Eco-cidadania em luis alberto warat: um olhar para o futuro dos refugiados ambientais

AutorFranciele Seger - João Martins Bertaso
CargoUniversidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI)
Páginas429-448
ECO-CIDADANIA EM LUIS ALBERTO WARAT:
UM OLHAR PARA O FUTURO DOS REFUGIADOS
AMBIENTAIS
ECO-CITIZENSHIP IN LUIS ALBERTO WARAT: A LOOK AT THE
FUTURE OF ENVIRONMENTAL REFUGEES
Franciele SegerI
João Martins BertasoII
I Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Santo
Ângelo, RS, Brasil. Mestranda em Direito. E-mail: franci.seger@hotmail.com
II Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Programa
de Pós-Graduação em Direito, Santo Ângelo, RS, Brasil. Doutor em Direito. E-mail:
joaomartinsbertaso@gmail.com
Resumo: A presente pesquisa versa sobre
a eco-cidadania como possibilidade
de enfrentar a crise ecológica e suas
consequências, dentre as quais destaca-
se a massa de refugiados ambientais,
pessoas forçadas ao deslocamento devido
à ocorrência de desastres naturais. Nesse
sentido, objetiva-se descrever, por meio
do método dedutivo, da técnica de
pesquisa bibliográca e do procedimento
histórico, os desaos e violações
sofridas pelos refugiados ambientais,
já que lhes é negado reconhecimento e
proteção jurídica internacional. A partir
disso, estudar a eco-cidadania em Luis
Alberto Warat, a qual envolve ecologia,
cidadania, política e subjetividade,
elementos que, interligados, são
capazes de alterar o atual estilo de vida,
restaurando a relação homem-natureza, a
m de assegurar um direito ao amanhã,
que dê condições de existência a um
futuro comum. A eco-cidadania visa o
reconhecimento do Outro (ser humano e
natureza) nas suas diferenças, valendo-
se do amor como cuidado. Por isso, ela
contribui tanto para a formação de um
sujeito ecológico, que se torne consciente
da necessidade de preservação do meio
onde vive, como para o reconhecimento
de pessoas excluídas como os refugiados
ambientais.
Abstract: The present research is about
eco-citizenship as a possibility to face the
ecological crisis and its consequences,
among which it is distinguished the mass
of environmental refugees, people forced
to the displacement due to the occurrence
of natural disasters. In this sense, the
objective is to describe, through the
deductive method, the technique of
bibliographic research and historical
procedure, the challenges and violations
suffered by environmental refugees,
since they are denied recognition and
international legal protection. From
this, to study eco-citizenship in Luis
Alberto Warat, which involves ecology,
citizenship, politics and subjectivity,
elements that, interconnected, are
capable of altering the current lifestyle,
restoring the relation man-nature, in
order to ensure the right to a future,
which gives life to a common future.
Eco-citizenship aims at the recognition
of the Other (human being and nature)
in their differences, using love as care.
That’s why, it contributes so much to the
formation of an ecological subject, that
it becomes aware of the need to preserve
the environment in which it lives, as well
as the recognition of excluded people
like as environmental refugees.
430 Revista Direitos Culturais | Santo Ângelo | v. 13 | n. 31 | p. 429-448 | set./dez. 2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v13i31.2888
Palavras-chave: Eco-cidadania. Sujeito
ecológico. Refugiados ambientais.
Cuidado. Direito ao amanhã.
Keywords: Eco-citizenship. Ecological
subject. Environmental refugees.
Caution. Right to tomorrow.
Sumário: Introdução. 1 Refugiados ambientais: entre desaos e
violações de direitos. 2 Eco-cidadania em Luis Alberto Warat: um olhar
de esperança para um futuro ecológico. Conclusão. Referências.
Introdução
A história da humanidade sempre foi marcada por diversos
períodos de crise. Atualmente, a crise migratória e ecológica causam
grande preocupação pela sua magnitude e proporção. Aquecimento
global, mudanças climáticas, desastres naturais e a consequente massa
de refugiados ambientais são alguns fenômenos característicos da atual
crise. Diante desse cenário, a eco-cidadania surge como uma esperança,
pois ela articula política, ecologia, cidadania e subjetividade (desejo),
como um caminho para alcançar uma mudança do paradigma ecológico.
Isso signica tomar a “eco-cidadania como forma de garantir o direito
ao amanhã”1, de tal sorte que se pode resgatar a relação de afeto homem-
natureza.
Nesse sentido, a eco-cidadania é tomada como perspectiva de
rever as condições de possibilidades da sustentação de um patamar
de harmonia nas relações do homem com o meio onde vive, tendo
como parâmetro ético o amor como cuidado. Uma possibilidade de
ultrapassar os desejos heterônomos de um mercado global que oferece
um consumo excedido para então, de forma intransparente, assumir o
comando da subjetividade das pessoas e negá-las a autonomia.
A propósito, Luis Alberto Warat, pensador e autor de obras
destacadas, foi quem defendeu a eco-cidadania como esperança de
um futuro melhor. Warat defende a eco-cidadania como possibilidade
de construir ou reconstruir o desejo, de impor limites ao poder e de
restaurar o contato homem-natureza2.
Para tanto, o artigo se estrutura em duas seções. Na primeira
seção abordar-se-á os refugiados ambientais na qualidade de nova cate-
goria de migrantes no cenário mundial, desprovida de reconhecimento
e proteção jurídica, que sofrem constantes violações. Daí, na segunda
1 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994. Disponível em:
viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
2 Ibidem.
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Franciele Seger | João Martins Bertaso
seção, tratar-se-á sobre a eco-cidadania como caminho para a mudança
de um paradigma ecológico, que se mostra insustentável e esgotado.
