O domínio por organização como forma independente de autoria mediata

AutorClaus Roxin
Páginas69-94

    Aula inaugural proferida em 21 de junho de 2006 na Universidade Luzern, Suíça, à convite do Prof. Dr. iur. Jürg-Beat Ackermann. O presente artigo, intitulado Organisationsherrschaft als eigenständige Form mittelbarer Täterschaft, consiste na versão atualizada da preleção proferida pelo Prof. Dr. Claus Roxin na Universidade de Luzern, na Suíça, e foi gentilmente cedida pelo autor para compor esta obra. Tradução da versão alemã de Pablo Alflen da Silva.

Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, Professor de Direito Penal e Processual Penal da UNIVATES e do Curso de Especialização em Direito Penal e Política Criminal da UFRGS, Mestre e Doutorando em Ciências Criminais (PUCRS), Advogado Criminalista (Cezar Bitencourt Advogados).

Page 69

I Introdução

O «domínio da vontade em virtude de aparatos organizados de poder» é considerado hoje um dos principais temas do debate acerca da teoria jurídico-penal da autoria. Todos os manuais e comentários tratam acerca disso, há várias dissertações mencionando a respeito e, apenas para elucidar este exemplo, uma única «edição comemorativa» que me foi dedicada no último mêsNT1* contém quatro trabalhos sobre o tema do domínio por organização1. Esta figura jurídica foi desenvolvida por mim, pela primeira vez, no ano de 19632. Ela se baseia na tese de que em uma organização delitiva os homens de trás, que ordenam fatos puníveis com poder de mando autônomo, também podem ser responsabilizados como autores mediatos, se os executores diretos igualmente forem punidos como autores plenamente responsáveis. EstesPage 70 homens de trás são caracterizados, na linguagem alemã corrente, como «autores de escritório» (Schreibtischtäter). Minha idéia era a de transpor este conceito cotidiano às precisas categorias da dogmática jurídica. A razão imediata para este esforço era justamente o processo promovido em Jerusalém contra Adolf Eichmann, um dos principais responsáveis pelo assassinato de judeus no período nazista.

Nas décadas seguintes esta moderna construção jurídica se impôs na literatura alemã em sua grande maioria3 e no ano de 1994 foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal alemão4. Nesta decisão um membro do assim chamado Conselho Nacional de Defesa, do antigo governo da Alemanha oriental, foi condenado como autor mediato de homicídio doloso, porque teria ordenado que os fugitivos que quisessem ultrapassar o muro da fronteira do Estado alemão oriental fossem impedidos de realizar o seu propósito, em caso necessário, até mesmo por meio de disparos mortais. Os soldados da fronteira, os «atiradores do muro», que teriam realizado os fuzilamentos com as próprias mãos, foram igualmente condenados por homicídio doloso.

Esta decisão jurisprudencial foi levada adiante nas decisões posteriores, e na Alemanha ainda mal provocou uma quantidade visível de posicionamentos científicos.5 Mas no âmbito internacional a figura jurídica do domínio por organização encontrou grande ressonância. Nos anos oitenta do século passado ela já foi utilizada no julgamento da Junta Geral Argentina.6 Ela é levada em conta também no moderno Direito Penal Internacional.7 Isso porque o Art. 25, III, a do Estatuto do Tribunal Penal Internacional não só reconhece a autoria mediata, como acentua expressamente que independe de que o executor direto também seja penalmente responsável («regardless of whether that other person is criminally responsible»). O penalista alemão Kress afirma, resumidamente:8 «enquanto os intérpretes norte-americanos atualmente encontram-se, de forma compreensível, bastante perplexos face às alternativas ao executor responsável, este passo é considerado pelos intérpretes alemães, em geral, como reconhecimento da autoria pelo domínio da organização.» Além disso, ele entende que, casoPage 71 se oriente pelas primeiras manifestações do Tribunal Penal Internacional, «a figura dogmática desenvolvida por Roxin em 1963 dominará, em breve, a praxis do primeiro Tribunal Penal Internacional permanente na história do direito»9. E nós esperamos por isso! O domínio por organização como forma independente da autoria mediata é discutido inclusive na literatura suíça, se bem que a práxis do seu país, felizmente, ainda não produziu tais casos.10 Eu defendi e precisei minha concepção originária em inúmeras publicações, contra os mais diversos ataques, ao longo dos 43 anos que se passaram desde o seu surgimento. Kress fala11 de um «diálogo polêmico, interessante e ainda não acabado». A presente exposição leva adiante tais esforços, na medida em que abarca as contribuições da discussão mais recente e desenvolve minha própria solução em alguns pontos.

