Dumping: comparação de preços e transferência de preços no acordo da Rodada do Uruguai

AutorAdriano da Nobrega Silva
Páginas418-449

Adriano da Nobrega Silva. Professor do UNICEUB. Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados. Pesquisador do Grupo Integrado de Pesquisa em Direito Internacional Econômico em Sistemas de Integração. adrianodanobrega@gmail.com

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1. Introdução

Desde o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (General Agreement on Trade and Tariffs – GATT) houve a manifesta preocupação com a eliminação de barreiras, tarifárias ou não, ao comércio internacional, com base na crença de que sua liberalização seria um adequado instrumento para a melhoria da qualidade de vida, garantia do pleno emprego e do crescimento da renda.

Uma vez realizada a importação de um determinado produto, com o cumprimento de todos os deveres – inclusive aduaneiros – previstos pelo país importador, ele não poderia sofrer qualquer espécie de discriminação em relação aos produtos similares nacionais, conforme o disposto no Artigo III do GATT. O principio da não-discriminação, evidentemente, tem por pressuposto a realização da importação em condições de livre-concorrência.

O GATT prevê a possibilidade da verificação do respeito à livre concorrência sempre que um produto tenha sido importado por um valor inferior ao seu preço normal, determinado em condições de livre mercado, ou seja, com discriminação de preços. Diz-se, nesse caso, que houve a prática de dumping e o exportador, em virtude desse fato, pode vir a sofrer uma sanção jurídica se tal discriminação causar, ou mesmo ameaçar causar, um dano à indústria do país importador ou retardar a sua consolidação econômica. A sanção jurídica correspondente será a imposição dos chamados direitos antidunping, observando-se as disposições do Artigo VI do Acordo.

As investigações antidumping vêm se tornando um assunto de importância cada vez maior para o comércio internacional. Se, em um primeiro momento, no âmbito do GATT, as renegociações tarifárias e as restrições voluntárias às exportações foram instrumentos altamente utilizados pelos Estados a fim de regular suas relações comerciais internacionais, mais recentemente aquelas ações são as mais utilizadas1. O Gráfico 1 abaixo mostra a evolução, em termos quantitativos, das renegociações tarifáriasPage 420 (primeira coluna em ordem de aparição), das ações emergenciais (segunda coluna em ordem de aparição) e das restrições voluntárias de exportações (última coluna).

Um dos compromissos assumidos pelos países, ao se tornarem signatários do GATT, era o de diminuir as alíquotas dos impostos incidentes sobre o comércio internacional. O gráfico evidencia o fato de que, apesar desse compromisso, durante os primeiros quinze anos de existência do GATT, os 29 países signatários renegociaram, pelo menos uma vez, suas alíquotas, tendo sido realizadas no período 110 renegociações, uma média de quase quatro por país.

O outro instrumento bastante utilizado nesses primeiros quinze anos foi o da utilização de ações emergenciais. Assim, os países restringiam o comércio internacional e, posteriormente, negociavam medidas compensatórias. Os dois instrumentos eram utilizados de modo complementar: das quinze ações emergenciais anteriores a 1962, 9 foram solucionadas com a renegociação das tarifas aplicáveis, na forma do Art. XXVIII do GATT.

No início da década de 1960, contudo, esses dois instrumentos passaram a ser utilizados sobre produtos de categorias de menor importância e envolvendo montantes irrisórios do comércio internacional: as restrições voluntárias de exportação passaram a ser o instrumento da vez.

Isso talvez se deva pelo fato de que as renegociações tarifárias já não fossem um instrumento tão relevante, tendo em vista as reduções das alíquotas aplicáveis verificadas ao longo do tempo, ao passo que as ações emergenciais envolviam uma série de questões relativas a prova, as quais desestimulavam a sua utilização.

As principais questões relativas ao comércio internacional passaram a ser tratadas de modo particularizado. Assim, em 1962, foi negociado um Acordo Têxtil em que se previu, pela primeira vez, a possibilidade de restrições voluntárias às exportações. Esse mecanismo foi posteriormente adotado para todos os produtos de vestuário logo no inícioPage 421 das negociações do Acordo de Multifibras, passando a ser também utilizado pelos países industriais para produtos-chave, tais como o aço.

Gráfico 1

Renegociações, Ações Emergenciais e Restrições Voluntárias às Exportações entre 1948 e 1993

[VEA EL GRÁFICO EN EL PDF ADJUNTO]

Fonte: FINGER, J. Michael. Safeguards: Making sense of GATT/WTO provisions allowing for import restrictions. In: HOEKMAN, Bernard. MATTOO, Aaditya. Development, trade, and the WTO: a handbook, 2002, p. 198

A partir da década de 80, começou a se verificar um aumento nas chamadas ações antidumping, como demonstra o Gráfico 2.