Esse paradigma não estaria dando conta na proteção das comunida-
des humanas mais vulneráveis e que habitam em regiões de risco, pois
cresce de forma desproporcional o número de refugiados ambientais.
O ensaio pretende, assim, pensar caminhos possíveis de retroceder a
velocidade do aquecimento global e das mudanças climáticas, desde a
formação de um sujeito ecológico.
1 Refugiados ambientais: entre desaos e violações de direitos
Ao analisar o atual cenário mundial, não é difícil perceber que o
clima do planeta mudou: está mais quente. Como consequência dessa
mudança se intensicou o efeito estufa, gerando o aquecimento da Terra
e, por conseguinte, a ocorrência de inúmeros desastres ambientais.
Eventos que antes eram de baixa intensidade e esporádicos, hoje
são violentos e cada vez mais frequentes. Somado a isso, há ainda a
exploração desenfreada dos recursos naturais.
De outra parte, o ato de migrar nos remete imediatamente à ideia
de mudar de habitat, de sair de um local, motivado por fatores diversos,
para se estabelecer em outro, que ofereça melhores condições de vida
que o anterior. A migração humana é uma das mais antigas estratégias
de adaptação da humanidade diante dos perigos enfrentados no decorrer
de sua existência3.
Na linha do tempo que faz a história da raça humana, há registros
de relatos de catástrofes naturais, doenças, pestes, surtos epidêmicos,
grandes períodos de seca, fome, guerras, dentre outros eventos extremos.
Esses episódios já forçavam o deslocamento de pessoas e de grupos de
pessoas, com a nalidade de garantir sua sobrevivência em locais mais
seguros e recuperar o abrigo perdido nessas situações4.
3 CLARO, Carolina de Abreu Batista. Refugiados ambientais: mudanças climáticas,
migrações internacionais e governança global. 2012. 113 f. Dissertação (Mestrado
em Desenvolvimento Sustentável) - Universidade de Brasília, Brasília, 2012, p.
33. Disponível em
CarolinadeAbreuBatistaClaro.pdf>. Acesso em: 29 out. 2016.
4 RAMOS, Érika Pires. Refugiados ambientais: em busca de reconhecimento pelo
direito internacional. 2011. 150 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 48. Disponível em: .org/t3/
leadmin/Documentos/portugues/eventos/Refugiados_Ambientais.pdf?view=1>.
Acesso: em 29 out. 2016.
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Em dezembro de 1950, foi criado pela Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas, o Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR), com a nalidade de prestar auxílio
e proteção aos refugiados da época (especialmente àqueles provenientes
da Segunda Guerra Mundial). Desde então, a Organização Internacional
se fez presente em mais de 300 escritórios espalhados em 120 países5.
No ano seguinte, em 1951, foi dado um passo decisivo para a
tutela dos refugiados, vez que foi aprovada a Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados de 1951. E um pouco mais tarte, em 1967,
criou-se o Protocolo adicional, com o escopo de eliminar os limites
temporais de aplicação da norma até então existentes. Consta no tratado
que refugiado é:
[...] qualquer pessoa que temendo ser perseguida por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas,
se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode
ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse
país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do
país no qual tinha sua residência habitual em consequência de
tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não
quer voltar a ele6.
O problema consiste no fato de que o refugiado ambiental
somente receberá proteção jurídica desse ordenamento e poderá
requerer a proteção do Estado na condição efetiva de refugiado caso sua
condição esteja igualmente associada a um ou mais fatores previstos na
Convenção (perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade
ou grupo social). Ou seja, ele permanece num vácuo jurídico.
Diante dessa restrição vivida na época, “[...] os novos desaos
dos deslocados forçados foram respondidos com a ampliação do
conceito de refugiados a partir da Convenção da Unidade Africana
de 1969 e da Declaração de Cartagena de 1984”7, fazendo com que
os motivos do refúgio passassem a abranger situações novas, como a
violação maciça dos direitos humanos.
Destarte, em 1972 realizou-se a Conferência da ONU –
Organização das Nações Unidas –, em Estocolmo, da qual surgiu a
Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano e criou
o Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente - PNUMA,
5 BARROS, Miguel Daladier. O rama dos refugiados ambientais no mundo
globalizado. Brasília: Consulex, 2011, p. 47-48.
6 Idem, p. 110.
7 Idem, p. 28.
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cujo objetivo era acompanhar o avanço dos problemas ambientais no
mundo. A partir das pesquisas realizadas por Essam El Hinnawi, um
dos colaboradores do PNUMA, adveio à expressão Environmental
Refugees8, que se caracterizou como:
[...] aquelas pessoas forçadas a deixar seu habitat natural,
temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante
perturbação ambiental (natural e/ou desencadeada pela ação
humana), que colocou em risco sua existência e/ou seriamente
afetou sua qualidade de vida. Por “perturbação ambiental”, nessa
denição, entendemos quaisquer mudanças físicas, químicas,
e/ou biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que
o tornem, temporária ou permanentemente, impróprio para
sustentar a vida humana [...]9.
À vista disso, o refúgio ambiental pode ser caracterizado como
sendo um instituto formado por pessoas que são forçadas a cruzar as
fronteiras de seu país, de forma temporária ou permanente, devido a
ocorrência de desastres naturais comumente oriundos das mudanças
climáticas (como terremotos, furacões, tsunamis, seca, elevação do
nível do mar, etc.), os quais tornam seu habitat de origem difícil ou
impossível de sobreviver.
O tema dos refugiados ambientais surge então como um
problema novo, resultante do deslocamento humano forçado motivado
pelas catástrofes provocadas ou naturais. Deixar o local onde se vive
signica, muitas vezes, perder tudo que condiciona a própria existência
do sujeito: família, trabalho, cultura, identidade, tradição, laços de
amizade, bens, sentimentos, referências, valores, símbolos. São
princípios que pertencem ao íntimo de cada ser humano e que causam
muita dor quando perdidos.
Aliás, considerando que o refugiado ambiental não se desloca
porque quer, mas sim porque necessita, está-se diante de uma abnegação.
O que signica que seu desejo de car não é mais possível e que o
amanhã para ele é incerto. E mais do que isso, o cerne do problema,
consistente na depredação dos recursos naturais, na adoção de um
modelo de consumo capitalista, predador do meio natural e cultural,
8 Refugiados ambientais, na tradução para o português.
9 EL-HINNAWI, 1985, apud RAMOS, Érika Pires. Refugiados ambientais: em
busca de reconhecimento pelo direito internacional. 2011. 150 f. Tese (Doutorado
em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 76. Disponível em:
Ambientais.pdf?view=1>. Acesso: em 29 out. 2016.
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indiferente aos danos que provoca, acarreta ainda sentimentos de
estranhamento e repúdio para com o Outro.
Ressalta-se que a falta de reconhecimento, a ausência de
proteção jurídica e consequente carência de direitos leva os refugiados
ambientais à condição do que Warat denomina de excluídos, aqueles
que têm existência sem cidadania e também como esquecidos do
mundo, aqueles cuja existência sequer é reparada10. São pessoas e
grupos impossibilitados de viver com dignidade sob a proteção dos
direitos humanos fundamentais.
Leva ainda ao que Bauman11 traduz como o “refugo da
globalização”, ou simplesmente o “refugo humano” (indivíduos
excessivos, redundantes, desnecessários, sem uso), armando que os
refugiados são produto inevitável da modernização, bem como um
acompanhante inseparável da modernidade. Por isso, é muito difícil
se restabelecer e sobreviver quando seus direitos são negados e sua
dignidade violada.
Ademais, a única riqueza que os excluídos detém é a própria
vida12, sendo que, não existe cidadania se o outro é um excluído – se
os outros são excluídos, eles não são cidadãos –, pois somente se é
cidadão se os outros, se a alteridade que institui as possibilidades de
estar entre nós não está excluída13. Uma forma de se buscar a inclusão
de grupos diferentes é a luta pelo reconhecimento com fundamento na
eco-cidadania, como se verá adiante.
Destarte, cercas e muros são erguidos, discursos de ódio ao
diferente são lançados. Ao mesmo tempo em que as portas se abrem
ao comércio/capital, bens e serviços, elas se fecham para os seres
humanos Tudo isso como forma de negar o Outro que no futuro poderá
ser Eu mesmo. E mais, o refugiado “ca vagando, é nômade, delirante
e ameaçador. Ao mandá-lo embora, asseguramos que nós e a nossa lei
não carão cara-a-cara com o trauma e evitarão o rosto [...] com medo
ou dor”14.
10 WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade,
Surrealismo e Cartograa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 3.
11 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 12.
12 WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade,
Surrealismo e Cartograa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 39.
13 Idem, p. 82.
14 DOUZINAS, Costas. O m dos Direitos Humanos. Tradutora Luzia Araújo. São
Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009, p. 369.
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Para Bauman, o temor que os refugiados causam aos países
receptores se traduz como um verdadeiro “pânico moral”, assim
entendido como o sentimento de medo que grande parte das pessoas
compartilha, acreditando que eles carregam consigo algum mal que
ameaça o bem-estar da sociedade15.
Na visão de Douzinas, é o temor ao diferente, ao estranho, cuja
chegada:
[...] nos lembra de que nós também, em nossas moradias
seguras, jamais estamos em casa, que o Eu jamais é idêntico
consigo mesmo, mas contém o traço da alteridade, e que o
nosso desfrute complacente dos direitos depende da exclusão do
Outro. [...] O Refugiado é o Outro absoluto. Ele representa, de
uma maneira extrema, o trauma que assinala a gênese do Estado
e do Eu e coloca em xeque as reivindicações e universalizações
dos direitos humanos16.
Ao escrever sobre eco-cidadania e direito, Warat se questiona
“[...] ‘que futuro nos espera?’, especialmente no que se refere à
ecologia, à cidadania e às questões de gênero”17. Para o autor, “estamos
diante de um emaranhado de alarmantes alterações que ameaçam a
realidade socialmente construída na modernidade”, sendo que todas
essas mudanças levam a “[...] uma encruzilhada de caminhos: o ser e o
não ser da humanidade”18.
De fato, todos os eventos e atitudes tomadas pelo homem
no decorrer de sua história levaram-no ao que hoje pode se chamar
de ponto de não retorno ambiental. Como consequência, surgiram
novos desaos, como o aquecimento global e junto com ele a massa
de refugiados ambientais. Isso signica que existe uma patologia
ecológica, cujo destino – morte – parece inevitável, mas que talvez haja
uma esperança, com a eco-cidadania, traduzida no desejo de mudança
de cada um.
O desastre ecológico não só ameaça de extermínio o meio
ambiente, mas, antes dele, é um perigo total ao ser humano, cuja própria
15 BAUMAN, Zygmund. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017,
p.7-8.
16 DOUZINAS, Costas. O m dos Direitos Humanos. Tradutora Luzia Araújo. São
Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009, p. 363.
17 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994, p. 97. Disponível em:
viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
18 Ibidem.
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convivência também corre sérios riscos. Sobretudo porque, todos
querem viver isolados e protegidos, privatizando a cidade, o público,
por temor a ser violentado pelo outro19. Bauman20 diria que se trata
de um ilusório sentimento de segurança ocasionado pela construção
de muros, cercas ou qualquer outro instrumento simbólico para manter
longe os estranhos.
Um futuro muito próximo mostra-se bastante preocupante, pois:
Numa estimativa recente feita pelo IPCC, até 2050, as mudanças
climáticas podem levar uma população equivalente a do Brasil,
cerca de 190 milhões, a abandonar as suas cidades vítimas
das secas, deserticação e enchentes. Atualmente a ONU já
estima ter mais de 25 milhões de pessoas vítimas de catástrofes
ambientais em todas as regiões da Terra. [...] A estimativa atual
é de que até o ano de 2100 o nível do mar deverá aumentar em
um metro e a temperatura da Terra aumente, no mínimo, 2,4ºC.
Só esses dados já são sucientes para gerar catástrofes por todo
o planeta. [...] O Relatório Mundial sobre Desastres, publicado
anualmente pela Federação Internacional da Cruz Vermelha e
pela Sociedade Crescente Vermelha revela que há 5.000 novos
refugiados ambientais a cada dia [...]21.
Dito isso, denota-se que, para o refugiado ambiental alcançar
uma vida digna, há necessidade da realização da cidadania vinculada
à prática efetiva dos direitos humanos, tanto por parte do Estado como
por parte do cidadão, de tal sorte a armar-se valores e princípios não
somente aptos a alcançar um padrão de vida com qualidade, mas também
para o ser humano armar uma relação de equilíbrio e harmonia com a
natureza e seus recursos22.
Fato é que o assunto “abertura de fronteiras” é algo não muito
agradável para os Estados, pois toca em princípios como poder, soberania
e nacionalidade, os quais nenhum deles quer exibilizar, razão pela
qual desejam manter longe os estrangeiros que batem à sua porta e “[...]
que clamam pela generosidade humana perdida, pela solidariedade
internacional e a aplicação mínima de regras e princípios de direito que
19 WARAT, Luis Alberto. A rua Grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade,
Surrealismo e Cartograa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 21.
20 BAUMAN, Zygmund. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
21 BARROS, Miguel Daladier. O drama dos refugiados ambientais no mundo
globalizado. Brasília: Consulex, 2011, p. 66-67.
22 BERTASO, João Martins. Cidadania e Sensibilidade na Ecologia Política. In
BRAVO, Álvaro Sánchez (Org.); CERVI, Jacson Roberto (Org.). Multiculturalismo,
tecnología y medio ambiente. Espanha: Punto Rojo Libros, 2015, p. 248.
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permitam a manutenção, ainda que pálida, da sua condição de seres
humanos portadores de dignidade e respeito”23.
Nesse contexto, a igual dignidade e o respeito são urgentes e
necessários, de tal maneira a proporcionar um diálogo intercultural
entre as diversas culturas, gerando um olhar fraterno entre as pessoas. A
partir disso, estabelecer um sistema democrático marcado pelo respeito
do indivíduo como ser humano, que considere a humanidade regida
por valores morais iguais, pelo reconhecimento recíproco e por um
tratamento imparcial24. Nesse sentido:
A liberdade cultural é uma parte vital do desenvolvimento
humano, porque a capacidade de uma pessoa escolher a sua
identidade – quem ela é – sem perder o respeito dos outros,
ou ser excluída de outras opções, é importante para uma vida
plena. As pessoas querem liberdade para praticar abertamente a
sua religião, falar a sua língua, celebrar a sua herança étnica ou
religiosa sem medo do ridículo, de punições ou da diminuição
de oportunidades. As pessoas querem a liberdade de participar
na sociedade sem ter de prescindir das amarras culturais
que escolheram. É uma ideia simples, mas profundamente
perturbadora25.
Na Carta Encíclica Laudato si´ do Papa Francisco sobre o Cuidado
da Casa Comum, ele lamenta a falta de reconhecimento e de ajuda aos
refugiados ambientais, os quais carregam o peso da indiferença, tendo
sua vida abandonada sem qualquer proteção. Nas palavras do Papa, “a
falta de reações diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um
sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes,
sobre o qual se funda toda a sociedade civil”26.
Leonardo Boff aponta que no mundo globalizado, no qual
múltiplos povos se encontram e devem se acolher, e sobretudo face
aos milhões de refugiados climáticos ou por escassez de água, a
hospitalidade se impõe como uma atitude e uma virtude fundamental,
23 RAIOL, Ivanilson Paulo Corrêa. Ultrapassando fronteiras: a proteção jurídica dos
refugiados ambientais. Porto Alegre: Ed. Núria Fabris, 2010, p. 95.
24 CONSELHO DA EUROPA. Livro branco sobre o diálogo intercultural: viver
juntos em igual dignidade. Estrasburgo: Cedex, 2008, p. 25-26.
25 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO - PNUD.
Relatório do Desenvolvimento Humano 2004: Liberdade Cultural num Mundo
Diversicado. Lisboa, 2004, p. 1. Disponível em:
/les/hdr2004-portuguese.pdf>. Acesso em: 19. set. 2017.
26 FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si`. Sobre o cuidado da
casa comum. Roma: Tipograa Vaticana, 2015, p. 8. Disponível em
enciclica_laudato_si.pdf>. Acesso em 29 out. 2016.
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podendo signicar a vida ou a morte de um incalculável número de
pessoas. Ou seja, somente com a boa vontade de todos será possível
pensar algo bom para todos27.
Para o autor, a hospitalidade é como [...] uma disposição da alma,
aberta e irrestrita. Ela, como amor incondicional, em princípio, não
rejeita nem discrimina ninguém. É simultaneamente uma utopia e uma
prática”28. Como utopia signica ser sempre acolhido independente da
condição social e moral e ser tratado humanamente. Como prática cria
as políticas que viabilizam e coordenam a acolhida29.
Desde esse olhar é possível destacar a cidadania como canal de
aproximação de pessoas e culturas, tornando-se uma forma de viver
solidário, uma busca constante por um “estado de dignidade humana”.
A cidadania como prática dos direitos humanos e a solidariedade social
vinculada à sua realização30. Aponta-se, assim, a eco-cidadania, pensada
por Luis Alberto Warat, como um caminho viável.
Em seguimento, estudar-se-á o fenômeno da eco-cidadania
em Warat, que abrange a ecologia, a cidadania, a política e a
subjetividade (o desejo). Eco-cidadania como sinônimo de criação de
um sujeito ecológico (expressão usada por Guattari) e de consequente
transformação do atual modo de vida, de tal sorte a alcançar-se uma
democracia sustentável, capaz de assegurar o direito a um futuro, o
“direito ao amanhã”, como dito por Warat31.
2 Eco-cidadania em Luis Alberto Warat: um olhar de esperança
para um futuro ecológico
Vive-se uma crise ambiental que abrange inúmeras
consequências. Dentre elas, o aquecimento da temperatura média do
planeta, as mudanças climáticas, a ocorrência de desastres naturais e
27 BOFF, Leonardo. Atitudes e comportamentos de hospitalidade. REMHU -
Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, vol. 19, n. 36, p.
229/236, jan./jun. 2011, p. 229-230. Disponível em:
pdf/4070/407042013013.pdf>. Acesso em: 07 dez. 2017.
28 Idem, p. 235.
29 Ibidem.
30 BERTASO, João Martins. Cidadania, Reconhecimento e Solidariedade: sinais
de uma fuga. In: BERTASO, João Martins (Org.). Cidadania, Diversidade,
Reconhecimento. Santo Ângelo: FURI, 2009, p. 26-27.
31 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994, p. 97. Disponível em:
viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
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Eco-Cidadania em Luis Alberto Warat: um Olhar para o Futuro dos Refugiados Ambientais
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a massa de refugiados ambientais. A questão é: como enfrentar esse
paradigma ecológico?
Guattari demonstra sua preocupação com o declínio da condição
humana sobre o Planeta Terra, cujas ações desmedidas resultam em
desastres ecológicos sem precedentes. Na década de 90 ele já escreveu
que “o planeta Terra vive um período de intensas transformações
técnico-cientícas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos
de desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite,
ameaçam a vida em sua superfície”32.
O pensador Luis Alberto Warat, apresenta uma sábia proposta
para renovar as esperanças e os sonhos de um futuro melhor para as
gerações presentes e futuras: a eco-cidadania. Ela serve como aporte
para o resgate do vínculo e para a imposição de limites à relação (que
deve ser solidária e alteritária) do homem e da natureza. Nas palavras
do autor:
A “eco-cidadania” desenvolveria ideias e práticas destinadas
a inventar maneiras cotidianas de ser, novas micro e macro
maneiras coletivas de viver, buscaria formas de aceitação da
alteridade e os vínculos. Nada de um modelo de sociedade
pronto para usar, apenas uma eco-ética e uma eco-estética, cujos
objetivos estariam ligados com a instauração de valores não
derivados do lucro ou do consumo. Uma “pátria existencial”
que privilegiaria o sentimento como produtor da realidade
social, o sentimento como interesse coletivo33.
De fato, a sociedade dos dias de hoje está marcada por uma cultura
que impõe o consumo do máximo possível, situando-o como sinônimo
de satisfação, êxito, conquista. A felicidade não está na realização da
capacidade de pensar, criar ou amar. A felicidade se encontra nas lojas
dos shoppings centers, nos eletrônicos de última geração, nas roupas da
moda atual, enm, na satisfação do quanto o “eu” consegue comprar.
A eco-cidadania busca exatamente quebrar essa lógica que motoriza à
acumulação desmedida do lucro pelo método do consumo.
O que se verica é que a ideia moderna de cidadania não abrange
sua complexidade, vez que comumente ela determina as possibilidades
e potencialidades que o cidadão tem ou teria a desfrutar na sua relação
32 GUATTARI, Felix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas:
Papirus, 1990, p. 7.
33 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994, p. 99. Disponível em:
viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
440 Revista Direitos Culturais | Santo Ângelo | v. 13 | n. 31 | p. 429-448 | set./dez. 2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v13i31.2888
com o Estado e a sociedade. A eco-cidadania, entre outros pontos,
propõe a realização da pessoa em seu aspecto coletivo, ou seja, formas
coletivas de existir/viver com o outro.
A eco-cidadania parte da discussão sobre o sentido da vida (a
própria experiência cotidiana, o sentido perdido da vida), os vínculos
do homem com ela e a possibilidade de sua continuidade. Ela representa
uma mudança ética, estética, política e losóca, para, através da
análise da ecologia, da cidadania e do desejo, aprender, reaprender ou
reinventar o mundo. Ecologia e cidadania como instâncias de realização
da subjetividade e o desejo como uma potência de vida34.
Não haverá uma resposta verdadeira e ecaz à crise ecológica
a não ser em escala planetária e com a premissa de que se exerça
uma verdadeira revolução política, social e cultural redirecionando os
objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Dita revolução
deverá alcançar tanto as relações de forças visíveis em grande proporção,
quanto os domínios moleculares de sensibilidade, inteligência e desejo
do ser humano na sua individualidade35.
Para Warat “o desejo, ‘ecosocamente’ falando, tem que ver com
todas as formas de vontade de viver, da vontade de criar, da vontade de
amar e de inventar uma outra sociedade (como percepção do mundo
e ordem de valores)”36. Uma eco-cidadania política do desejo, este
como produtor de novas conexões, como construtor da realidade, como
potência de vida e como núcleo propulsor do devir das autonomias37.
Desde esse olhar, ter-se-ia “a ecologia como cuidado da vida;
a cidadania como cuidado frente aos poderes que fundamentam a
exploração e a alienação; a subjetividade como cuidado que permite
liberar os afetos reprimidos”38. Ou seja, por meio da ecologia, resgatar
o vínculo do homem-natureza; com a cidadania, impor limites ao poder
do Estado, das indústrias e da sociedade; e através da subjetividade,
criar um desejo de mudança de vida, desprendendo-se de sentimentos
34 WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos
lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2004, p. 409-410.
35 GUATTARI, Felix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas:
Papirus, 1990, p. 9.
36 WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos
lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2004, p. 408.
37 Idem, p. 409.
38 Idem, p. 411.
441
Eco-Cidadania em Luis Alberto Warat: um Olhar para o Futuro dos Refugiados Ambientais
Franciele Seger | João Martins Bertaso
impostos (como o consumismo) e adotando o amor como cuidado.
Logo:
A “eco-cidadania” como uma necessidade de compreender as
transformações, as resistências e as transgressões que precisam
ser efetuadas para garantir nosso direito ao futuro, para
comprometer o homem na preservação da existência em todas
as suas modalidades e a supressão de uma forma de sociedade
que acelera a atuação invisível das tendências destrutivas
(pulsão de morte)39.
De modo que Warat trabalha a eco-cidadania como um direito ao
amanhã, um direito ao futuro, o qual “[...] resultaria de mil revoluções
moleculares (Guattari) do sistema de valores existenciais que se iriam
inltrando em redes (rizomaticamente) por todo o tecido social e no
devir dos desejos40. O desejo está relacionado com todas as formas de
vontade da pessoa, daí a importância de revolucioná-lo, retirando os
sentimentos autodestrutivos impostos, criando um amor ecológico na
subjetividade.
Já para buscar novas formas de ser e de agir frente ao mundo,
Guattari41 sugere uma articulação ético-política entre o meio ambiente,
as relações sociais e a subjetividade humana, o que ele chama de
ecosoa. A ecosoa social consistiria no trabalho de reconstrução das
relações humanas sociais e familiares. A ecosoa mental, que seria a
reinvenção da relação do sujeito com o corpo e o inconsciente. Por m,
a ecosoa ambiental, com a adoção de um pensamento ecológico pela
subjetividade de cada um.
As três ecologias não pretendem criar normas universais.
Pelo contrário, se unicam em um ponto comum para “[...] liberar
as antinomias de princípio entre os três níveis ecosócos [...]”42, ou
seja, dotar a humanidade de um fator estimulante à práxis aberta e
sem padrão determinado. “Não se trata aqui de propor um modelo de
sociedade pronto para usar, mas tão somente de assumir o conjunto de
39 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994, p. 99. Disponível em:
viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
40 Ibidem.
41 GUATTARI, Felix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas:
Papirus, 1990, p. 15-19.
42 Idem, p. 38
442 Revista Direitos Culturais | Santo Ângelo | v. 13 | n. 31 | p. 429-448 | set./dez. 2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v13i31.2888
componentes ecosócos cujo objetivo será, em particular, a instauração
de novos sistemas de valorização”43.
Em Warat, a eco-cidadania se articula com o pensamento de
Guattari. Trata-se de uma preocupação em rever a postura do homem,
enquanto ser da natureza, para com o meio onde vive, com a nalidade
de preservar a vida na Terra da forma como a conhecemos hoje, uma
forma de transformar e resistir às atitudes destrutivas tomadas pelo
próprio homem.
Fato é que o período de tempo pelo qual passamos está a exigir
novas formas de pensar e de agir. Uma espécie de fuga dos sistemas
fechados, das estatísticas e da racionalidade positivista da modernidade,
para se apostar em relações mais afetuosas entre as pessoas, de
compartilhamento com o Outro. Para Warat: “O m da modernidade
nos coloca diante do esgotamento do estilo de vida por ela proposto”44.
