Dos recursos
Autor | Manoel Antonio Teixeira Filho |
Páginas | 1185-1360 |
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Uma longa e necessária introdução ao sistema
dos recursos trabalhistas
O objetivo deste livro — como evidencia o seu
título — é comentar as disposições do CPC à luz do
processo do trabalho; todavia, como nem todos os
recursos previstos no CPC são aplicáveis ao proces-
so do trabalho; como, no processo do trabalho, há
recursos não previstos no CPC; e como nem todos
os temas pertinentes aos recursos estão materializa-
dos nas normas do CPC, da CLT, ou da legislação
processual avulsa, entendemos necessário adotar o
seguinte procedimento:
a) antes dos comentários aos artigos do CPC fa-
remos considerações de natureza propedêutica, que
servirão como uma espécie de pano de fundo para
melhor compreensão das normas do CPC e da pró-
pria CLT;
b) ao examinarmos os artigos do CPC que tra-
tam dos recursos em espécie adaptaremos essas
disposições ao sistema do processo do trabalho, seja
colocando de lado o exame de alguns recursos do
CPC, seja adaptando-os ao processo do trabalho.
1. Duplo grau de jurisdição
Foi com um Decreto francês de 1º de maio de 1790
(segundo o qual “Il y aura deux degrés de jurisdiction
em matière civile, sauf exceptions particulières”) —
consequência direta da Revolução de 1789 — que se
rmou, em denitivo, no plano do direito processual
moderno, o princípio do duplo grau de jurisdição. É
bem verdade que essa duplicidade de graus jurisdi-
cionais foi desfeita pela Constituição francesa de 1793,
vindo, entretanto, a ser restabelecida pela de 1795.
A contar daí, assegurou-se ao litigante vencido, to-
tal ou parcialmente, o direito de submeter a matéria
contida na decisão de primeiro grau a reexame por
órgão da jurisdição superior, desde que atendidos
certos pressupostos especícos, previstos em lei. Na
verdade, não nos parece correto armar que o duplo
grau de jurisdição se caracteriza pela possibilidade
de a matéria ser submetida a novo exame (por outro
órgão judicial). O que se submete a novo julgamento
é a causa. Digamos que a sentença extinga o processo
sem apreciação do mérito (lide) e que o tribunal dê
provimento ao recurso do autor, para afastar a cau-
sa que levou à extinção do processo e, em seguida,
julgue o mérito (nos casos em que a lei lhe permite
assim agir). Nesta hipótese, não teria havido, em ri-
gor, novo julgamento da matéria (de mérito), pelo
tribunal, senão que novo julgamento da causa.
É necessário, todavia, que não se estabeleça equí-
voco entre os conceitos de duplo grau de jurisdição e
duplo exame; nada obstante ambos constituam prin-
cípios processuais, pelo primeiro torna-se efetiva a
possibilidade de revisão das decisões secundárias,
em regra por órgãos jurisdicionais superiores, en-
quanto pelo segundo permite-se que o reexame
ocorra pelo próprio órgão proferidor da decisão
impugnada (como se dava com os embargos de nu-
lidade e infringentes do julgado, que se opunham às
decisões dos órgãos trabalhistas de primeiro grau,
sendo por estes julgados: CLT, art. 652, “c”). Os
embargos de declaração, em casos como o de con-
tradição, podem conformar-se ao conceito de duplo
exame, porquanto o órgão emissor da decisão em-
bargada terá de apreciar, novamente, as questões
decididas, a m de eliminar as proposições antagô-
nicas referentes a elas.
Podemos armar, desde logo e sem exaustão do
conceito, que recurso é o instrumento pelo qual a
parte (legítima e interessada), atendidos os demais
pressupostos legais, solicita (em geral a um órgão
superior) um novo pronunciamento jurisdicional
sobre a matéria anteriormente submetida à cognição
do juízo inferior.
Aí está nitidamente estabelecida a correlação en-
tre o recurso e o duplo grau de jurisdição, embora
aquele seja um instituto jurídico e este, um princípio
(infraconstitucional, aliás). É por meio do primeiro,
contudo, que o segundo se manifesta, tornando-se
concreto no mundo jurídico.