Nos Estados Unidos, tal fato decorreu do interesse do Congresso americano em diminuir o poder discricionário do Presidente em negociar restrições voluntárias às exportações ou em implementar ações emergenciais, as quais culminavam com a restrição do acesso dos americanos aos produtos importados. Assim, foi fortalecida a legislação antidumping naquele país.

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Na Comunidade Européia, a imposição de medidas antidumping também se mostrou um instrumento adequado a regular os fluxos de entrada dos produtos asiáticos, sobretudo num momento de estagnação econômica verificado no Continente. As medidas, segundo o Tratado de Roma, somente poderiam ser aplicadas pela Comissão da União Européia e, tendo em vista as demandas dos países membros e como meio de mostrar sua própria utilidade, a comissão resolveu aplicar ações antidumping como meio de proteção das indústrias locais.

As principais razões pelas quais passou a haver uso intensivo das ações antidumping são as seguintes:

– podem ser aplicadas a exportadores individualizados;

– são ações unilaterais, não necessitando haver renegociação ou compensação;

– seus requisitos são mais facilmente demonstráveis que aqueles exigidos para as ações emergenciais;

– há o entendimento de que a prática de dumping é desleal;

– o próprio fato de se instaurar um processo de investigação tende a reduzir as importações.

Após a Rodada do Uruguai, passou a haver um uso ainda mais intensivo das medidas antidumping. Uma das razões foi a proibição da utilização das restrições voluntárias de exportações, por terem sido contrárias aos propósitos gerais da nascente Organização Mundial do Comércio. Outra razão foi a sua maior utilização pelos países em desenvolvimento, podendo-se citar o exemplo da África do Sul2, que, em 1993, possuía obrigações antidumping apenas em relação a três produtos, ao passo que somente no ano dePage 423 1996, iniciou trinta investigações. Para que se tenha uma idéia da magnitude da utilização das ações antidumping pelos países em desenvolvimento, basta mencionar que, entre 1995 e o primeiro semestre de 2003, a Argentina havia imposto 138 medidas, ao passo que a Comunidade Européia 184 e os Estados Unidos 196, conforme dados estatísticos da Organização Mundial do Comércio.

Gráfico 2

Renegociações, Ações Emergenciais e Restrições Voluntárias às Exportações e Ações

Antidumping entre 1948 e 1993

[VEA EL GRÁFICO EN EL PDF ADJUNTO]

Fonte: FINGER, J. Michael. Safeguards: Making sense of GATT/WTO provisions allowing for import restrictions. In: HOEKMAN, Bernard. MATTOO, Aaditya. Development, trade, and the WTO: a handbook, 2002, p. 198

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O Gráfico 3 mostra o quantitativo das ações antidumping que foram iniciadas (primeira coluna), bem assim aquelas que foram concluídas com a imposição de deveres antidumping (segunda coluna) entre 1995 e 2001.

Nota-se que, ainda que tenha havido uma relativa estagnação no crescimento do número de investigações a partir de 2000 e da diminuição no número de medidas impostas em 2001, houve um aumento considerável no número de investigações desde 1995, passando-se de 157 para 347, bem como no de imposição de medidas, de 84, verificado em 1996, para 235 em 2000.

Gráfico 3

Medidas Antidumping 1995-2001

[VEA EL GRÁFICO EN EL PDF ADJUNTO]

Fonte: World Trade Organization. Annual Report 2003. Genebra: WTO, 2003, p. 23.

Um aspecto que merece ser destacado, conforme o demonstrado na Figura 1, é o da elevada incidência de ações antidumping sobre produtos que, tradicionalmente, são insumos no processo produtivo, a exemplo de metais de base e derivados, os quais responderam por 38,0% do total de medidas em 2001, bem assim produtos químicos e derivados, os quais responderam por 17,0% do total de medidas no mesmo ano.

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Esse é um ponto da maior importância ao se tratar de negociações entre pessoas associadas, tendo em vista que o produto remetido por uma das empresas do grupo a outra não será destinado diretamente a revenda, mas sim submetido a algum processo de industrialização.

O propósito do presente trabalho é analisar as disposições relativas à comparação entre o preço de exportação e o preço normal do produto, desde o Acordo do GATT até o mais recente, da Organização Mundial do Comércio (OMC), a partir dos textos legais existentes, com vistas a contextualizar a discussão, passando-se, então, a analisar casos da jurisprudência da OMC relativos a essa comparação para, em seguida, tecer algumas considerações sobre o tema, especialmente no que...

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