Assim, a ideia de uma eco-cidadania se apresenta como um trabalho
sobre o desejo, que constrói e/ou reconstrói a realidade, visando dar
condições de existência ao amanhã.
Para Guattari, um novo sujeito é necessário porque “[...] cada
vez mais, os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas.
Um tempo virá em que será necessário empreender imensos programas
para regular as relações entre o oxigênio, o ozônio e o gás carbônico na
atmosfera terrestre”45.
Assim, para Warat:
O direito ao direito da cidadania adquire uma importância
maior devido à intensa quantidade de atos que, em nome de
uma idéia distorcida de cidadania, exercitam o preconceito
contra o estrangeiro, condenam as diferenças e impõem a
exclusão social de um outro vivido como ameaça. Por isso é
muito importante ecologizar o conceito de cidadania, romper
com a estereotipação de sua concepção liberal, moderna. A
idéia moderna de cidadania gerou um sentido negativo que
é necessário questionar, do contrário, nunca conseguiremos
chegar a um estado de cidadania46.
43 Idem, p. 49.
44 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994, p. 101. Disponível em:
article/viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
45 GUATTARI, Felix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas:
Papirus, 1990, p. 52.
46 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
443
Eco-Cidadania em Luis Alberto Warat: um Olhar para o Futuro dos Refugiados Ambientais
Franciele Seger | João Martins Bertaso
Na proposta moderna de cidadania, o estrangeiro é um
“estranho” que causa desconforto, pelo simples fato da sua presença
no lugar ao qual não “pertence”. Esses “estranhos” são encarados pelas
pessoas como perigosos, portadores e prenúncios de risco. Esse medo
da insegurança impede o exercício da tolerância e da solidariedade,
forticando o desejo de querê-los cada vez mais longe47.
No âmbito do caos ecológico sofrem os refugiados ambientais,
são pessoas que existem, mas não são vistas, que lhes negam a cidadania,
pois normalmente não conseguem ter acesso a direitos elementares
de uma vida digna. Também não são reconhecidas formalmente pelo
direito internacional, são vítimas do desprezo gerado pelo desejo de
seus semelhantes em mantê-los longe.
A ideia de eco-cidadania pode, para mudar esse panorama,
gerar formas de alteridade através da transformação de sentimento:
da hostilidade à alteridade. Conforme Warat, “[...] Seria uma visão do
ecológico que apostaria nos caminhos da autonomia como resposta [...]
à continuidade da vida. A cidadania sustentável [...] como limite a um
poder que se cuida a si mesmo, descuidando a vida”48.
Warat deixa a entender que vivemos num mundo desgastado
pela desordem e que perdeu a oportunidade de tomar consciência de
seus feitos excessivos. Tempos que requerem alguma audácia, uma
sensibilidade que efetue a experiência da esperança49. Para tanto, a eco-
cidadania é uma expectativa de um futuro. Ou seja:
A cidadania seria o conjunto das práticas de ruptura que
permitiriam a realização social da normatividade em estado de
reserva selvagem. [...] a cidadania nunca consegue expressar
completamente seus valores e sentimentos. Ela contém uma
dimensão imaginária que é sempre, em parte, reprimida. A
outra cidadania que funciona como instância inconsciente é a
instância da inconsciência coletiva; em parte, o que a sociedade
se nega a saber que sabe sobre si mesma; o que a sociedade é
forçada, pelas práticas do poder, a ignorar sobre si mesma. Os
não-ditos, o que o poder impõe como o que não pode ser dito:
1994, p. 415. Disponível em:
article/viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
47 BAUMAN, Zygmund. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar,
2011, p. 191-192.
48 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994, p. 104. Disponível em:
article/viewFile/15877/14366>. Acesso em: 20 jul. 2018.
49 Idem, p. 106.
444 Revista Direitos Culturais | Santo Ângelo | v. 13 | n. 31 | p. 429-448 | set./dez. 2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v13i31.2888
a potencialidade social, todavia, não manifesta como atividade
criadora da consciência antecipadora: a utopia concreta de
transformação, a espera de um futuro melhor e possível50.
O debate e a busca de soluções para a crise ecológica é de extrema
relevância e urgência, pois ultrapassa e ao mesmo tempo alberga todos
os demais anseios da sociedade contemporânea, tais como as questões
migratórias, de gênero, de raça, dentre outras. Sobretudo porque, sem a
existência de um meio ambiente em condições de habitação, os demais
problemas cam prejudicados. Mais que isso, vive-se um aumento
gradativo da frequência e intensidade das mudanças climáticas, dos
desastres naturais e do número de refugiados ambientais, o que eleva a
questão a uma crise migratória ecológica.
Sabe-se da urgência para se estabelecer novas formas de enfrentar
as questões ambientais, porque somente erguer a bandeira verde através
de discursos simbólicos e boas intenções não basta. A eco-cidadania
aponta para a necessidade do resgate da relação homem-natureza. A
eco-cidadania potencializaria um conjunto de práticas levadas a impor
limites ao poder predador do homem na busca pela conquista do meio
ambiente, criando um sentimento de amor como cuidado da Casa
Comum.
Como isso contribui para a problemática dos refugiados
ambientais? A pretensão do ensaio é apontar caminhos para enfrentar
o problema na sua origem: protegendo, preservando e promovendo
práticas de cuidado ambiental. Assim, será possível controlar os níveis do
aquecimento global, minimizando os efeitos das mudanças climáticas,
diminuindo a ocorrência de desastres naturais e consequentemente o
número de refugiados ambientais.