No processo do trabalho, a concreção da du-
plicidade de graus jurisdicionais realiza-se por
intermédio do recurso ordinário (CLT, art. 895), o
mesmo se podendo dizer da apelação quanto ao
processo civil.
A Justiça do Trabalho, no entanto, à desseme-
lhança da comum (estadual ou federal), apresenta
três graus de jurisdição: no primeiro estão as Varas
do Trabalho (CLT, art. 647), ou os juízes de direito
(CLT, art. 668), conforme seja a hipótese; no segun-
do situam-se os TRTs (CLT, art. 670) e, no terceiro, o
TST (CLT, art. 690) — fato que autoriza a asseverar-
-se a existência, nesta Justiça Especializada, não
de uma duplicidade, mas sim de uma triplicidade de
graus jurisdicionais, conquanto o esgotamento de
TÍTULO II
DOS RECURSOS
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
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todos esses graus não esteja, na prática, livre de di-
culdades. Assim dizemos porque a interposição de
recurso de revista, para o TST, está subordinada, ri-
gidamente, aos estritos casos previstos em lei (CLT,
art. 896, “a” a “c”), e nas diversas Súmulas daquele
Tribunal, cujo primeiro exame de admissibilidade é
efetuado pelo próprio órgão a quo (ibidem, § 1º), que
poderá, em decorrência disso, denegá-lo.
É de sugerir-se que, de lege ferenda, se procure res-
tringir a possibilidade de interposição de recursos
das decisões proferidas pelos órgãos da Justiça do
Trabalho, tendo em vista que a atual amplitude, com
que isso ocorre, se manifesta atentatória à necessida-
de indeclinável de rápida formação da coisa julgada;
a existência de um terceiro grau de jurisdição, mes-
mo com as apontadas diculdades de acesso ao TST,
pelo revista, contribui, longe de dúvida, para a frus-
tração desse anseio de celeridade na constituição da
res iudicata material.
Vale lembrar que a adoção, pelo direito proces-
sual brasileiro, do duplo grau de jurisdição (doble
instancia, em língua espanhola) foi antecedida de
críticas, até certo ponto contundentes; chegou-se,
mesmo, a colocar a questão nestes termos: a) ou os
órgãos da jurisdição superior são, presumivelmente,
mais capacitados que os inferiores, quanto à reali-
zação da justiça, e neste caso seria recomendável
encaminhar diretamente a eles a ação que se pre-
tendesse promover, ou, ao contrário, b) não devem
ser depositários dessa presunção de preeminência
jurídica, diante do que haveria um grande risco de
conar-lhes o reexame da matéria, visto que pode-
riam substituir uma decisão correta por uma errada.
Esta foi, a propósito, a preocupação manifestada, há
séculos, por Ulpiano.
A par destas, outras objeções foram formuladas à
duplicidade de graus jurisdicionais:
a) a conrmação da sentença, pelo órgão superior,
implicaria supérua atividade para o Judiciário,
porquanto a manutenção do julgado traria em si
uma declaração de ter sido perfeita a decisão do
grau inferior;
b) ao contrário, eventual reforma da decisão se-
cundária envolveria certo desprestígio do Estado,
porque isto importaria no reconhecimento de um
erro daquela decisão, que fora prolatada, em última
análise, pelo mesmo Estado (Poder Judiciário);
c) os recursos retardam a formação da res iudicata
e provocam um prolongamento do conito de in-
teresses em que se encontram enredadas as partes,
além de infundir-lhes maior insegurança quanto ao
êxito ou ao fracasso nal das pretensões que dedu-
ziram em juízo;
d) a utilização dos recursos, pelo litigante de
má-fé, em vez de servir ao direito, o escoria sensi-
velmente.
