Dos diagnósticos aos manuais: mercado farmacêutico e transtornos mentais da infância em questão

AutorMarcia da Silva Mazon (UFSC)
Páginas115-140
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2020.e75323
115115 – 140
Direito autoral e licença de uso: Este artigo está licenciado sob uma Licença Creative
Commons. Com essa licença você pode compartilhar, adaptar, para qualquer m, desde que
atribua a autoria da obra, forneça um link para a licença, e indicar se foram feitas alterações.
Dos diagnósticos aos manuais:
mercado farmacêutico e transtornos
mentais da infância em questão
Marcia da Silva Mazon (UFSC)1
Resumo
O intuito do artigo é situar o momento de mudança – tanto nos artigos como nos procedimentos
de pesquisa – que marca o DSM-III enquanto forma de abordagem dos transtornos psiquiátricos
situando a indústria farmacêutica na conformação de novos discursos. Este é o momento da
reemergência do Distúrbio de Décit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e marca o confronto
com a abordagem psicodinâmica freudiana que será secundada pela alternativa de testes e proce-
dimentosestatísticos.Qual o contexto destas transformações? Mobilizamos autores da sociologia
econômica para pensar o mercado de medicamentosenquanto campo de lutas – luta em torno
dos critérios de classicação da realidade –bem como a dinâmica de interatuação com o campo
da saúde. O artigo parte de pesquisa bibliográca e análise documental. O argumento é o de que
a nosologia do TDAH, como qualquer outro arbitrário cultural, não é neutra e expressa relações
de poder. Se diversas pesquisas apontam o poder médico como poder biopolítico, é possível
constatar como novos arranjos entre indústria farmacêutica e psiquiatria ampliam o espaço de
atuação da primeira alcançando adolescência e infância somando a atuação da indústria farma-
cêutica como reforço biopolítico.
Palavras-chave: Mercado. Diagnóstico. Transtornos mentais da infância. TDAH. Indústria
farmacêutica.
1 Doutora em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, Brasil.
Éprofessora associada do Departamento de Sociologia e Ciência Política na mesma Universidade, do Progra-
ma de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política, onde coordena o Núcleo de Sociologia Econômica
(Nusec). Agradeço a CAPES o apoio através do projeto de convênio internacional CAPES COFECUB: A dis-
seminação dos saberes espertos no domínio da Infância, no qual a presente pesquisa está integrada. E-mail:
marciadasilvamazon@yahoo.com.br
Dos diagnósticos aos manuais: mercado farmacêutico e transtornos mentais da infância em questão | Marcia da Silva Mazon
116 115 – 140
1 Introdução: nosologia, medicamentos e mercados
Estudos recentes focam as relações entre empresas farmacêuticas e
a psiquiatriabem como sua interação com indivíduos e seus corpos na
inauguração de novos produtos no mercado. Alguns autores observam
o poder excepcional da indústria de fármacos, em particular os psico-
trópicos, atribuindoa esta a capacidade de manipular necessidades e de-
sejos coletivos, em particular quando o assunto são os medicamentos
para transtornos mentais (PETRYNA; LAKOFF;KLEINMAN, 2006;
HEALY, 2006; WHITAKER, 2017). O advento da nova psiquiatria
biomédica de um lado é comemorado como resultado de descobertas
cientícas que levarão a descobertas médicas; de outro, é criticado como
uma forma sinistra de controle social ligada a uma perda de autonomia
e responsabilidade pessoal (LAKOFF, 2002; CAPONI, 2014, 2019).
Igualmente a nova psiquiatria biomédica torna a indústria farmacêutica
poderosa: as drogas psiquiátricas são “a maior fonte de renda” dos fabri-
cantes do setor (FRANCES, 2016, p. 15).
O assunto ganha tons mais fortes quando o objeto são os transtornos
mentais da infância ou a epidemia do Distúrbio de Décit de Atenção
e Hiperatividade (TDAH) capitaneada pela promoção, demanda e abu-
so deRitalina® e Adderal® nas escolas secundárias americanas – fenômeno
ampliado nas últimas décadas. A situação não é muito diferente no Brasil,
segundo país maior consumidor de psicotrópicos na infância, em parti-
cular metilfenidado(Ritalina) (CAPONI, 2014, 2016, 2019). Conforme
Lako (2000), nos EUA mais frequentemente os pais do que pediatras
ou psiquiatras estão buscando diagnósticos para seus lhos. Igualmente
no Brasil ganha impulso na última década a discussão legal de iniciativas
que defendem a psiquiatrização da infância, exemplos de Santa Catarina e
do Rio Grande do Sul onde alguns municípios encaminharamprojetos de
leis municipais de prevenção,detecção precoce e diagnóstico de transtornos
mentais na infância2(CAPONI, 2019, p. 190).
2 Importante considerar que, a partir das críticas da IX Conferência Nacional de Saúde em 1992, haverá uma
reforma no Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Esta reforma desloca para os municípios o papel gestor
da saúde e será responsabilidade dos municípios coordenarem os serviços de saúde na medida em que há uma
generalização da transferência automática de recursos para ao âmbito municipal (VIANA, 2000, p. 129).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT