Dos negócios jurídicos celebrados por pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual: entre a validade e a necessária proteção da pessoa vulnerável

AuthorRodrigo da Guia Silva e Eduardo Nunes de Souza
ProfessionMestrando em Direito Civil pela UERJ. Advogado/Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil da UERJ. Assessor Jurídico do Tribunal do Rio de Janeiro
Pages275-317
Dos negócios jurídicos celebrados por pessoa
com deficiência psíquica e/ou intelectual:
entre a validade e a necessária proteção
da pessoa vulnerável
Rodrigo da Guia Silva*
Eduardo Nunes de Souza**
1. Introdução
Passadas quase três décadas da promulgação da Constituição de 1988,
não é incomum que o civilista ainda se depare com institutos pouco sensí-
veis ao projeto personalista do texto constitucional. Este parece ser o caso
da teoria das incapacidades — tradicional reduto do pensamento estrutura-
lista no direito civil que, em sua configuração binária, costuma reduzir o
problema da proteção de pessoas com discernimento limitado à criação de
duas espécies de castas incomunicáveis: capazes e incapazes.1 Trata-se de
inadmissível simplificação da questão. De fato, a complexidade da mente
humana põe em xeque a antiquada noção segundo a qual a falta de discer-
nimento afetaria do mesmo modo a aptidão para a realização de todo e qual-
quer ato da vida civil sem qualquer gradação, em uma mudança de perspec-
tiva que já foi denominada “a revanche da vida” sobre as regras jurídicas.2
* Mestrando em Direito Civil pela UERJ. Advogado.
** Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil
da UERJ. Assessor Jurídico do Tribunal do Rio de Janeiro.
1Cuida-se do raciocínio descrito por Stefano RODOTÀ como a “lógica binária da
alternativa seca entre o sim e o não, entre a capacidade e a incapacidade” (La vita e le
regole: tra diritto e non diritto. Roma: La Feltrinelli, 2006, p. 28. Tradução livre).
2 Em emblemática passagem, pondera Stefano RODOTÀ: “A revanche da vida co-
meça quando se coloca de cabeça para baixo a impostação que vê na pessoa quase ex-
clusivamente o sujeito econômico e identifica a sua capacidade de tomar decisões subs-
tancialmente com a capacidade patrimonial. A consideração integral da personalidade,
e assim a plenitude de vida, quebram esse esquema, impõem considerar na concretude
do real, caso a caso, as situações nas quais se pode e se d eve at ribui r rele vânci a à von ta-
de de quem, de outra forma, seria considerado incapaz. Não basta, assim, a identifica-
ção preventiva de uma figura abstrata de incapaz. É preciso considerar a pessoa através
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Se a incapacidade por razão etária ao menos permite ao indivíduo uma
espécie de libertação desse sistema uma vez alcançada a maioridade civil, o
mesmo não podia ser dito na maior parte dos casos de pessoas com deficiên-
cia psíquica ou intelectual, comumente vítimas de nefastas interpretações,
pretensamente jurídicas, que confundiam a necessária restrição à prática
pessoal de certos atos com a negação plena de sua autonomia. Originalmen-
te inspirada por uma função protetiva, a incapacidade civil que se atribuía a
essas pessoas acabava por ser degenerada em uma espécie de desconsidera-
ção do status personae, que aprisionava o indivíduo em um sistema despre-
parado para lidar com os diferentes graus de discernimento que poderiam
conviver com a deficiência psíquica ou intelectual.3
Para além da invisibilidade política e da marginalização social que infe-
lizmente acompanham as deficiências da mente, do ponto de vista jurídico
a técnica das incapacidades permanecia alheia, até relativamente pouco
tempo, à própria evolução da ciência. O codificador de 2002 pareceu atre-
lado, em larga medida, à figura que o Código Civil anterior designava como
louco de todo gênero, isto é, o indivíduo acometido de uma enfermidade
mental manifesta e perigosa para terceiros — no jargão da mais tradicional
doutrina civilista, o louco furioso. Por trás de suposta naturalidade na carac-
terização da incapacidade ocultava-se uma escolha injusta entre a restrição
total ou a completa falta de proteção aos enfermos mentais — em verdade,
muito mais creditável à rigidez do sistema do que à própria natureza.4
de uma contínua série de facetas, ora reconhecendo-lhe capacidade autônoma de deci-
são, ora acompanhando-lhe com formas de apoio [sostegno]. [...] E a categoria fechada
dos enfermos de mente, os excluídos por definição, releva a possibilidade de um agir
autônomo graças a formas de apoio que os acompanham em momentos particulares da
existência. A atenção crescente para as ‘situações de natureza existencial’ abre a porta
a novos equilíbrios jurídicos” (La vita e le regole, cit., pp. 27-28. Tradução livre).