Conclusão
A questão-problema trabalhada no texto girou em torno da
eco-cidadania e refugiados ambientais. A problemática dos refugiados
ambientais está intimamente ligada às questões ambientais e à cidadania,
à questão do reconhecimento do outro nas sociedades atuais. Consiste
no fato de que existe uma crise, caracterizada pelo aquecimento global,
mudanças climáticas, desastres naturais e a consequente massa de
50 WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos
lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2004, p. 420.
445
Eco-Cidadania em Luis Alberto Warat: um Olhar para o Futuro dos Refugiados Ambientais
Franciele Seger | João Martins Bertaso
refugiados ambientais. Para tal, ancorou-se o ensaio à eco-cidadania,
que surge como uma aposta no direito fraterno, como condição de
possibilidades para resgatar as relações vinculares de afetos protetivos
entre os homens e o meio. Desde esta questão-proposta, alguns aspectos
convergentes chamaram nossa atenção:
Como decorrência dos eventos extremos causados pelas
mudanças climáticas, oriundas do aquecimento global, surge um novo
grupo de pessoas forçadas ao deslocamento: os refugiados ambientais.
São seres humanos desprovidos de proteção jurídica e visibilidade
perante a comunidade internacional. Como consequência desse processo
de mobilidade forçada, o refugiado padece de constantes violações de
direitos e enfrenta grandes desaos para se restabelecer.
O refugiado ambiental sai de seu habitat de origem como uma
forma de buscar condições dignas de sobrevivência, vez que seu
território tornou-se inabitável devido à desastres naturais, tais como
terremotos, ciclones, furacões, tsunamis, deserticação, elevação do
nível do mar, seca, dentre outros. Seu deslocamento é forçado, tendo
de enfrentar as perdas e os sentimentos de angústia, medo e incertezas,
decorrentes de sua situação, o que dicilmente será apagado, ainda que
retornem ao país de origem.
Dessa forma, lidar com a dor da perda daquilo que se carrega de
mais importante, como as lembranças, os laços afetivos, os amigos, os
familiares, o trabalho, as tradições culturais, os símbolos, os valores,
os bens, etc. não é tarefa fácil. Mais que isso, ser recebido pelos seus
semelhantes como pessoas estranhas e perigosas só aumenta essa dor e
contribui com a sua vitimização.
Fato é que a Casa Comum vai dando sinais de alerta de vários
modos. São sinais que carecem de interpretações acuradas. As soluções
vão além da proteção simbólica da natureza, já que impõem atitudes
de solidariedade e responsabilidade individual e coletiva, com vistas a
garantir a continuidade da vida na Terra.
A eco-cidadania aparece como um caminho possível, que trabalha
ecologia – resgate da relação homem-natureza –, cidadania – imposição
de limites ao poder –, e subjetividade – desejo de mudança de cada
um. Com esses três elementos interligados, valendo-se da alteridade, da
solidariedade e do reconhecimento do Outro na sua diferença é possível
lutar por um direito ao amanhã. O Outro é tanto o ser humano quanto
a natureza.
446 Revista Direitos Culturais | Santo Ângelo | v. 13 | n. 31 | p. 429-448 | set./dez. 2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v13i31.2888
A ideia de Eco-Cidadania de Warat51 parte da noção de “que a
democracia é um devir cultural multi-expressivo e não só um conjunto
de garantias jurídicas”. A Eco-Cidadania vincula-se à Ecologia Política
tendendo mudanças na direção do projeto construído na Modernidade.
Trata-se de consolidar a dignidade humana para todos, solidicando
o agir humano consubstanciado em cuidados com a vida em todas as
suas formas, implicando um conjunto de práticas sociais libertadoras.
Ressalta-se a ideia de cuidado em sua dimensão ético-política52.
Na perspectiva pode-se vislumbrar a possibilidade de formação
de vínculos sociais para a preservação da vida no planeta, tendo como
base a circulação de afetos e de cuidados desde os pequenos grupos
e, daí, ampliando-se em redes. Projeta-se, desse modo, uma forma de
sociedade afeita à afetividade e aos cuidados mútuos, podendo, sob esse
olhar, ancorar a defesa dos refugiados ambientais enquanto sujeitos de
direitos humanos.
A proposta waratiana se mostra, assim, receptiva a toda e
qualquer postura que esteja em defesa da vida e da natureza. Na
proteção dos refugiados ambientais, importa compreender seus mal-
estares e tentar viabilizar novas formas de organização social e de
relacionamento humano para melhor atender suas demandas, pois se
tornam demandas de caráter local e global, bem como seus efeitos sobre
a geograa cultural, social e ambiental53.
A eco-cidadania envolve essa mudança de sentimento, de
desejo e de decisão: o sentimento de amor como cuidado, o desejo de
restabelecer a relação afetiva com a natureza e a decisão de agir perante
um poder sem limites, buscando preservar aquilo que temos de mais
valioso: a vida com dignidade para todos.
Referências
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mundo globalizado. Brasília: Consulex, 2011.
51 WARAT, Luis Alberto. Eco-cidadania e direito: alguns aspectos da modernidade,
sua decadência e transformação. Sequência, Santa Catarina, n. 28, p. 96-110, jun.
1994. Disponível em:
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52 BERTASO, João Martins. Cidadania e Sensibilidade na Ecologia Política. In
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53 Idem.
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Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
Recebido em: 29 de novembro de 2018.
Aceito em: 05 de dezembro de 2018.

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