II Rechaço à co-autoria

Embora ilustres autores12 advoguem pela condenação do homem de trás não como autor mediato, mas sim como co-autor, pode-se afirmar que: para a aceitação de uma co-autoria entre o mandante, no centro de um aparato de poder, e o executor, «desde o local» (por exemplo, no caso dos assassinatos nos campos de concentração ou no caso dos disparos no muro), faltam todos os pressupostos.

Não existe uma decisão comum para o fato. O cumprimento de uma ordem é o contrário de uma tomada de decisão comum, de um acordo entre os co-autores. A «identificação no estabelecimento do fim comum», na qual se baseia Otto13, não é suficiente para isso. Pois, de modo geral, enquanto se pode falar disso face a uma outra, absolutamente possível, motivação do executor, tal «identificação» igualmente pode existir na relação do que instiga ou auxilia,Page 72 com o autor. Também a consciência de que os atos «devem ser praticados de acordo com as instruções de direção», referida por Jescheck/Weigend14, pode apenas transmitir a idéia de ter que executar uma ordem, mas não fundamenta nenhuma decisão comum.

A co-autoria baseia-se na «obrigação» mútua e não na vinculação unilateral do emissor da ordem. Falta, na tomada de decisão, a posição característica de mesma categoria para a co-autoria. A co-autoria tem uma estrutura «horizontal». Onde existe uma estrutura «vertical» inequívoca, como na hierarquia de aparatos de poder, leva-se em conta apenas uma autoria mediata. O fato de que o emissor da ordem e o executor em regra não conhecem um ao outro e também podem jamais se conhecer, faz a decisão comum parecer uma ficção.

Jakobs e seus alunos15 esquivam-se do problema porque renunciam a uma decisão comum para a co-autoria e consideram suficiente a «adaptação» de um participante – aqui, o executor direto – no plano elaborado por outro. Mas isto não pode ser suficiente para uma co-autoria. Pois o agrupamento de pessoas que comete o fato exige sobretudo uma «decisão comum para o fato», cuja necessidade, de acordo com as palavras de Stratenwerth16, está «fora de dúvida» também para o direito suíço. Se faltar isto, então apenas poderá existir uma relação de subordinação que deve ser verificada sob o ponto de vista da autoria mediata. A co-autoria perderia todos os contornos e sua delimitação em face da autoria mediata, caso se renunciasse a uma decisão comum para o fato e se considerasse como suficiente para ela uma mera ordem.

Porém, igualmente falta uma execução conjunta do fato. Pois aquele que dá a ordem, de modo geral, não concorre com o seu executor, pelo menos não por meio de uma contribuição fática no estágio de preparação. Isto não é suficiente para o cometimento conjunto, mesmo de acordo com o entendimento de que a co-autoria não se limita a contribuições fáticas no estágio de execução. Em todo caso, pode-se fundamentar a co-autoria até mesmo sem os problemas da instigação. A co-autoria é reconhecida como cooperação baseada na divisão de trabalho através da participação ajustada ao fato. Por isso não se pode discutir aqui por que o homem com a alavanca de poder não quer sujar as próprias mãos e quer deixar o «trabalho»Page 73 ser realizado por outro.17 Também uma vinculação mútua dos cúmplices de mesma categoria, que é característica para a co-autoria, não pode se apresentar no caso do domínio por organização.

III Rechaço à instigação

Mais próxima que a co-autoria é a hipótese de instigação, que nos últimos anos encontrou novamente em Herzberg18, Rotsch19 e, mais recentemente, em Zaczyk20, defensores particularmente engajados. Pois ela estaria de acordo com o teor do Art. 24 do Código Penal suíço e do § 26 do Código Penal alemão, os quais exigem uma «disposição dolosa» ao fato.21 Porém, ela contesta o peso da ordem e da execução conforme a ordem, em aparatos de poder que atuam desvinculados do direito.

Um instigador não está no centro da decisão. Ele desperta a tomada de decisão, mas deve abandonar o desenvolvimento posterior do acontecimento ao instigado, o qual tem o domínio do fato determinante do acontecimento. No domínio por organização ocorre justamente o contrário: o homem de trás, que detém a alavanca do poder, decide sobre o «se» do fato, enquanto que o executor direto produz, em geral, de forma ocasional a situação concreta de atuação. Ele não pode mudar mais nada de essencial no curso do acontecimento traçado pelo aparato, senão quando muito modificá-lo. Mesmo uma recusa à ordem, em regra, não serviriaPage 74 em nada para a vítima, porque as condições organizatórias-marco geralmente asseguram a execução de uma ordem também para este caso.

Portanto o homem de trás tem de longe o máximo «poder sobre o fato» e o «domínio sobre a forma», como já o reconheceu o Tribunal Distrital de Jerusalém no caso Eichmann, na medida em que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT