Dos Deveres Processuais das Partes e de Terceiros

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas157-167

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Nenhum estudo sobre a prova judiciária deve desprezar certas noções históricas e adminiculares a respeito dos deveres processuais das partes, de terceiros e de seus respectivos procuradores.

Há um manifesto entrelaçamento lógico e legal entre ambos os temas, a justificar o seu estudo e a afirmação da existência de uma deontologia processual.

Modernamente, já não se admite que as partes possuam ampla disponibilidade do processo. O Estado, detentor exclusivo do poder-dever jurisdicional, ao contrário, estabeleceu regras não apenas técnicas, mas também morais, que devem ser observadas pelos litigantes em juízo. Pode-se asseverar, por isso, que há uma verdadeira disciplina processual, imposta pelo Estado às partes, em nome do conteúdo ético do processo e da própria respeitabilidade do Poder Judiciário.

Esse disciplinamento não se restringe somente à atividade probatória, se não que se estende por todo o processo, constituindo, dessa forma, uma autêntica limitação da liberdade processual dos contendores, na medida em que lhes fixa diretrizes de conduta, a cuja observância estão compelidos.

Como observa Carnelutti, uma coisa é reconhecer a necessidade e até a insubstituibilidade da parte, ainda que para a determinação do conteúdo do processo “y otra es admitir que su acción no deba ser disciplinada. Este es incluso el campo donde hay la mayor necesidad de una severa disciplina (grifamos). Aqui, sobre todo, se comporta a menudo la parte como un caballo fogoso que hay que sujetar bien a fin de corregir los defectos, verdaderamente constitucionales, de su actividad” (Reforma alemana y reforma italiana del proceso civil de cognición. In: Estudios de Derecho Procesal. v. l, Ed. Jurídicos Europa--América. Trad. de Santiago Sentis Melendo, 1952, p. 171).

Dentre esses defeitos próprios das partes, a que se referiu Carnelutti, está o de dizer a verdade ao juiz somente até onde a ela convém. É preciso, pois, constranger-se o litigante a dizer a verdade do que souber “Y esto no está en contradición con la libertad essencial al derecho subjetivo, ya que no repugna a la libertad la exigencia de un límite determinado por el mismo interés público respecto del cual libertad y derecho subjetivo no son más que instrumentos” (idem, ibidem).

Sobre o dever de veracidade das partes iremos nos manifestar logo a seguir.

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Deveres das partes

Fundamentalmente, poderíamos resumir a dois esses deveres: a) o de lealdade e
b) o de probidade.

Estatui o art. 14 do CPC, em disposição minuciosa, que compete às partes e aos seus procuradores: a) expor os fatos em juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; d) não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito; e) cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. É certo que além desses deveres se incluem: f) comparecer em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado; g) submeter-se à inspeção judicial, quando for julgada necessária; e h) praticar o ato que lhe foi determinado (CPC, art. 340).

A CLT — o que não deve causar surpresa — é literalmente omissa quanto a tais deveres que, nada obstante, devem ser exigidos pelo processo do trabalho.

Analisando apenas os deveres que mais de perto se articulam com a prova, temos:

a) Dever de verdade

A preocupação do Estado, em relação à conduta processual das partes, já estava manifestada em legislações antigas.

No Direito Romano, por exemplo, à época dos processos das ações da lei, instituíra-se a segurança do sacramentam; a perda deste, em prol do Estado, constituía, segundo Elido de Cresci Sobrinho (Dever de veracidade das partes no novo Código de Processo Civil. São Paulo: Vellenich, 1975. p. 12), “uma pena rigorosa e absoluta suportada pela parte sucumbente, não se exigindo uma particular indagação a respeito da temeridade da ação ou da resistência; o próprio fato da sucumbência era presunção de temeridade e dolo”.

Advieram: a) as sponsiones que as partes tinham de jurar sob condictio certae pecuniae: era a sponsio correspondente a um terço do valor da ação; b) a litiscrescência, cuja consequência implicava condenação ao dobro da garantia, na hipótese de o réu não reconhecer o pedido da ação e ter discutido sem fundamento; c) o indicium calumniae, também pena processual, que se aplicava ao autor quando esse fosse culpado ou deixasse perder a ação; o valor dessa penalidade era de um décimo do montante da ação ou da condenação. O juramento de calúnia tinha por finalidade prevenir a má-fé das partes — e, conseguintemente, a desonestidade (ou deslealdade) processual. Ao tempo de Justiniano, a propósito, exigiam-se de ambos os litigantes e de seus respectivos procuradores esse juramento (jurava o autor: “non calumniandi animo litem movisse, sed existimando bonam causam habere”; e o réu: “quod putans se bona instantia uti ad reluctandum pervenerit”).

Como Cresci Sobrinho, com apoio em Klein e Goerres, acreditamos que o juramento de calúnia, vigente no Direito Romano antigo, constitui o antecedente histórico mais remoto do dever de verdade que os códigos modernos contemplam.

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Igualmente em outras legislações estava presente o cuidado de evitar-se a atividade desleal das partes, como ocorria nos tribunais peninsulares, onde, para tanto, se utilizava a manquadra. Essa era um juramento prévio, consistente na afirmação de que não se iria litigar de maneira caluniosa ou por espírito de chicana. A manquadra, cujo objetivo principal era obstar a mentira das partes, se assemelhava, nesse particular, ao juramento de calúnia, dos romanos, e ao juramento de asto do direito longobardo. À guisa de ilustração histórica, transcrevemos, a seguir, a forma com que o juramento de manquadra era prestado, conforme está expresso no Foro de Plasencia. “Esta es la manquadra; diga el contendor; vienes jurar que demandas ¿verdad? R. si vengo, o, si juro. Diga su contendor: si verdad dices, Dios te ayude, e si non, Dios te confonda. R. Amen” (MERÊA, Paulo. História e Direito. Acta Universitalis Conimbrigensis, 1967. p. 166).

A exigência de veracidade foi, depois, incorporada às Ordenações reinóis portuguesas, estabelecendo as Filipinas, em seu Livro 3.º, Título XLIII, o juramento do autor no sentido de não demandar com propósito malicioso, embora “verdadeiramente se defenderá até o fim...” (grifamos).

Abandonando o antigo iusirandum calumniae, os códigos processuais modernos passaram a disciplinar o dever de verdade das partes, atribuindo a doutrina81 ao processo germânico essa iniciativa.

O CPC vigente, como vimos, também fixou os deveres processuais dos litigantes, dentre os quais está o de verdade. Daí o interesse do tema para o processo do trabalho, em face do disposto no art. 769 da CLT. Significa que as partes devem narrar em juízo os fatos tal como aconteceram, ou seja, devem ser fiéis à verdade real. Nem sempre isso ocorre, todavia. Muitas vezes, uma ou ambas as partes procuram alterar a verdade dos fatos, subtraindo-a do conhecimento do juiz para, com isso, conseguir proveito pessoal. E não há como negar que, lastimavelmente, em alguns casos o conseguem, porquanto é a verdade formal que infiui na formação do convencimento do julgador.

Aliás, manifestando a sua censura quanto a essa conduta desonesta dos litigantes, a Exposição de Motivos do projeto de lei que instituiu o atual CPC dispunha: “Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever, da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça.”

Foram, precisamente, essas razões éticas e jurídicas que motivaram o legislador a estabelecer os deveres processuais dos litigantes, enumerando-os nos arts. 14, 340, 445, II, 599, 416, § 1.º, 446, III e parágrafo único, nada obstante haja outros mais.

Na hipótese de a parte alterar, deliberadamente, a verdade dos fatos, ou omitir intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa, e desde que haja prova quanto a

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isso, será considerada litigante de má-fé (CPC, art. 17), respondendo, em consequência, por perdas e danos (CPC, art. 16) e por outras despesas processuais (CPC, art. 18, caput).

Embora o processo do trabalho também possua um acentuado conteúdo ético, entendemos que não se aplicam aqui as disposições do CPC relativas ao litigante de má-fé, no que concerne à indenização por perdas e danos, por incompatibilidade substancial.

Wagner Giglio (ob. cit., p. 109-110), em lição que adotamos, pondera que no processo do trabalho as perdas ou prejuízos de direito material, sofridos pelo empregado, já estão cobertos pelas indenizações tarifadas previamente em lei, não havendo razão para cogitar-se em apuração de perdas e danos. Quanto aos honorários advocatícios, que deveriam ser pagos pelo litigante de má-fé, somente são devidos ao empregado, e ainda assim na hipótese única da assistência judiciária (Lei n. 5.584/70, art. 14).

Também os danos que o empregado possa causar...

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