A duplicata virtual em perspectiva

AutorLeonardo Netto Parentoni
Páginas146-177

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1. Introdução e delimitação do tema

Ao atribuir interpretação contemporânea ao princípio da cartularidade dos títulos de crédito, legitimando o crédito escriturai, mais especificamente no contexto da chamada duplicata virtual, o Superior Tribunal de Justiça demarcou, no ano de 2011, o fim de uma longa, sinuosa e polêmica caminhada, que se iniciara ainda na década de 1980, com os primeiros escritos de Newton De Lucca. Assim como qualquer edifício não pode ser erguido a partir dos andares mais altos, demandando antes uma sólida e consistente fundação, também o entendimento hoje pacificado no Superior Tribunal de Justiça foi fruto de demorada construção histórica.

O objetivo deste texto não é rediscutir o tema, já por demais debatido, mas sim registrar sua evolução, colocando-o em perspectiva. Ou seja, com os olhos de hoje, demarcar quais foram as principais fases históricas do assunto e o que se pode esperar do futuro, quanto à desmaterialização dos títulos de crédito.

2. Brevíssimo histórico das duplicatas no Brasil: da cartularidade em papel ao crédito escriturai eletrônico

O surgimento da duplicata - como costuma acontecer com grande parte dos institutos de Direito Comercial - é fruto da

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praxis mercantil.1 Somente em época posterior veio a ser formalmente regulado pelo Direito. Podem-se divisar, na visão deste autor, quatro fases evolutivas2 desse título de crédito, as quais serão brevemente descritas a seguir.3 Antes, porém, é preciso delimitar o que se considera por duplicata. Para tanto são citadas duas definições, uma sintética e outra mais analítica:

"A duplicata mercantil é um título de crédito contendo cláusula à ordem, que se caracteriza por documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador, identificado como sacado.

"O seu criador, que é o comerciante vendedor (ou prestador de serviços), vincula-se à obrigação por promessa indireta.

"Tem como causa uma transação de natureza mercantil; mas, destinando-se à mobilização de capital, cuja provisão repousa no valor das mercadorias objeto de negócio subjacente e indicadas na correspondente fatura, desliga-se no entanto, da sua causa geratriz pelo endosso ou pelo aceite."4

"A duplicata é título de crédito formal, impróprio, causai, à ordem, extraído por vendedor ou prestador de serviços, que visa a documentar o saque fundado sobre crédito decorrente de compra e venda mercantil ou prestação de serviços, assimilada aos títulos cambiários por lei, e que tem como seu pressuposto a extração da fatura."5

O antecedente remoto das duplicatas na legislação brasileira foi o art. 219 do Código Comercial de 1850.6 Este dispositivo impunha que nas vendas a prazo, entre comerciantes, o vendedor deveria apresentar ao comprador a fatura7 em duas vias idênticas,

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assinadas por ambas as partes, ficando uma com o vendedor e outra com o comprador. Não havendo reclamação no prazo de 10 dias, as contas presumiam-se líquidas.8 Na seqüência, o Decreto n. 737/1850 - mais conhecido como "Regulamento n. 737", tão lembrando quando se estuda a vetusta teoria dos atos de comércio - no art. 246 e ss.9 conferia ao vendedor ação para executar créditos decorrentes de compra e venda mercantil, no prazo de 10 dias. As faturas, assim, documentavam a compra e venda mercantil desde a época do Império. Elas eram utilizadas principalmente para requerer a falência do comprador, caso este não efetuasse o pagamento devido.10 Até então, porém, não se cogitava da existência das duplicatas. Neste momento embrionário, a fatura servia para documentar a compra e venda a prazo, celebrada entre comerciantes, mas inicialmente não viabilizava a circulação do crédito. Ela não permitia, por exemplo, que o vendedor efetuasse descontos bancários para antecipar o recebimento de parte do valor das vendas. Tais operações só viriam a se difundir na década de 20 do século seguinte.

E curioso observar que a duplicata surgiu como alternativa ao saque das letras de câmbio, justamente para propiciar maior agilidade e menos formalismo na circulação do crédito. Surgiu de uma necessidade prática dos comerciantes. Com efeito, em razão das dimensões continentais do Brasil e do deficiente sistema nacional de transportes no início do século passado, o procedimento para receber os valores documentados na letra de câmbio era demorado. Primeiro seria preciso sacar o título, em seguida remetê-lo para aceite, recebê-lo de volta (o que raramente ocorria na prática) e posteriormente ainda reapresentá-lo para pagamento. Todo esse lento percurso desestimulou, historicamente, o uso da letra de câmbio no comércio interno do país. Ainda hoje, o título é pouco utilizado para essa finalidade, apesar de ser com base nele que muitos dos manuais estudam títulos de crédito, o que já sugere uma revisão na metodologia da disciplina e na estruturação de tais obras, a fim de conferir maior atenção aos títulos de uso corrente no país, ao invés de dedicar-lhes posição subalterna.

Fato é que paulatinamente foi se tornando comum, no dia-a-dia do comércio, ao

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invés de sacar a letra de câmbio e aguardar todo o moroso procedimento descrito acima, simplesmente colher a assinatura do cliente na segunda via da fatura e, a partir dela, imediatamente comprovar perante os bancos a celebração do negócio e a existência do crédito, afim de contratar operações financeiras.11 Ou seja, o costume mercantil passou a aceitar a fatura devidamente assinada como documento apto a antecipar a circulação do crédito. Foi desta prática que posteriormente surgiria duplicata.12

Em suma, a duplicata, um dos títulos circulatórios de maior aplicação prática no Brasil, título de crédito de origem tipicamente nacional (ainda que existam figuras semelhantes em outros países), surgiu justamente do desuso daquele que é tido na doutrina como a principal espécie de título de crédito: as letras de câmbio.13 Sua consagração legislativa ocorreu na década de 20 do século passado, quando se tornou obrigatória a emissão da duplicata, em substituição à fatura, tanto para viabilizar a cobrança de imposto sobre as vendas ("imposto do selo") quanto para resguardar os próprios comerciantes, fornecendo-lhes meio oficial de documentar as operações crediticias.14 Na seqüência, sobreveio a Lei n. 187/1936, confirmando esta obrigatoriedade.15 A Lei n. 187/1936 foi, por fim, substituída pela Lei n. 5.474/1968,16 que ainda hoje regula as duplicatas.

Desde o início, portanto, a duplicata surgiu como título causai}1 ou seja, aquele que

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só pode ser emitido para documentar o crédito decorrente de determinado negocio jurídico que, em relação às duplicatas, era a compra e venda mercantil a prazo. Se não existisse o negocio jurídico subjacente o título não poderia ser emitido, constituindo tal prática um crime (duplicata simulada).

Ocorre que o moroso e burocrático procedimento para cobrança das duplicatas, fixado originariamente na Lei n. 187/1936 e mantido na atual Lei n. 5.474/1968,18 é totalmente contrário ao dinamismo que o comércio requer para a circulação dos créditos.19 Isto trouxe para tais títulos o mesmo entrave que anteriormente havia feito com que as letras de câmbio caíssem em desuso no comércio interno. Porém, no caso das duplicatas, ao invés de caírem em desuso, os comerciantes preferiram mantê-la, adotando, na prática, um procedimento de circulação abreviado, que passou a suprimir algumas etapas do trâmite ideal previsto na legislação. Ou seja, desde o início a prática da circulação cambial das duplicatas já omitia alguns passos previstos na lei, em prol da agilidade e simplicidade na cobrança dos créditos. Isto é próprio da cultura empresarial brasileira. Tal constatação será muito importante adiante, ao verificar-se que a duplicata virtual nada mais é do que a adaptação desse procedimento às exigências contemporâneas de celeridade, à luz das novas tecnologias.

O que precisa ficar claro é que já nesta primeira fase histórica as duplicatas não eram formalmente aceitas nem devolvidas. O sacador/credor principal as encaminhava ao sacado e este, ao recebê-las, direcionava-as para o setor contábil, a fim de serem inseridas em "contas a pagar" e, de regra, quitadas na data prevista. Com isto, suprimiam-se ao menos duas fases do procedimento legal: devolução da cártula com aceite e reapre-sentação para pagamento.20 É de se destacar que nesta primeira fase havia, ao menos, a extração regular da cártula e seu envio ao devedor principal. Havia, portanto, circulação do próprio título de crédito, na clássica definição de Vivante,21 com apresentação da via original do título ao devedor principal.

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Pode-se afirmar, então, que a primeira fase histórica foi marcada pela circulação da cártula, ou seja, pela extração das duplicatas em papel e circulação do próprio título. Porém, o comércio clamava por ainda mais agilidade na cobrança das duplicatas. E esta celeridade foi possível graças à intermediação das instituições financeiras, originando uma segunda fase na circulação cambial desse título.

Com efeito, ao invés de extrair a cártula e encaminhá-la ao sacado, o credor passou simplesmente a informar aos bancos quais seriam os dados do título, como identificação e endereço do devedor, valor do crédito e data de vencimento. De posse desta informação, o banco então se encarregava de encaminhar ao devedor um boleto de cobrança, o conhecido boleto bancário. Note-se que nesta segunda fase histórica a cártula deixou de ser emitida, sendo substituída pela informação que o credor enviava aos bancos e pelo próprio boleto bancário}1 Assim...

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