Não faltaram, entretanto, apologistas do duplo
grau de jurisdição, podendo ser assim sintetizados
os argumentos dessa corrente doutrinária:
a) a garantia dos recursos está jungida a uma ne-
cessidade humana, pois ninguém se conforma com
um julgamento único e desfavorável;
b) o recurso atua como forma de puricação da
sentença, escoimando-a de erros;
c) os recursos são apreciados por um órgão
colegiado, composto de juízes dotados de maior ex-
periência no ofício de julgar;
d) a possibilidade de recorrer faz com que o juízo
inferior seja mais prudente, mais cioso no profe-
rimento da decisão, sabendo que esta poderá ser
submetida ao crivo do órgão superior, que tem com-
petência para reformá-la, se for o caso.
Coloquemos um grão de sal na discussão do
tema.
Os argumentos expostos em defesa do duplo
grau de jurisdição talvez no cargo há impressionem
o processo civil, em atenção ao qual, aliás, foram
concebidos; em face do processo do trabalho, porém,
perdem muito da relevância que pudessem ter, em
virtude dos princípios informadores deste processo,
dentre os quais ressalta o da celeridade.
Respeitante à alegação (ou suposição) de
possuírem os juízes dos graus superiores maior co-
nhecimento jurídico das questões suscitadas na ação
e apreciadas pela sentença, não se há, venia permissa,
como reconhecer-lhe ecácia plena, visto que pres-
supõe serem o saber e a cultura jurídicos produtos
do tempo, da prática reiterada, da vivência, enm;
convém chamar a atenção, todavia, para o fato de,
não raro, haver nos órgãos superiores magistrados
investidos muito menos tempo do que os de primeiro
grau, como ocorre, p. ex., quando é oriundo da classe
dos advogados ou do Ministério Público; suposição
dessa natureza, ademais, conduziria à inevitável
conclusão de constituírem os juízes de primeiro
grau algo como uma espécie de aprendices para re-
solver mal los assuntos, de modo a ser imprescindível
a existência dos órgãos superiores, incumbidos de
corregir los errores de aquellos, na precisa observação
de Tomás Jofre (apud LIMA, Alcides de Mendonça,
obra cit., p. 134).
Quanto ao fato de a parte não se conformar
com um julgamento único e dasfavorável, a sua
aceitação implicaria atribuir a uma simples reação
psicológica do indivíduo uma relevância jurídica
que ela, em verdade, não tem. Em rigor, toda pessoa
vencida na ação pode ser tomada por esse estado
de “insatisfação psicológica”, mesmo sabendo, no
foro da sua consciência, que a sentença foi correta
e justa. A nosso ver, a própria previsão legal do li-
tigante de má-fé (improbus litigator) deita por terra,
implicitamente, qualquer importância que se pu-
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1187
desse reconhecer à insatisfação da parte diante de
um provimento jurisdicional desfavorável. Não há
como conciliar a presença dessa espécie de litigante
com a insatisfação subjetiva, que se tem procurado
elevar à categoria de argumento destinado a justi-
car a necessidade do duplo grau de jurisdição.
Fosse de prevalecer essa alegação de desagrado
psicológico, como justicar-se o fato de não se con-
sentir que o litigante vencedor em primeiro grau
e vencido em segundo interponha recurso ordiná-
rio do acórdão do Tribunal Regional para o TST,
considerando-se ter sido esta a primeira decisão
desfavorável aos seus interesses? Ou, acaso, se pre-
tende que essa diáfana “insatisfação psicológica”
justique a interposição de recurso ordinário para o
TST, mesmo fora das hipóteses em que a decisão do
Tribunal Regional tenha sido proferida em matéria
de sua competência originária?
O processo do trabalho há de receber com a ne-
cessária reserva, portanto, a armação do ilustre João
Monteiro (Teoria do processo civil. 6. ed., tomo II. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1956. p. 607), quanto a estar “na
própria natureza humana a gênesis da apelação...”.
De outro ponto, os recursos nem sempre acabam
aperfeiçoando as decisões de primeiro grau; são co-
nhecidos por todos os casos em que, ao contrário,
um mau acórdão substitui uma boa sentença. Diante
disso, como poderia sobreviver a armação de pos-
suírem ditos remédios um caráter puricador das
decisões inferiores?
