Driblando as Regras: um Ensaio sobre as Fraudes no Futebol

AutorMárcio Túlio Viana - Luís Felipe Lopes Boson - Marcelo Santoro Drummond
Páginas213-221

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Ver nota 1

1. Introdução

Poucas coisas na vida são como o futebol - pois o futebol, como diria o folclórico Neném Prancha2, são

muitas coisas na vida.

Neném Prancha está para o futebol assim como Sócrates está para a filosofia. Um teorizava sobre a bola; o outro, sobre o mundo. Ambos - bola e mundo - curiosamente redondos, sem começo nem fim.

Jogo e arte, trabalho e esporte, paixão e poder, irreverência e disciplina, o futebol tem sido um pouco de tudo: tema de romance, enredo de filme, letra de música, matéria de jornal, estudo fotográfico, rima de poesia...

Entre mil e outras coisas, é um modo de desabafar as raivas, esquecer as mágoas, encontrar amigos, fazer-se feliz ou infeliz. Para muita gente, é também uma forma de suprir carências; de se realizar simbolicamente através de um gol, de um título ou de um ídolo3.

Como trabalho, o futebol pode se tornar o único meio de vida para quem joga, ou para quem explora quem joga. E também sob esse aspecto o futebol é um jogo: depende não só das cartas distribuídas aos atores, mas das estratégias usadas por eles.

Aliás, desse jogo também participam - seja ou não por dinheiro - outros incontáveis atores: técnicos, massagistas, médicos, advogados, cartolas, roupeiros, gandulas, intermediários, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, publicitários, jornalistas, vendedores de picolé, árbitros, locutores, pais-de-santo, flanelinhas, olheiros, preparadores físicos... E ainda temos, naturalmente, os torcedores.

O jogo os envolve a todos. Eles fazem suas apostas, traçam os seus planos, realizam os seus sonhos; direta ou indiretamente, são tocados pelos gols do artilheiro, pelos dribles do craque, pelos milagres do goleiro. De certo modo - ou cada um ao seu modo - todos jogam. Não é sem razão que às vezes mexemos os nossos pés quando assistimos a um lance de gol...

No caso do atleta, o jogo pode nem ser um prazer:

Jogar é um prazer na praia, entre amigos, ou em criança, em terrenos baldios. Jogar no futebol profissional é levar pancada o tempo todo, cumprir ordens de treinadores nem sempre qualificados, é enfrentar torcedores que sabem dos salários astronômicos.4

E por ser o futebol todas essas contradições, o Direito, vendo-o passar, percebeu sua relevância e apropriou-se dele; e desde então ele se viu transformado em objeto de pesquisa não apenas de sociólogos, psicólogos, fotógrafos, artistas, jornalistas e historiadores, mas de sóbrios e circunspectos juristas.

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Como anunciamos no título, nesse pequeno texto falaremos das fraudes, que compõem uma das múltiplas faces jurídicas do futebol. Antes disso, porém, tentaremos mostrar como as próprias fraudes não se explicam por si mesmas - mas são elementos de uma realidade muito mais rica e complexa.

2. Futebol e vida

Se tivesse pensado no assunto, Neném Prancha também diria que tudo na vida se mistura - cada elemento potencializando o outro. E no futebol não poderia ser diferente.

Quais seriam os componentes da vida que o futebol nos revela?

Um deles é a velocidade. Se revermos os jogos da seleção brasileira da Copa de 1970 - nem tão distante assim no tempo - é possível que uma vez ou outra bocejemos de sono, quase como se assistíssemos a uma partida de golfe.

A partir da seleção holandesa de Cruyff, todos começaram a correr, à semelhança do que acontecia em outros campos da vida. E correr em todas as direções, bem ao contrário de quando Jairzinho, que atacava pela direita, nem sonhava em recuar para proteger Everaldo, que defendia pela esquerda.

Esse segundo fenômeno - correr em todas as direções - nos remete a um terceiro: a polivalência. Aliás, entre nós, foi no futebol que esse termo ganhou fama. Cláudio Coutinho, então técnico da seleção, usou-o pela primeira vez numa entrevista, para mostrar que até mesmo Reinaldo - o grande craque atleticano - teria de marcar pernas, além de gols.

Essa mesma polivalência está presente na empresa pós-moderna, que exige mais capacidade de mudar do que experiência acumulada; e também pode ser encontrada em tantos outros setores da vida, como nas universidades, que hoje celebram, mais do que nunca, a troca de saberes e a multidisciplinaridade.

E a polivalência nos remete ao pragmatismo. Depois de Chilavert - o primeiro goleiro que ousou fazer gols - surgiu Rogério Ceni, com mais de 100. Depois do 4-2-4 e do 4-3-3, as táticas não só se multiplicaram, mas se combinaram, variando até mesmo durante os jogos.

Na verdade, todos nós somos mais pragmáticos - para o bem ou para o mal. O próprio Direito do Trabalho revela essa tendência: regras se despregam de princípios5, do mesmo modo que os princípios são usados, abusados6 ou esquecidos de acordo com as conveniências.

Pragmatismo e polivalência nos lembram a mobilidade, que hoje se acentua não só dentro como fora do campo. São raros os jogadores que fazem carreira num mesmo clube. A maioria ou é logo descartada ou se descarta - como também acontece no mundo do trabalho em geral e (mais uma vez) com a regra jurídica, agora tantas vezes experimental e de curta vida.

Do jogador se exige alta performance, o que nos remete às academias de ginástica, aos programas de saúde, às exigências empresariais de qualidade total e até ao Livro dos Recordes, que há algum tempo registrava - entre outros casos extravagantes - a história de um homem que comeu um avião!7

Celeridade, pragmatismo e altas performances também são exigidos dos juízes do trabalho, não apenas, ou não tanto, porque sua Justiça seja às vezes morosa, mas porque ela - ou o Estado como um todo - vive uma crise de legitimidade, e precisa dar respostas visíveis (e também rápidas) à sociedade.

Essa aceleração da Justiça - embora, naturalmente, tenha o seu lado bom - lembra-nos um pouco o sindicalismo de resultados e às vezes a própria lei, quando ela se desconecta dos princípios. No caso do futebol, o que a obsessão pelo resultado exclui é o culto da arte, do jogo bonito, tão valorizado no passado por Telê Santana - o último treinador artista brasileiro, talvez hoje encarnado apenas pelo espanhol Guardiola.8

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Outro elemento importante dos novos tempos é a penetração do mercado até nos lugares mais protegidos. É o que acontece com a camisa do clube: antes sagrada, agora é profanada por marcas de automóveis, bancos, cervejas, planos de saúde, fábricas de biscoitos e até funerárias. Aliás, no vôlei e no basquete, há times que levam apenas os nomes dos patrocinadores... e ainda conseguem ter torcida!9 A disparidade de forças entre os clubes, acentuada pelos valores desiguais das cotas de TV10, é outra face desse processo de mercantilização crescente.

Tal como a empresa hoje faz com os seus empregados, o futebol dissemina a competição entre os atletas. Todo jogador sonha em ser estrela, e se possível um único sol. Para isso, não apenas se esforça em jogar bem, como se depila, maquia, pinta, tatua e esculpe os cabelos.

É verdade que a condição de ídolo tende hoje a ser mais fugaz. Repetindo também o mundo, a torcida se esquece em alta velocidade. Aliás, com frequência, nem é preciso que o ídolo a abandone, deixando o clube: basta que entre em má fase para que os aplausos se transformem em apupos.

Mas a competição pode conviver com o seu contrário, quando o treinador ou a própria torcida cobra do atleta um trabalho de equipe: passar a bola, dar cobertura, não ser fominha... Um exemplo é o Barcelona, do já citado Guardiola, que consegue a difícil mágica de unir o belo ao produtivo.

Não foi por acaso que a palavra "time" se incorporou ao vocabulário das grandes corporações: cada time de empregados disputa o prêmio com o outro, como se fossem empresas rivais. Nesse sentido, a lógica do mercado penetra no interior da fábrica, contaminando corações e mentes, todos perseguindo um desempenho crescente. Afinal, como sentenciou certa vez um expert no assunto, a busca da qualidade total não tem fim.11

Assim como as grandes empresas, os grandes clubes selecionam os seus craques, descartando os outros para os clubes e empresas menores, e assim sucessivamente. Também à semelhança dos empregados comuns, os jogadores são descartados quando - em fim de carreira - já não produzem como antes.12

Com a Lei Pelé, foi-se embora o passe, mas a posse do jogador cai nas mãos de mega-empresários, que não raras vezes se enriquecem mais do que as estrelas. Esse último fenômeno se relaciona com outro - a coisificação do próprio corpo - que banaliza a prostituição, promove o trabalho escravo e tolera o marchandage, e não só no mundo do futebol.

A globalização é outro traço que marca esse outro mundo redondo. Do mesmo modo que há fábricas transnacionais, há times que usam mais jogadores estrangeiros que os do país de origem13. Aliás, também o Direito sofre o impacto de fatores externos, vergando sob o peso dos novos atores globais.

Nesses tempos cada vez mais interativos, alguns clubes começam a se organizar em rede, tal como acontece (mais uma vez) com as empresas. Por enquanto, são redes verticalizadas: há sempre um parceiro mais potente, que empresta jogadores a outro mais débil - seja para reduzir custos, seja para contratar eventuais revelações. Mas nada impede que no futuro - quem sabe? - as relações se horizontalizem.

Algo parecido acontece com os novos estádios, que misturam futebol e outros usos - de shoppings a shows. Aliás, o culto aos shows é outro ingrediente pós-moderno presente no futebol - e em mais de um sentido. Basta observar, por exemplo, a apresentação à torcida de grandes jogadores, a presença de verdadeiros animadores de auditório em jogos na Europa, as holas que os mexicanos inventaram e todos copiam, ou, em grau menor, até as comemorações de gols.

Aliás, as comemorações também nos apontam...

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