3 Nesse sentido, destaca Pietro PERLINGIERI: “Todo homem, enquanto tal, é titu-
lar de situações existenciais representadas no status personae, das quais algumas, como
o direito à vida, à saúde, ao nome, à própria manifestação do pensamento, prescindem
das capacidades intelectuais. O estado pessoal patológico ainda que permanente da
pessoa, que não seja absoluto ou total, mas graduado e parcial, não se pode traduzir em
uma série estereotipada de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto,
isto é, levando em conta o grau e a qualidade do déficit psíquico, não se justificam e
acabam por representar camisas de força totalmente desproporcionadas e, principal-
mente, em contraste com a realização do pleno desenvolvimento da pessoa” (O direito
civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 781).
4Como alerta RODOTÀ, “[...] a loucura remete a uma alteração de uma normalida-
de cujas características são exatamente ditadas pela natureza”, de modo que “[N]ão
seria, então, o direito a excluir, mas a natureza própria do sujeito ao qual se refere a
exclusão” (La vita e le regole, cit., p. 28. Tradução livre).
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Contudo, a doutrina mais atenta ao imperativo de tutela da pessoa em
sua concreta vulnerabilidade já identificava a necessidade de se graduar a
técnica jurídica da incapacidade, respeitando-se, tanto quanto possível, a
autonomia individual, particularmente em matérias existenciais.5 Tanto no
Brasil quanto em outros ordenamentos, cresciam as propostas de ampliação
da autonomia reconhecida aos incapazes, inclusive (e particularmente) às
pessoas com deficiência psíquica ou intelectual, evitando-se o paternalismo
desnecessário e comumente injusto que tantas vezes desconsiderava por
completo a vontade do incapaz.6
Premido pelo crescente despertar da comunidade internacional a res-
peito da situação das pessoas com deficiências mentais, porém, recorreu o
legislador brasileiro, em busca de promover a inclusão social dessas pessoas,
a uma solução tão radical quanto a do codificador: reformando o sistema das
incapacidades, estipulou, com a Lei n. 13.146/2015, que passariam a ser
consideradas plenamente capazes na ordem civil. Movido por um nobre
propósito, tomou a academia jurídica de assalto, ao modificar um dos pila-
res da teoria geral do direito civil, com repercussões cujos exatos contornos
apenas a prática quotidiana poderá demonstrar.
A mudança, porém, não poderia ser mais oportuna para motivar o deba-
te quanto à verdadeira questão subjacente à incapacidade: o necessário con-
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5Propõe Pietro PERLINGIERI “[...] privilegiar, na medida do possível, as escolhas
de vida que o deficiente psíquico é capaz concretamente de exprimir ou em relação às
quais manifesta grande propensão. A disciplina da interdição não pode ser traduzida
em uma incapacidade legal absoluta, em uma ‘morte civil’. Quando concretas, possí-
veis, ainda que residuais, faculdades intelectuais e afetivas podem ser realizadas de
maneira a contribuir para o desenvolvimento da personalidade, é necessário que sejam
garantidos a titularidade e o exercício das expressões de vida que, encontrando funda-
mento no status personae e no status civitatis, sejam compatíveis com a efetiva situa-
ção psicofísica do sujeito” (O direito civil na legalidade constitucional, cit., pp. 781-
782).
6“Trata-se agora de reconhecer esse andamento irregular da vida, substituindo um
direito que já decidiu uma vez por todas por uma disciplina que reconhece e acompa-
nha a variedade das situações concretas, fazendo de vez em quando emergir aquelas nas
quais pode assumir relevo a vontade da pessoa que, de outra forma, seria reputada
incapaz. [...] Nasce, assim, um direito fático, que não afasta de si a vida, mas busca
penetrá-la; que não fixa uma regra imutável, mas desenha um procedimento para o
contínuo e solidário envolvimento dos sujeitos diversos; que não substitui à vontade do
‘débil’ o ponto de vista de um outro (como quer a lógica do paternalismo), mas cria as
condições para que o ‘débil’ possa desenvolver um ponto de vista próprio (segundo a
lógica do apoio)” (RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole, cit., p. 28. Tradução livre.
Grifos do original).

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