Propalar-se, ainda, que o juiz, sabendo que a sua
sentença poderá ser apreciada pelo órgão da jurisdi-
ção superior, via interposição de recurso, tratará de
elaborá-la com maior atenção e zelo é insinuar, data
venia, que os magistrados de primeiro grau são pes-
soas irresponsáveis e que requerem, por esse motivo,
uma vigilância por parte dos órgãos da jurisdição
superior, a quem se atribuiu, com vistas a isso, o
encargo de corrigir-lhes os desacertos na entrega da
prestação jurisdicional. Acreditamos não residir nes-
te fato a circunstância de terem os juízes de primeiro
grau aquela liberdade vigiada, de que tanto fala a dou-
trina (BERMUDES, Sérgio, obra cit., p. 11).
É absolutamente imperativo advertir, como
o fez Chiovenda, que “No Estado moderno não é
possível a pluralidade das instâncias fundar-se na
subordinação do juiz inferior ao superior, por não
dependerem os juízes, quanto à aplicação da lei,
senão da lei mesma” (Princípios de derecho procesal
civil. Tomo II. Madrid: Instit. Editorial Reues, sem
data. p. 98).
As redarguições que efetuamos aos argumentos
empenhados na defesa do duplo grau de jurisdição
não signicam, como se possa conjecturar, que es-
tejamos, com essa atitude, nos colocando ao lado
dos que preconizam a total supressão dos recursos;
nossas objeções foram formuladas, apenas, para
demonstrar que aquelas razões, nimiamente civilis-
tas, quando trasladadas para o campo peculiar do
processo do trabalho, perdem, em boa parte, a im-
portância que possam ter.
Somos dos que entendem que os recursos cons-
tituem, sem dúvida, um instituto salutar, porque
contribuem, em muitos casos, para a perfectibilida-
de das decisões judiciais e, de certa forma, para a
denição de algumas questões controvertidas; dis-
cordamos, entretanto, da ampla possibilidade que as
leis processuais trabalhistas concedem ao litigante
vencido para provocar o reexame da matéria pelo
grau superior — mesmo estando consciente da exa-
ção da sentença impugnada.
1.1. Duplo grau e Constituição
A apreciação do tema relativo ao duplo grau de
jurisdição, a que estamos nos dedicando, não pode-
ria ser concluída sem que examinássemos se, no caso
brasileiro, esse princípio está previsto ou assegura-
do constitucionalmente, pois será da conclusão que
quanto a isto chegarmos que extrairemos os funda-
mentos da opinião que, mais adiante, expenderemos
a respeito da supressão, em determinadas hipóteses,
dos recursos.
Iniciemos ressaltando que a investigação acerca
deste assunto cindiu, com certa profundidade, a
doutrina.
Autores de nomeada, p. ex., vêm sustentando que
o duplo grau de jurisdição possui previsão consti-
tucional implícita, argumentando com o fato de o
art. 92, caput, do Texto Supremo, haver minuden-
ciado, em seus incisos, os órgãos aos quais compete
o exercício da administração da justiça, sendo que
dentre eles encontram-se os diversos tribunais, lá es-
pecicados. Desta maneira, a duplicidade de graus
de jurisdição estaria congurada pela referência aos
tribunais, aos quais a Constituição da República
atribui competência para o julgamento dos recursos
— sem prejuízo das matérias que lhes são da com-
petência originária.
Não é assim que entendemos.
Em nenhum momento, data venia, o texto cons-
titucional proclama, mesmo pela via implícita, a
presuntiva garantia do duplo grau de jurisdição; o
que o art. 92, caput, está a indicar é a mera possibili-
dade de o interessado interpor recurso para os graus
superiores da jurisdição, sendo exatamente para
esse m que os seus incisos cuidaram de detalhar
a competência recursal dos tribunais ali mencio-
nados, sem que seja lícito ao intérprete vislumbrar
na dicção do precitado artigo qualquer declaração
assecuratória da presença institucional de uma du-
plicidade de graus jurisdicionais.
Por outra maneira de nos expressarmos: a
existência dos tribunais, naquele dispositivo cons-
titucional, deve ser interpretada, exclusivamente,
como o reconhecimento da viabilidade de provocar-
-se o reexame da matéria versada na ação, por órgão
Art. 993
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