O século XX e as alterações principiológicas informativas do contrato

AutorValmir Antônio Vargas
CargoAdvogado, Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI
Páginas333-339

Valmir Antônio Vargas1

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1 Introdução

O contrato surgiu como instrumento de concretização da harmonia de interesses, no início conflitantes, e que resultam em acordo de vontades em que, em tese, os contratantes abrem mão de parcela de seus interesses em prol de um acordo em que são estabelecidos direitos e obrigações.

A Revolução Francesa de 1789, que serviu como movimento legitimador da Constituição francesa de 1791 e de fundamento para o Código Napoleônico de 1804, apoiou-se em princípios que, bem ou mal, sistematizaram toda a codificação do século XIX e serviram, igualmente, de fundamento para a codificação brasileira do início do século XX.

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Para que se possa falar em contrato tem-se de falar em propriedade. Eis que a noção de contrato não existe sem a anterior noção de propriedade, sem o conhecimento de que o contrato é o meio que legitima as transações envolvendo patrimônio, como definiu Rousseau ao afirmar que o instituto da propriedade nasceu quando pela primeira vez o homem disse "isto é meu!".

A noção positivada de propriedade surgiu com o Código Francês e, embora o contrato tenha seu berço no direito codificado de cunho romanístico, foi com a idéia de propriedade que sentiu seu maior desenvolvimento, pois sua análise passa pela impossibilidade de contratar sem que esteja preestabelecida a idéia de propriedade. Assim, pode-se dizer que o contrato no direito moderno, bem como todo o direito civil, encontra apoio na idéia de propriedade.

Esta noção de propriedade, de isenção da tutela estatal no que for domínio particular, permeou todas as relações pessoais e jurídicas do século XIX e estabeleceu a dicotomia público-privado, reconhecida e solidificada pelo Código de Napoleão e pelo Código Civil Alemão, que veio, na prática, colocar o indivíduo como centro de todas as atenções de cunho jurídico, acabando por transparecer no projeto do Código Civil brasileiro de 1916.2

A transição do século XIX para o século XX acarretou várias mudanças de paradigmas, principalmente em relação ao poder do Estado de imiscuir-se nas relações privadas dos seus cidadãos. Duramente combatido no século XIX, o dirigismo contratual, em que havia uma supremacia unânime da autonomia da vontade com o Liberalismo vigente, sentiu forte reverso no século XX, quando o Estado passou a intervir com maior vigor na autonomia da vontade, restringindo a liberdade justamente como forma de proteger esta mesma liberdade.

2 Igualdade formal e igualdade material

Para que possamos tratar do instituto da propriedade e dos princípios que o cercam, faz-se necessário observarmos a idéia de igualdade tanto no sentido "formal", ou seja, aquela que a lei reconhece e protege quando afirma em nossa Carta Magna que todos são iguais perante a Lei, quanto no sentido de igualdade material, pressuposta na existência de oportunidades iguais para todos.

Mello3 assevera que a lei é "instrumento regulador da vida social" e assim deve ser vista, ou seja, uma ferramenta a serviço do cidadão e, como ferramenta, deve estar a serviço do princípio da isonomia esculpido nos sistemas normativos dos países.

Se observarmos as constituições brasileiras no que tange ao desenvolvimento da igualdade perante a lei, veremos que a Carta Magna do Império, de 25 de março de 1824, estatuía, em seu art. 179, 13, que "A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um"4.

A Constituição republicana de 1891, em seu art. 72, §2º expressava: "Todos são iguaes perante a lei". E complementava: "A República não admite privilégios de nascimento, desconhece fóros de nobreza, e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliarchicos5 e de conselho"6. Estabelecia, assim, uma igualdade formal, pois a igualdade está associada diretamente com a liberdade sendo que esta pressupõe àquela.

A Constituição de 1934, chamada de Constituição de Weimar, substanciou, em contraposição ao Estado Liberal, uma ruptura, instituindo o Estado Social, e, com relação à igualdade formal, trouxe expresso, em seu art. 113, 1º, que "Todos são iguaes perante a lei. Não haverá privilégios, nem distincções por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos paes, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéas políticas"7.

O Estado-novo, em 1937, apresentou uma Constituição que, na verdade, nunca chegou a ser efetivamente aplicada, a não ser, talvez, ao que interessava diretamente aos objetivos políticos do presidente Getúlio Vargas, por isso, em 1946 com a convocação de eleições presidenciais, surgiuPage 335 uma constituição mais democrática, que, em seu art. 141, § 1º estabelecia: "Todos são iguais perante a lei".

A Constituição federal de 1967 ampliou o conceito de igualdade ao predispor em seu art. 50, § 1º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei".

O diferencial nesta constituição ficou por conta do art. 168, que expressamente colocou a igualdade de oportunidades na educação.

A Emenda Constitucional nº 1 de 1969 reafirmou a igualdade formal para todos os cidadãos.

A atual Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, caput, estabelece: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", reafirmando o princípio da igualdade como um dos princípios fundantes dos direitos fundamentais.

O princípio da isonomia em igualdade formal está representado nos dizeres "todos são iguais perante a lei". Já estes mesmos dizeres quando referindo-se às concepções políticas e ideológicas, projeta-se como igualdade puramente material por equiparar materialmente a todos, ou seja, ante os bens materiais da vida.

Canotilho8 preleciona que "a lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos".

3 Dirigismo contratual

Vê-se que o direito à propriedade passa, necessariamente, pela análise da liberdade e da igualdade para que se conclua que somente terão assegurado o direito de propriedade os que, livres, conseguirem conquistar a igualdade na edição da lei e na sua aplicação, e isso somente será possível com a intervenção do Estado, dentro do que se costuma denominar "Dirigismo contratual".

Para Loureiro9 , "De fato, no pensamento jurídico oitocentista, que influenciou a adoção do código francês, liberdade e propriedade formavam um binômio indissolúvel. Enquanto que a esta era o fundamento, o símbolo e a garantia da liberdade frente ao poder público, não há o direito real sem que o proprietário seja livre para usar, gozar e dispor da coisa como bem lhe aprouver".

Em termos de liberdade de predispor dos bens e, conseqüentemente, de contratar, esta afirmação da autonomia da vontade, livre de qualquer ingerência do Estado, que se estabeleceu e se manteve durante todo o século XIX, acabou por influir no Código Civil brasileiro de 1916, sulcando as...

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