A Economia Antiga é um Campo de Batalha': história social de uma controvérsia erudita

AutorMiguel Soares Palmeira
Páginas340-372
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n38p340/
340 340 – 372
A Economia Antiga é um
Campo de Batalha”: história
social de uma controvérsia erudita1
Miguel Soares Palmeira2
Resumo
Este trabalho propõe revisitar um debate que os praticantes da classical scholarship consideram
especialmente signif‌icativo em sua área de atuação: as discussões travadas na segunda metade
do século XX sobre a natureza da economia greco-romana antiga e sobre as formas adequadas de
abordá-la. Estruturado em torno de pares de opostos teóricos (“primitivistas” versus “modernis-
tas”, oposição principal que se desdobra em uma série de antagonismos homólogos), o debate
é sucessivamente invocado pelos debatedores como armadilha conceitual, como obstáculo ao
avanço das pesquisas de história econômica antiga. Em diálogo com a literatura sobre contro-
vérsias científ‌icas e f‌ilosóf‌icas, analisam-se aqui os expedientes que imprimem ao debate uma
sócio-lógica própria e instauram as condições de sua reprodução. Argumentarei que a f‌ixação
de uma dicotomia fundadora opera como elemento catalisador da “controvérsia do oikos” e
condena toda e qualquer tentativa expressa de superação da dicotomia a uma assimilação ritual
a uma das partes “originárias” da disputa. Os dados para análise serão construídos pelo exame
de textos publicados de historiograf‌ia econômica referente à Antiguidade Clássica e de cartas
trocadas entre os debatedores.
Palavras-chave: Controvérsias. Estudos Clássicos. História Intelectual.
Introdução
Na segunda metade do século XX, e com especial força a partir dos
anos 1970, o estudo das controvérsias paulatinamente adquiriu legiti-
midade entre estudiosos da história da losoa e, principalmente, entre
1 Este artigo deriva de uma pesquisa f‌inanciada pela Fapesp e pela CAPES entre 2003 e 2008. Ela deu origem a
uma tese que somente agora será publicada em livro. Em algumas partes deste texto, não foi possível evitar a
sobreposição com o livro que se avizinha, mas procurei submeter os dados apresentados a questões que não
havia trabalhado antes.
2 Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).
Agradeço a Marcia Consolim e Rodrigo Bordignon, pelo convite para integrar este dossiê, e a Maria Carlotto,
pelos comentários sobre o texto.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 38 - Jan./Abr. de 2018
341340 – 372
praticantes dos science studies. Esse processo contrariou tradições, bem esta-
belecidas na losoa e na história (NUDLER, 2011), de entendimento das
controvérsias como momento disfuncional da produção do conhecimento,
como aquilo que escapa ao domínio da ciência, por negar uma harmo-
nia lógica que lhe seria inerente. Do esforço de Kuhn (1978 [1962]) para
pensar as rupturas revolucionárias do mundo cientíco à luz da estrutura
das “comunidades” produtoras de ciência, passando pela defesa de Bloor
(1991 [1976]) quanto a uma explicação sociológica simétrica de teorias
cientícas exitosas ou fracassadas, até a insistência de Latour (2012) no va-
lor cognitivo das controvérsias em que se envolvem os atores no fazimento
e no desfazimento de grupos, trabalhos diversos zeram da confrontação
sistemática um plano privilegiado de observação das práticas de cientistas e
eruditos. Como alternativa a uma concepção irênica do mundo cientíco e
intelectual, sugeriu-se então, por diferentes caminhos, que as controvérsias
fossem pensadas como constitutivas da história da ciência e da losoa e,
por conseguinte, como chave de inteligibilidade das formas organizadas
de conhecimento (FABIANI, 2007), do desenrolar de questões epistemo-
lógicas (GIL, 1990) e dos “determinantes da incompreensão acadêmica
(GINGRAS, 2014).
Sem qualquer pretensão de passar toda essa literatura em revista, meu
objetivo aqui é discutir o senso comum, professado por boa parte dos espe-
cialistas do tema, que associa controvérsias a “avanços” no conhecimento.
