Dosimetria das Penalidades Regulatórias e a Interpretação Atualizada do Poder Discricionário da Administração

AutorAlice de Siqueira Khouri e Maria João C. P. Rolim
Ocupação do AutorGraduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)/Doutoranda do Centre for Energy, Petroleum and Mineral Law and Policy (CEPMLP) da Universidade de Dundee/Escócia
Páginas70-86
70 DOSIMETRIA DAS PENALIDADES REGULATÓRIAS E A INTERPRETAÇÃO ATUALIZADA DO PODER...
4.1 INTRODUÇÃO
Desde o início da década de 1990, o Brasil adota, para o setor elétrico, o
modelo de regulação por Agência especializada. Para determinados setores,
e, em particular, para o setor elétrico, o modelo regulatório surge da reorga-
nização tecnológica e estrutural de determinadas indústrias, notadamente
as de infraestrutura, aliado a fatores idológicos relacionados ao reposiciona-
mento do papel do Estado na economia, privilegiando um papel de menos
intervenção direta e maior supervisão regulatória.1
É nesse contexto que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL),
Autarquia Especial e integrante da Administração indireta, foi criada para
exercer a função de órgão regulador do setor elétrico, tendo como inali-
dade primordial regular e iscalizar a produção, transmissão, distribuição e
comercialização de energia elétrica, dentro do alcance e limites de atuação
deinidos na Lei de sua constituição, nº 9.427 de 1996.2
Dentre as suas competências, de limites especiicamente questionáveis
a depender do caso concreto, está o “poder”3 de sancionar, que de acordo
1
A ideia de “Estado Regulatório” ganha maior relevância no início dos anos 1980, em
países industrializados com relexos no ano posterior em economias em desenvolvi-
mento, como o caso do Brasil. Conforme G. Majone, “privatization and deregulation
have created the conditions for the rise of the regulatory state to replace the diri-
gist state of the past. Reliance on regulation- rather than public ownership, plan-
ning or centralised administration – characterises the methods of the regulatory
state” (The rise of the regulatory state in Europe. West European Politics, v. 17, n.
3, p. 77-101, 1994). Vide também: MAJONE, G. The regulatory state and its legiti-
macy problems. West European Politics, v. 22, n. 1, p. 1-24, 1999. Não obstante, a
consolidação e o crescimento da ideia do “Estado Regulatório” ter ocorrido prio-
ritariamente no inal da década de 1980, a regulação setorial tem suas origens
em tempos bem anteriores, como ressalta o professor Mayo, W. The evolution of
regulation: twentieth century lessons and twenty-irst century opportunities.
Federal Communications Law Journal, v. 65, p. 119, 2013: “Between the 1880s,
with its introduction of federal railroad regulation, and the begining of WWII, a
number of federal regulatory agencies were created to regulate the transportation,
telecommunications, ϔinancial, and energy industries. What emerged during this
period was a remarkably stable set of regulatory institutions and industries.”
2 Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Disciplina o regime das
concessões de serviços públicos de energia elétrica e dá outras providências.
3 Referencia-se a função do Poder Público como “poder” por respeito às doutrinas
clássicas administrativistas, mas referida ideia não mais reside no plano da
imperatividade apenas, ocupando na doutrina moderna de hoje um signiicado
de função, de “poder-dever” em verdade. Sobre essa tendência, Celso Antônio
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com parte da doutrina
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conigura-se fase do poder de polícia do qual se
reveste a Agência para, no uso de suas atribuições, perquirir o melhor inte-
resse público.
Há também na doutrina quem defenda que o “poder” sancionatório
não é mais que o desmembramento da função iscalizatória da Agência, que,
quando da apuração e veriicação das condutas dos agentes de mercado,
tem o dever de punir aquelas que se caracterizarem como infratoras, nos
liames traçados pela Lei e pelo regulamento.
Independentemente da corrente doutrinária que se escolha para
observar o ângulo da origem da penalidade aplicada pela ANEEL, o que se
tem certo é que o “poder” sancionador da Agência é delegado por Lei e deve
ser exercido nos limites desta. Nessa perspectiva, quando da análise do tema,
surgem sempre certas questões concernentes à extensão do poder punitivo
da Agência, a saber: a dosimetria para a aplicação das sanções seria ativi-
dade tipicamente discricionária da Agência ou, ainda que indiretamente, a
Lei também traria critérios de sua aplicação? Quais seriam os limites dessa
discricionariedade quando do cálculo e da escolha da penalidade? Poderia
o Poder Judiciário revisar o ato da dosimetria?
Referidas questões e suas respostas tomam lugar importantíssimo
no Estado Democrático de Direito, que é marcado, primordialmente, pelo
Bandeira de Mello leciona: “Tendo em vista esse caráter de assujeitamento do poder
a uma ϔinalidade instituída no interesse de todos e não da pessoa exercente do
poder as prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas
como ‘poderes-deveres’. Antes se qualiϔicam e melhor se designam como ‘deveres-
-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto
subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então o aspecto ϔinalístico
que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações.” (MELLO, 2007, p. 69)
4
A exemplo, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a respeito do poder de polícia,
considerando a amplitude e a abstração do mesmo, encarregou-se de classiicá-lo
em quatro fases, quais sejam: (i) ordem; (ii) consentimento; (iii) iscalização; e
(iv) sanção. Segundo as lições do referido professor, as quatro atividades corres-
pondem ao “ciclo de polícia”, onde a (a) ordem de polícia é o preceito legal que
dá validade à limitação prevista; (b) o consentimento de polícia é o ato adminis-
trativo que confere anuência ao exercício de atividade ou ao uso de propriedade;
(c) a iscalização de polícia é a veriicação se as ordens de polícia estão sendo
cumpridas, e, por im; (d) a sanção de polícia compreende a aplicação de penali-
dades pertinentes à infração cometida por violação a deveres impostos. (MOREIRA
NETO, 2014, p. 440-455)

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