A Jurisprudência em Direito Privado no ano de 2009

AutorEric Baracho Dore Fernandes; Irina Carvalho Soares Santarossa; Leilane Kasali Pereira
Páginas171-200

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I Considerações Preliminares

O presente artigo1 busca trazer, de forma sucinta2-3-4, uma breve exposição de alguns dentre os julgados mais notórios do ano de 2009 concernentes a quatro áreas do Direito Privado, a saber: Civil, Empresarial, Consumidor e Trabalhista, em ordem de apresentação. Foi realizado um corte temático em cada uma das áreas citadas, restringindo a pesquisa aos Tribunais Superiores: Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho e Supremo Tribunal Federal. Sendo assim, ainda que para fins meramente didáticos, a apresentação dos casos será dividida pelas áreas apontadas, apresentando em cada uma delas três julgados paradigmáticos no ano de 2009.

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II Direito Civil

STJ - Recurso Especial nº 1.008.398 - SP (2007/0273360-5) 5

Relatora: Ministra Nancy Andrighi.

Ementa:

Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana.

O presente Recurso Especial diz respeito à alteração do nome e prenome no Registro Civil de indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual. Inovando em relação ao entendimento anteriormente adotado pelo STJ6, a relatora entendeu que o transexual teria não apenas o direito à retificação de seu nome e sexo no registro civil, mas de que tal alteração ocorra sem averbação à margem do registro. O registro dessa alteração poderá figurar apenas nos livros cartorários e, em respeito à privacidade do transexual, poderão ser revelados apenas por autorização da autoridade judicial competente. Em sua fundamentação, a Ministra entendeu que a averbação à margem do registro civil significaria, de fato, a exposição desnecessária do indivíduo a situações vexatórias e humilhantes. Segundo a mesma, se o estado consente com a cirurgia, deve também prover os meios para que o indivíduo desfrute de uma vida digna.

Ao lado do importante avanço firmado por essa decisão judicial, destacamos o já conhecido acórdão do Tribunal Regional Federal que determinou, com abrangência nacional, que as cirurgias de redesignação sexual fossem custeadas pelo Sistema Único de Saúde7. No STF, em decisão monocrática da Ministra Ellen Gracie, foi concedido pedido de Suspensão de Tutela Antecipada (STA 1858), ajuizado pela União em face da referida decisão. Apesar de não demonstrar discordância da fundamentação do acórdão do TRF, a Ministra entendeu que a decisão impactaria as finanças públicas, pois as cirurgias de mudançaPage 173 de sexo não estariam previstas pela programação orçamentária federal. Em 29/09/2009, por meio da petição nº 137.005, o Procurador-Geral da República comunicou ao Supremo Tribunal Federal a edição da portaria do Ministério da Saúde de número 1.707/20089, que institui a cirurgia de mudança de sexo no Sistema Único de Saúde, acarretando a perda do interesse de agir da União e perda superveniente do objeto.

Cabe destacar ainda, a recente Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 427510, proposta pelo Ministério Público Federal em face do Art. 58 da Lei de Registros Públicos11, Lei nº 6015/73, na redação que lhe conferida pela Lei nº 9.708 de 1998. O Ministério Público pleiteia uma interpretação conforme a constituição do artigo em referência, reconhecendo aos transexuais que assim o desejarem, o direito de alteração do nome e sexo no registro civil, independentemente de prévia cirurgia de redesignação sexual. Caso haja provimento, tal decisão representará um entendimento paradigmático em relação a atual situação dos transexuais em nosso ordenamento jurídico. Representará um passo além do atual entendimento do STJ, pois a alteração do registro civil independerá da realização da cirurgia, de forma similar ao que dispõe à legislação alemã acerca do tema12.

A sucessão de decisões tendentes a proteger os direitos fundamentais e direitos da personalidade dos transexuais demonstra que o Brasil já está muito além dos antigos paradigmas no qual a cirurgia por si só já era considerada crime de lesão corporal de natureza grave13. Contudo, ainda há um longo caminho a ser percorrido pelos transexuais naPage 174 luta por seus direitos, que apesar de amparados pelo Judiciário ainda carecem de uma lei que os proteja.

STJ. Recurso Especial nº 992.749-MS14.

Relatora: Ministra Nancy Andrighi.

Ementa:

Direito civil. Família e Sucessões. Recurso especial. Inventário e partilha. Cônjuge sobrevivente casado pelo regime de separação convencional de bens, celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. Interpretação do art. 1.829, I, do CC/02. Direito de concorrência hereditária com descendentes do falecido. Não ocorrência.

- Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia da vontade, da autonomia privada e da conseqüente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.

- Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal , no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial , o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02.

- Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens , de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados unicamente entre os descendentes.

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- O regime de separação obrigatória de bens , previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal ; (ii) separação convencional . Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância.

- Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitandose o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário.

- Entendimento em sentido diverso, suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, deve prevalecer a interpretação que conjuga e torna complementares os citados dispositivos.

- No processo analisado, a situação fática vivenciada pelo casal – declarada desde já a insuscetibilidade de seu reexame nesta via recursal – é a seguinte: (i) não houve longa convivência, mas um casamento que durou meses, mais especificamente, 10 meses; (ii) quando desse segundo casamento, o autor da herança já havia formado todo seu patrimônio e padecia de doença incapacitante; (iii) os nubentes escolheram voluntariamente casar pelo regime da separação convencional, optando, por meio de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, pela incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos e rendimentos.

- A ampla liberdade advinda da possibilidade de pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, prevista pelo Direito Patrimonial de Família, não pode ser toldada pela imposição fleumática do Direito das Sucessões, porque o fenômeno sucessório “traduz a continuação da personalidade do morto pela projeção jurídica dos arranjos patrimoniais feitos em vida”.

- Trata-se, pois, de um ato de liberdade conjuntamente exercido, ao qual o fenômeno sucessório não pode estabelecer limitações..

- Se o casal firmou pacto no sentido de não ter patrimônio comum e, se não requereu a alteração do regime estipulado, não houve doação de um cônjuge ao outro durante o casamento, tampouco foi deixado testamento ou legado para o cônjuge sobrevivente, quando seria livre e lícita qualquer dessas providências, não deve o intérprete da lei alçar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao regime de bens pactuado.

- Haveria, induvidosamente, em tais situações, a alteração do regime matrimonial de bens post mortem, ou seja, com o fim do casamento pela morte de um dos cônjuges, seria alterado o regime de separação convencional de bens pactuado em vida, permitindo ao cônjuge sobrevivente o recebimento de bens de exclusiva propriedade do autor da herança, patrimônio ao qual recusou, quando do pacto antenupcial, por vontade própria.

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- Por fim, cumpre invocar a boa fé objetiva, como exigência de lealdade e honestidade na conduta das partes, no sentido de que o cônjuge sobrevivente, após manifestar de forma livre e lícita a sua vontade, não pode dela se esquivar e, por conseguinte, arvorar-se em direito do qual solenemente declinou, ao estipular, no processo de habilitação para o casamento, conjuntamente com o autor da herança, o regime de separação convencional de bens, em pacto antenupcial por escritura pública.

- O princípio da exclusividade, que rege...

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