Não procederei por meio de uma discussão abstrata, mas pelo exame de
um caso preciso: os debates que mobilizaram (e, de certa forma, ainda
mobilizam) estudiosos de história greco-romana antiga a respeito da natu-
reza da economia na Antiguidade e das formas adequadas de caracterizá-la.
À parte o fato de ser essa uma “controvérsia” que me é familiar (PALMEI-
RA, 2009), há outras vantagens em tomá-la em consideração. A chamada
“controvérsia do oikos” é comumente designada e vivida por seus perso-
nagens como um debate especialmente acerbo e longevo no âmbito da
História Antiga. Ela foi referida como “[...] um longo debate, ainda não
encerrado, embora já quase secular.” (WILL, 1954, p. 8); um “[...] um
debate [que] continha – e ainda contém – os elementos de uma das mais
signicativas divergências nas Ciências Humanas.” (PEARSON, 1957,
p. 3); “[...] um dos maiores problemas da história econômica antiga desde
“A Economia Antiga é um Campo de Batalha”: história social de uma controvérsia erudita | Miguel Soares Palmeira
342 340 – 372
o m do século passado.” (HUMPHREYS, 1978, p. 137–138); “[...] uma
batalha acadêmica.” (HOPKINS, 1983, p. ix), um “agelo” erudito com
uma “longa história” (COHEN, 2002, p. 1).3
O fato ser creditada e vivida nesses termos entre classicistas (embora
não exclusivamente por eles), isto é, entre os porta-vozes de uma erudição
historicamente tida por modelar no campo das Humanidades, faz da con-
trovérsia da economia antiga um caso bom para pensar.4
Ao explorar como diferentes posições chegam a constituir um sis-
tema de oposições entre historiadores da Antiguidade, é possível sondar
o rendimento de algumas perguntas sobre a instauração e o desenvolvi-
mento de controvérsias, estimando o alcance e os limites do senso co-
mum acima aludido.5
O texto é desenvolvido em dois movimentos. Primeiro, reconstitui a his-
tória dos debates sobre a economia antiga, retomando uma descrição já feita
em outro trabalho (PALMEIRA, [20--]). Em seguida, propõe, com base no
material apresentado, uma espécie de teste reexivo a questões e caminhos de
pesquisa naturalizados no âmbito dos estudos sobre controvérsias.
Uma controvérsia “secular” e descontínua
Os combatentes da “longa história” da “batalha acadêmica” da econo-
mia antiga nem sempre se entendem quanto ao começo de sua controvér-
sia. Eles convergem, contudo, em situarem seu momento-chave na década
de 1890. Aí se localizaria o episódio fundante, mesmo que não necessaria-
3 Conforme se poderá constatar a seguir, os debates sobre a economia antiga conheceram diferentes momentos
de institucionalização. Neste artigo, meu foco incide sobre os anos 1960 e 1970. Nesse período, def‌iniram-
se, segundo sugerem testemunhos diversos (HOPKINS, 1983; ANDREAU, 1995; DERKS, 2002) as regras que
presidiram a produção de conhecimento sobre economia antiga nas décadas seguintes.
4 A percepção entre classicistas de uma disputa intelectual que se estende por um longo período de tempo é
o que autoriza o emprego do termo “controvérsia”, que usarei como expressão intercambiável com “debates”
(ambos largamente empregados nas fontes primárias deste trabalho). Tomar como referência inicial as ques-
tões que os próprios scholars se colocam a respeito de sua atividade intelectual me parece mais interessante
do que emplacar uma def‌inição apriorística da controvérsia como atividade intelectual em que está posta a
possibilidade de contestação por um oponente (à maneira do que faz DASCAL, 1994, p. 78), conforme insis-
tirei adiante.
5 Trata-se, como se vê, de uma questão específ‌ica, mas de modo nenhum a única, trabalhada por essa literatu-
ra. Seu interesse não se esgota nos aspectos colocados em relevo e criticados aqui.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT