Doutrinas da Baixa Idade Média

AutorJônatas Luiz Moreira de Paula
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre (UEL), Doutor (UFPR) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra). Professor Titular e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAR (Universidade Paranaense)
Páginas89-194

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1. O Renascimento e o pensamento político
1.1. Uma nova ciência surge na humanidade

Em decorrência do pensamento cristão, concebeu-se que existem dois mundos: o dos homens e o de Deus. No mundo dos homens muitas pessoas se dedicavam inteiramente à Igreja, pois quase tudo girava em torno dela. Sabedoria, caridade, administração, justiça e grandes esforços da vida econômica se desenvolviam no âmbito e nas regras da religião. Aliás, a Igreja era para a maioria dos homens e mulheres o único registro e o único autenticador dos grandes momentos das suas existências – nascimento, batismo, casamento, morte.1Porém, no mundo dos homens, Deus não conhece, não cria, não governa. Sendo assim, acentuou-se o humanismo e os valores profanos, onde o humano passou a ser mais importante do que o divino. Como proclamado por um renascentista: nada é mais admirável do que o Homem.2Esse dualismo, que não foi negado pelo pensamento cristão, mas desenvolvido, mediante o conceito de criação, em virtude da qual é ainda afirmada a realidade e a distinção entre o mundo (dos homens) e Deus, pois Deus é feito criador e regedor do mundo, que não pode ter explicação a não ser em Deus que transcende o mundo. O pensamento político que se institui a partir do Renascimento, ao contrário, finaliza em uma concepção monista-imanentista do mundo e da vida, consoante Padovani e Castagnola: não somente Deus e o mundo são a mesma coisa, mas Deus é resolvido num mundo natural e humano. Conseqüentemente, não se pode mais falar em transcendência de valores teoréticos e morais, religiosos e políticos, pois “ser” e “dever ser” são a mesma coisa, o “dever ser” coincide com o “ser”. Note-se que o pensamento científico que ora se institui apóia-se em valores empíricos e técnicos. Galileu Galilei, o grande fundador dessa nova ciência, afirmava que o objeto

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da ciência não é a essência metafísica das coisas, e sim os fenômenos naturais, experimentalmente provados e matematicamente conexos. E destes conhecimentos experimentais e matemáticos de fenômenos naturais derivava ele as primeiras grandes aplicações técnicas da ciência moderna. Aplicações técnicas que possuem também um valor espiritual, o do domínio natural do homem sobre a natureza, contanto que o homem reconheça, naturalmente, acima de si e de tudo, a existência de Deus.3Em vista disso, acrescem Padovani e Castagnola, o grandioso edifício ideal da Idade Média, em que religião e civilização, teologia e filosofia, Igreja e Estado, clero e laicado, estavam harmonizados na transcendente unidade cristã, foi, de fato, destruído pelo humanismo imanentista, que constitui o espírito característico do pensamento moderno. Esse pensamento começa com a prevalência dada aos interesses e aos ideais espirituais e religiosos; e torna-se completo com a justificação dos primeiros e a exclusão dos segundos. É precisamente o que acontece com os homens inteiramente entregues aos cuidados mundanos: primeiro se esquecem das coisas transcendentes, e, em seguida, na busca da coerência, negam-nas.4O Renascimento tem as suas raízes na redescoberta de parte do passado da Europa que foi obscurecida pela civilização cristã durante a Idade Média. Há um retorno ao passado clássico da Grécia e de Roma. Observa-se um resgate dos grandes filósofos gregos na pintura e os escritores humanistas imitaram o estilo romano Cícero para escrever em latim elegante. Mas é na arte – pintura, escultura, gravura, arquitetura, música e poesia – que a Renascença melhor se apresenta, deixando para gerações futuras um conceito moldado de beleza. Michelangelo, Rafael e Leonardo da Vinci são os artistas mais destacados desse período.5Os fatos também contribuíram por essas mudanças e para que elas se mantivessem. Nicolau Copérnico havia demonstrado que a Terra não era o centro do Universo, conforme proclamava o sistema ptolomaico. No âmbito do pensamento religioso, Lutero deflagrara a Reforma cristã. Com a queda do Império Romano Oriental, intelectuais gregos emigraram para o Ocidente, sobretudo na Itália, dedicando-se ao estudo da língua natal e verter para o latim as obras clássicas. Com a invenção da imprensa, permitiu-se maior difusão entre o velho e novo pensamento. Como as idéias medievais já não

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mais satisfaziam, os espíritos cultos abandonaram o dogmatismo em prol de uma visão crítica da realidade. Partiram em busca de outros modelos que se harmonizassem com as exigências da época. As concepções gregas e latinas da Antigüidade forneceram subsídios valiosos aos intelectuais na concepção do humanismo.6Os precedentes especulativos do pensamento moderno assentam-se no panteísmo neoplatônico, que teve nome como Scoto Erígena; no aristotelismo de Averroés, com a sua famosa doutrina das duas verdades, ao conceber que o que não é verdadeiro em filosofia pode ser verdadeiro na religião e vice-versa; e no nominalismo occamista, que marca a conclusão lógica da decadente escolástica pós-tomista e com o empirismo de Nicolau de Cusa, Bernardino Telésio, Giordano Bruno, Tomás Campanella.7No plano da Filosofia Jurídica, observa-se em Guilherme Occam o florescimento da escolástica renascentista, sustentando que o universal era puro conceito da mente, não podendo ser demonstradas a existência de Deus e a imortalidade da alma, e a lei seria apenas vontade e a lei natural representaria somente o querer divino. A Escolástica Renascença recolocou o problema consistente em saber se é a inteligência ou a vontade o poder supremo (potentia nobilior).8Com o Renascimento, no século XV renova-se as antigas escolas filosóficas, com um retorno ao culto da sancta antiquitas, realçando o conteúdo de humanidade. Renova-se o pensamento platônico – Platão é considerado o ídolo da Renascença – e observam-se estudos procurando conciliar a filosofia platônica com o cristianismo. Máxima dessa adesão pode ser observada na obra Civitas solis (Cidade do Sol), de Tomás Campanella, onde há uma exposição teocrático-comunista, em que imagina uma república ideal, professando uma religião natural, governada por leis universais, e o sábio é simultaneamente o monarca e sacerdote.9Renova-se também o pensamento aristotélico, onde se exclui totalmente a interpretação tomista acerca de Aristóteles, por conta de duas correntes: a naturalista, inspirada em Alexandre Afrodísio, e a panteístaneoplatônica, inspirada em Averroés. Renova-se o pensamento estóico, onde no ambiente renascentista enaltece o homem, a vida e o mundo. Renova-se o

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epicurismo, que melhor condizia com o espírito humanista, imanentista e mundano da Renascença, em especial na vida gozadora e requintada, voluptuosa e artística das cortes da época, da literatura e do pensamento. E também se renova o ceticismo, onde se sede do individual, da concretude, a paixão pela observação detalhada própria do pensamento moderno em geral, a mentali-dade literária da época, a estética e a religiosidade persistente, para com isso alcançar uma finalidade prática: proporcionar sossego ao espírito.10

1.2. O surgimento das monarquias absolutistas

Note-se também neste período a decadência do feudalismo, com a diminuição ou até mesmo a eliminação dos poderes senhoriais, corporativos, eclesiásticos e municipais, em troca da centralização do poder real e a afirmação do Estado soberano. Esse período coincide com o surgimento das grandes monarquias européias: os reis católicos na Espanha, os Tudors na Inglaterra, e o absolutismo real na França, onde tudo culminará no l’État c’est moi de Luís XIV.11Quando se fala em Estado absolutista deve-se entender a respeito dos limites do poder estatal. Como leciona Norberto Bobbio, o Estado, entendido como a forma suprema de organização de uma comunidade, traz consigo, a partir de suas origens, a tendência de colocar-se como poder absoluto, isto é, como poder que não reconhece limites, uma vez que não reconhece acima de si mesmo nenhum outro poder superior. Este poder do Estado, chamado de soberania, porque se sobrepõe sobre todos os outros ordenamentos da vida social, se apresenta potestas superiorem non reconoscens.12Assim, surge o Estado absoluto, em razão da dissolução da sociedade medieval, que era de caráter eminentemente pluralista. O pluralismo se relacionava às diferentes fontes de produção jurídica e estava organizado em diversos ordenamentos jurídicos. A diversidade de fontes se dava, por exemplo, nos costumes (direito consuetudinário), a vontade da classe política que detém o poder supremo (direito legislativo), a tradição doutrinária (direito científico) e a atividade das cortes da justiça (direito jurisprudencial). Com relação aos ordenamentos, a diversidade se dava na existência de diversos ordenamentos jurídicos, como o da...

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