são prejudiciais não apenas ao sistema jurídico, mas também ao destinatário da norma e ao próprio Estado brasileiro.

Dentre estes institutos está a figura técnica da "pessoa" que muitos insistem em confundir com seres humanos, olvidando o art. 1o do Código Civil brasileiro.

Neste nosso artigo, pretendemos demonstrar a existência de um "Princípio da Dignidade da Pessoa Jurídica", alertando para sua violação reiterada no meio jurídico e apontando a insegurança jurídica daí decorrente, principalmente em razão da aplicação abusiva da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

2. Pessoas: jurídica e humana

Conforme já demonstrava Pontes de Miranda, "pessoa é o titular de direito, o sujeito de direito".1 Portanto, nas palavras de Nestor Duarte: "Pessoa é o ente que pode ser sujeito de relações jurídicas".2

Com efeito, o art. 1o do Código Civil brasileiro prescreve que a pessoa é o sujeito de direito e deveres na ordem civil. Assim, liga-se "à pessoa a idéia de personalidade, que exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres".3 Nesse sentido, lembra-nos César Fiuza: "Característica essencial dos sujeitos dos direitos é a personalidade. Parece redundante dizer que a personalidade é atributo jurídico que dá a um ser status de pessoa".4

A pessoa humana (também chamada pessoa natural ou física) somente é "pessoa" porque a ordem jurídica o quis, na medida em que esta é uma expressão técnica. Para tanto, basta que nos lembremos que em tempos idos e ingratos nem todos os serem humanos eram pessoas na ordem

Page 152

jurídica nacional, veja-se a título de exemplo a execrável situação vivida pelos escravos.

Dentro desta precisão técnica é que se pode afirmar que todas as pessoas são jurídicas, na medida em que o são segundo a ordem jurídica do País. Pode-se aqui usar a precisa lição de Pontes de Miranda: "Pessoa física ou natural é o ser humano. Apes-soa a que não corresponde tão-só ser humano diz-se pessoa jurídica. A expressão 'jurídica' está, aí, empregada em sentido estrito, porquanto pessoas físicas e pessoas jurídicas são igualmente jurídicas".5

E ele ainda arremata afirmando: "Não só o ente humano tem personalidade. Portanto não só ele é pessoa. Outras entidades podem ser sujeitos de direito; portanto, ser pessoa, ter personalidade. Atais entidades, para se não confundirem com as pessoas-homens, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou morais, ou fictícias, ou fingidas. Em verdade, de modo nenhum se fingem: a personalidade jurídica é atribuída pelo direito; é o sistema jurídico que determina quais são os entes que têm por pessoas".6

Evidentemente, as "pessoas, naturais ou jurídicas, são os sujeitos dos direitos subjetivos. É em sua função que existe a ordem jurídica".7

Constatado que pessoas são aquelas capazes de direito e deveres segundo a ordem jurídica do País e, portanto, sofrendo variações de um país para outro, podemos agora discorrer acerca da aplicação dos direitos da personalidade às pessoas "naturais" e "jurídicas".

3. Aplicação dos direitos da personalidade à pessoa jurídica em sentido estrito

Sabidamente, os direitos da pessoa podem ser classificados em dois grandes grupos, a saber: 1o) aqueles que se destacam dela e 2°) aqueles que lhe são inerentes. Este último, por sua vez, poderá se referir à integridade física (tais como: à sua vida e ao seu corpo) ou à integridade moral da pessoa (tais como: à sua imagem e à sua honra).8 São aqueles que se podem classificar como direitos da personalidade.

Diante disso, o art. 52 do Código Civil prescreveu coerentemente com a acepção técnica da expressão pessoa, a extensão dos direitos da personalidade às pessoas "jurídicas", a partir daqui usada na sua acepção estrita, querendo dizer os entes públicos (tais como a União, os Estados e o Distrito Federal - art. 41, CC) e os privados (tais como as sociedades, fundações e partidos políticos - art. 44, CC), evidentemente naquilo em que couber, até porque, por exemplo, não tendo a pessoa "jurídica" um corpo humano, dele não poderia mesmo dispor (art. 13, CC). Nesse sentido, já era a lição de Pontes de Miranda quando afirmava, verbis: "Ser pessoa é ser capaz de direitos e deveres. Ser pessoa jurídica é ser capaz de direitos e deveres, separadamente; isto é, distinguidos o seu patrimônio e os patrimônios dos que a compõem, ou dirigem. Se há direito da entidade, antes de ser pessoa jurídica, à personificação, dependente do direito positivo, em toda a sua escala (direito das gentes, direito constitucional estatal, direito administrativo, direito privado). No direito brasileiro, a pessoa jurídica é capaz de todos os direitos, salvo, está visto, aqueles que resultam de fatos jurídicos em cujo suporte fático há elemento que ela não pode satisfazer (e.g., ser parente, para suceder legitimamente, ou ter pretensão a alimentos). O direito público por vezes lhe atribui direitos subjetivos, pretensões, ações e exceções, como acontece aos partidos políticos e aos sindicatos".9

Page 153

Naturalmente, conforme vimos por Pontes de Miranda, se a entidade tem direito subjetivo assegurado pela ordem jurídica à personificação, que se dá por sua constituição e registro (art. 45, CC), deve mesmo lhe ser assegurado os direitos da personalidade que possam ter suporte fáti-co nos elementos que ela pode satisfazer.

Se há autores refratários à extensão dos direitos da personalidade às pessoas jurídicas, restringido-os às pessoas humanas - mormente os direitos fundamentais,10 constatamos que isso não tem suporte na legislação brasileira (cf. art. 52 do CC), sendo que tal discriminação não se conjuga nem mesmo com a Constituição da República, que assegura a todos o Princípio da Igualdade (cf. caput do art. 5° da CR/ 1988), aqui compreendido, evidentemente, no sentido material, ou seja, pelo suporte fático-jurídico que autorize sua implementação.11

Da mesma maneira, a doutrina12 e a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, vem revelando a possibilidade de se estender às pessoas jurídicas os direitos da personalidade, inclusive alguns que até recentemente se questionava se eram exclusivos da pessoa "humana", como, por exemplo, a honra objetiva. Para tanto, aquela Corte editou a Súmula n. 227 que reconhece a possibilidade da pessoa jurídica sofrer danos morais, exatamente por violação à sua honra: objetiva.

A já clássica doutrina francesa de Pierre Kayser também leciona: "As pessoas morais são também investidas de direitos análogos aos direitos da personalidade. Elas são somente privadas dos direitos cuja existência está ligada necessariamente à personalidade humana" (Pierre Kayser, Revue Trimestrielle de Droit Civil 69/445).

A doutrina portuguesa vai além, aplicando à pessoa jurídica os direitos fundamentais, compatíveis com a sua natureza, ou, por outras palavras, cujo suporte fático, ela tenha elementos que a autorizem a gozar desses direitos: "Por pessoas coletivas entendem-se aqui diferentes 'unidades or-ganizatórias': pessoas colectivas nacionais e estrangeiras e pessoas colectivas de direito privado e de direito público (associações, fundações). A extensão dos direitos e deveres fundamentais às pessoas colectivas (pessoas jurídicas) significa que alguns direitos não são 'direitos do homem', podendo haver titularidade de direitos fundamentais e capacidade de exercício por...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT