As conseqüências da nulidade de um tratado em Direito Internacional

AutorJúlia Knijnik Baumvol
Páginas61-76

    Texto traduzido do original em francês.

Júlia Knijnik Baumvol. Bacharel em Direito pela Universidade Panthéon-Assas Paris II; mestranda da Universidade Panthéon-Assas Paris II, em Direito Internacional Público. A autora agradece à professora Liba Juta Knijnik pelos comentários e pelas correções. juliakb@free.fr

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1 Introdução

A nulidade de um ato é uma característica que retira seu valor jurídico, ou seja, ausenta as condições de conteúdo necessário à sua validade (SALMON, 2001, p.760). Segundo Salmon (2001, p. 414), as conseqüências jurídicas são, mais especificamente, o conjunto de efeitos que resultam de um ato ou de um fato jurídico. Assim, este estudo tem por objetivo analisar as conseqüências jurídicas que resultam de um tratado que não possui valor jurídico em razão da ausência de conteúdo necessário à sua validade. Neste trabalho, será analisado, mais especificamente, o artigo 69 da Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados, que codificou o direito costumeiro na matéria3.

É importante destacar que, mesmo sendo a nulidade inerente a todo sistema jurídico, essa é uma sanção mal adaptada à ordem jurídica internacional e, portanto, difícil de ser implementada. A doutrina, mais precisamente os autores Weil (1992, p. 315), Cahier (1972, p. 685) e Combacau (1991, p. 195) vêem esse conceito de nulidade ligado à ordem jurídica interna e, como tal, inapta a ser transplantada a sistemas como o direito internacional, ou seja:

“um conceito não pode pretender a um tal estatuto em um sistema de direito onde a realidade dos seres legais é atestada pelo testemunho que oferecem individualmente os Estados e onde esses retiram em definitivo a sua existência a partir de atos concordantes, que nas suas relações mútuas decidem reconhecer”.4

Desse modo, verifica-se um caráter artificial no ato de transposição puro e simples de noções jurídicas internas para o direito internacional. Fica claro que, apesar de grande elaboração da parte da Comissão do Direito Internacional (CDI) e de uma doutrina abundante, a nulidade dos tratados permanece uma matéria extremamente teórica. A prática internacional dá-nos poucos exemplos de casos em que o problema da validade dos tratados nos é apresentado. Os tribunais pronunciam raramente a nulidade de uma disposição convencional, e apenas as opiniões individuais anexas às sentenças empenham-se nesse terreno.

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Em direito internacional, como bem indica Weil (1992, p. 327), “em todos os lugares (a nulidade) cede lugar a mecanismos de substituição que podem parecer-se em alguns aspectos à nulidade, mas que não são verdadeiramente nulidade”. Pode-se citar como exemplo a decisão Libia/Tchád de 3 de fevereiro de 1994, em que foi estabelecido um Estado não poder defender-se, pela sua inexperiência diplomática, para justificar um erro e obter a nulidade de um tratado. Nesse caso, a nulidade não foi declarada, mas a Corte Internacional de Justiça (CIJ) tomou em consideração a “falta de experiência para realizar negociações difíceis” e o “desconhecimento de fatos pertinentes ao caso” para interpretar o tratado5. Mais

uma vez, a nulidade escapou às mãos da CIJ, que, entretanto, estabeleceu efeitos inesperados com base no pedido das partes.

Verifica-se que a declaração de nulidade de um tratado é um fato raro e, quando ocorre, os tribunais não examinam, exatamente, as conseqüências decorrentes dessa declaração, pelo menos não de forma clara, tal qual estabelecido pelo artigo 69 da Convenção de Viena. A questão central em relação às conseqüências da declaração de nulidade dos tratados é a de compreender, muito além da questão da ausência de força jurídica do tratado por si só, objeto da primeira parte deste estudo, qual destino é reservado aos atos que foram realizados com base na aplicação desse instrumento declarado nulo, a discussão da segunda parte do artigo.

A estrutura deste estudo tem como principal objetivo trazer à luz a essência do texto da Convenção de Viena e de seus trabalhos preparatórios. Todavia, antes de discutir o cerne do tema, cabe ressaltar que uma parte da doutrina sobre a matéria realiza distinção entre as nulidades “absolutas” e “relativas”. Essa distinção não será utilizada, porque, como indica Ago (1963, p. 249) no anuário da CDI, “do ponto de vista das conseqüências, não há diferença entre nulidade absoluta ou relativa”. De acordo com a leitura do artigo 69 § 1° da Convenção de Viena, pode-se constatar que essa distinção não faz parte do espírito do texto, sendo apenas uma distinção doutrinária sem relevância para a presente análise.

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2 As conseqüências da nulidade de um tratado – o artigo 69 § 1° da Convenção de Viena de 1969

Segundo o artigo 69 § 1° da Convenção de Viena, “É nulo um tratado cuja nulidade resulta das disposições da presente Convenção. As disposições de um tratado nulo não têm eficácia jurídica”. Com base neste artigo, é possível afirmar, por um lado, que a essência da nulidade é a ausência de força jurídica do ato declarado nulo e, por outro, que as conseqüências da nulidade de um tratado são retroativos.

2. 1 A essência da nulidade: a ausência de força jurídica de um tratado

A conseqüência principal da nulidade de um tratado é que nenhum Estado pode valer-se de um tratado declarado nulo. A Convenção de Viena é clara quanto à matéria no artigo 69 § 1°. Na segunda frase: “As disposições de um tratado nulo não têm eficácia jurídica”, impõe-se que, quando a nulidade é estabelecida, o tratado torna-se inoponível aos outros Estados, independentemente de quem sejam e, reciprocamente, esses não podem dar ao tratado efeitos jurídicos. A conseqüência direta disso, como explica Verhoeven (1980, p.88), é (que) o resultado buscado pelo autor do ato nulo não será atingido (...) Assim, uma sentença não tira o direito entre as partes, uma ocupação não conferirá um título de soberania, um pedido não acionará a C.I.J. (...)”.6

Todavia, a segunda parte do artigo não proporciona solução completa do problema. A questão que permanece é saber se, uma vez o tratado declarado nulo, as conseqüências da declaração de nulidade são anteriores ou posteriores à anulação.

2. 2 A retroatividade das conseqüências, prevista no artigo 69 § 1° da Convenção de Viena de 1969

A retroatividade é o caráter de um fato ou de uma norma que produz efeitos jurídicos a uma data anterior à sua realização (por um fato) ou à sua entrada em vigor (por uma norma) (SALMON, 2001, p. 1009). O princípio geral em direito internacional público éPage 65 o da não-retroatividade dos atos. O artigo 28 da Convenção de Viena dispõe que “a não ser que uma intenção diferente se evidencie do tratado, ou seja, estabelecida de outra forma, suas disposições não obrigam uma parte em relação a um ato ou fato anterior ou a uma situação que deixou de existir antes da entrada em vigor do tratado, em relação a essa parte”. Isto significa que a aplicação de uma norma a situações ou fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor é excluída, salvo indicação contrária do autor da norma. A implementação dessa nãoretroatividade de princípio, é comandada pela preocupação de conciliar dois objetivos às vezes contraditórios: garantir a segurança jurídica dos destinatários das normas internacionais e não atrasar inutilmente a aplicação de novas regras de direito internacional.”7

No que diz respeito ao artigo 69 § 1° da Convenção de Viena, não se pode afirmar, com simples leitura, que o texto contenha indicações normativas expressas ou implícitas que revogam o princípio de não-retroatividade8. Entretanto, com base na leitura dos trabalhos preparatórios da Convenção de Viena, vê-se que a intenção dos autores foi estabelecer um princípio geral de retroatividade. O relatório da CDI à Assembléia Geral da ONU em 1966 não deixou nenhuma dúvida quanto ao assunto, pois considera que “se é trazida uma prova da nulidade de um tratado por qualquer uma das razões enumeradas, isto significa que o tratado é nulo ab initio e não simplesmente a partir da data na qual a causa da nulidade foi invocada”.9 Em seguida, a CDI afirma que “a fim de não subsistir nenhuma dúvida sobre este ponto, o parágrafo 1° do presente artigo estipula que as disposições de um tratado nulo não possuem força jurídica”.10

Segundo Bindschedler-Robert (1968, p. 195), a anulação retroativa significa que os Estados (inclusive os Estados terceiros desde que isso não afete os seus direitos existentes) devem, a partir do momento em que a nulidade é declarada, comportar-se como se todos osPage 66 atos anulados sempre tivessem sido nulos. Há, desse modo, um retorno ao statuo quo ante de uma maneira integral.

A questão que resta é a de saber qual tratamento deve ser reservado aos atos que foram realizados com base no...

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