A economia do compartilhamento e a constituição da república de 1988

AutorMariane Koressawa Bezerra
CargoAdvogada Trabalhista. Pós-graduanda em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Integrante do Grupo de Pesquisa 'Trabalho, Constituição e Cidadania' da Universidade de Brasília (UnB) e do Grupo de Pesquisa de 'Direito do ...
Páginas92-118
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A ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO E A CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA DE 1988
THE SHARING ECONOMY AND THE REPUBLIC’S CONSTITUTION OF 1988
Mariane Koressawa Bezerra
1
RESUMO
O artigo abordará a releitura da Economia do Compartilhamento a partir da Constituição
Federal de 1988. Objetiva, desse modo, analisar os modos de trabalho dos prestadores de
serviço das empresas de compartilhamento a fim de compreender sua inserção ou não nos
moldes constitucionais de trabalho digno, assegurado a todo e qualquer trabalhador brasileiro.
Inicialmente, discorrerá acerca da Economia de Compartilhamento e suas diversas formas de
apresentação nos países que lhe são adeptos. Em um segundo momento, averiguará o
desenvolvimento da Economia do Compartilhamento no Brasil a partir de sua maior
representante no país, a Uber. Por fim, verificará a existência de possíveis violações aos
direitos fundamentais dos colaboradores brasileiros a começar pela interpretação do trabalho
desempenhado conforme as normas constitucionais brasileiras.
PALAVRAS-CHAVE: Economia do Compartilhamento; Constituição Federal; Uber;
Trabalho Digno.
ABSTRACT
The article will address a re-reading of the Sharing Economy from the Federal Constitution of
1988. In this way, it aims to analyze the work modes of service providers of the companies of
sharing in order to understand their insertion or not to the constitutional molds of decent
work, assured to any and all Brazilian workers. Initially, it will discuss the Sharing Economy
and its diverse forms of presentation in the countries that are adept to it. In a second moment,
it will investigate the development of the Sharing Economy in Brazil from its greater
representative in the country, Uber. Finally, it will verify the existence of possible violations
to the fundamental rights of the Brazilian collaborators from the interpretation of the work
performed according to the Brazilian constitutional norms.
KEYWORDS: Sharing Economy; Federal Constitution; Uber; Decent Work.
1 Introdução
A Economia do Compartilhamento está presente em diversos países do globo, como
os Estados Unidos, Bélgica, Alemanha, Espanha, Austrália, China, Brasil, entre outros
2
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1
Advogada Trabalhista. Pós-graduanda em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Instituto Brasiliense
de Direito Público – IDP. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Integrante do
Grupo de Pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania” da Universidade de Brasília (UnB) e do Grupo de
Pesquisa de “Direito do Trabalho” do Instituto Brasiliense de Direito Público (GPDT-IDP). Membro da
Comissão de Direito do Trabalho da OAB/DF.
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Sendo composta por empresas majoritariamente tecnológicas, as empresas de
economia colaborativa participam de vários setores da economia, principalmente o da
prestação de serviços, razão pela qual plataformas como o Airbnb, TaskRabbit, Uber, Lyft e
BlaBlaCar já constituem corporações bilionárias de capital de risco
3
.
O novo modelo de economia sugere a colaboração entre pessoas, desde produtos e
serviços até qualquer atividade ou dom que possa ser monetarizado e comercializado online.
No Brasil, a plataforma que mais se destaca é a Uber, que se autodenomina uma
“plataforma de serviço de transporte individual privado intermediado por tecnologia”, cujo
objetivo principal seria, em outras palavras, facilitar a mobilidade urbana por meio da
colaboração de prestadores terceiros independentes
4
.
Contudo, o modo como o trabalho é desempenhado por intermédio das empresas de
Economia do Compartilhamento atualmente levanta questões acerca de sérias violações aos
direitos fundamentais dos prestadores de serviço, principalmente os direitos trabalhistas.
Dessa maneira, é imprescindível que os novos modos de trabalho da Economia do
Compartilhamento sejam interpretados conforme a Constituição da República de 1988, a fim
de se analisar as possíveis violações à dignidade humana dos trabalhadores brasileiros.
2 A Economia de Compartilhamento
A Economia de Compartilhamento
5
pode ser compreendida como uma nova
modalidade de comércio, na qual as pessoas são incentivadas a trocar, alugar, emprestar,
comercializar ou compartilhar bens e serviços a partir de processos colaborativos peer-to-
peer
6
(P2P).
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2
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora
Elefante, 2017.
3
SLEE, Tom, op. cit.
4
Uber. Como o transporte individual privado por aplicativos tem sido regulamentado no Brasil. Disponível em
/transporte-individual-privado-aplicativos-regulamentado-brasil/>
Acesso em 15 jun 2018.
5
Em inglês, Sharing Economy. Wikipédia. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia_do_compartilhamento#Conceito>. Acesso em 17 jun 2018.
6
Peer-to-peer é “uma arquitetura de redes de computadores onde cada um dos pontos ou nós da rede funciona
tanto como cliente quanto como servidor, permitindo compartilhamentos de serviços e dados sem a necessidade
de um servidor central”. Wikipédia. Disponível em to-peer >. Acesso em 17
jun 2018.
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Segundo Rachel Botsman
7
, a Economia de Compartilhamento também pode ser
conceituada como:
"(...) um sistema econômico baseado na partilha de ativos ou serviços subutilizados,
gratuitamente ou por uma taxa, diretamente de indivíduos. Baseia-se em grande parte com
base em mercados peer-to-peer que dependem da cola social de confiança entre estranhos.
Os "fornecedores" nesses mercados são frequentemente chamados de
"microempreendedores"
8
.
Nesse sentido, mediante a utilização de plataformas online, diversas atividades
corriqueiras no dia-a-dia dos indivíduos são comercializadas, de modo que os usuários dão
preferência ao acesso e não à propriedade dos bens e/ou serviços.
Dessa maneira, diversas startups
9
de compartilhamento surgiram nos últimos anos a
fim de facilitar conexões entre os indivíduos, criando mercados de redistribuição, de estilos de
vida cooperativos ou, ainda, de serviços de produto
10
.
Mercados de redistribuição são os que possibilitam a troca de bens entre os usuários
conforme acoincidência de quereres”, como o Swaptree, aplicativo no qual é possível ao
indivíduo A despojar-se de objeto, para ele ocioso, em troca de um outro produto que deseje e
que, coincidentemente, seja ocioso para o outro indivíduo B, também a procura do produto de
A
11
.
Mercados de estilos de vida cooperativos são aqueles nos quais se compartilha
dinheiro, habilidades e tempo. Por exemplo, um indivíduo A que, possuindo um espaço vazio
em seu quintal, combine com o indivíduo B, “aspirante a agricultor”, que ambos criarão uma
pequena hortaliça. É o caso de aplicativos como o Landshare
12
.
Por fim, o mercado de sistema de serviços de produtos é aquele no qual o usuário
aluga determinados produtos para outrem como, por exemplo, o indivíduo que aluga sua
furadeira para seus vizinhos
13
.
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7
Líder global em Economia do Compartilhamento, a autora pesquisa sobre os impactos globais da economia do
compartilhamento nos mercados capitalistas. Disponível em: https://rachelbotsman.com/
8
BOTSMAN, Rachel. Sharing Economy & Trust. Disponível em: https://rachelbotsman.com/thinking/. Acesso
em 17 jun 2018.
9
Grupo de pessoas que trabalham com modelo de negócios repetível e em larga escala, cujo crescimento tende a
ser exponencial e que operam, substancialmente, com alto grau de incerteza. Disponível em:
a-startup/> Acesso em 17 de jun 2018.
10
BOTSMAN, Rachel. The Case for Collaborative Consumption. TED Talk. Disponível em:
https://www.ted.com/talks/rachel_botsman_the_case_for_collaborative_consumption> Acesso em: 17 jun 2018.
11
BOTSMAN, op. cit.
12
BOTSMAN, Rachel. The Case for Collaborative Consumption. TED Talk. Disponível em:
umption> Acesso em: 17 jun
2018.
13
BOTSMAN, op., cit.
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Diversos outros exemplos de plataformas podem ser citados, como assinala Botsman:
Estamos compartilhando nossos carros no Whipcar, nossas bicicletas no Spinlister, nossos
escritórios no Loosecubes, nossos jardins no Landshare. Estamos e mprestando e pegando
emprestado dinheiro de estranhos no Zopa e no Lending Club. Estamos trocando
conhecimentos sobre tudo, desde como fazer sushi até como codificar, no Skillshare, e
estamos compartilhando até nossos animais de estimação no DogVacay. Bem-vindos ao
maravilhoso mundo do consumo colaborativo que está nos habilitando para reunir o
“querer” com o “ter” de formas mais democráticas
14
.
Dessa forma, a Economia do Compartilhamento sugere a conexão entre pessoas
desconhecidas com a finalidade de estimular transações comerciais que viabilizem interações
sociais saudáveis, com a ideia de que o ser humano passa a “consumir para conhecer seus
vizinhos”
15
, descartando a ociosidade de produtos que possua, evitando o consumismo
exacerbado e, até mesmo, utilizando de seu tempo livre, dons ou serviços em prol de outras
pessoas.
Nesse sentido, dissemina-se a concepção de que pessoas comuns, sem comprometer
suas rotinas ou liberdade pessoal, compartilham bens pessoais e/ou atributos físicos,
intelectuais, entre outros, com desconhecidos, podendo até mesmo aproveitar ganhos em seus
orçamentos mensais.
Em verdade, a permuta, o arrendamento e a prestação de serviços são institutos já
conhecidos e regulados pelo Direito. Contudo, o que diferencia as empresas baseadas em
Economia de Compartilhamento das já conhecidas práticas mencionadas é a escala na qual as
referidas transações ocorrem, o que implica em alterações sensíveis na economia e comércio
globais, assim como na vida dos indivíduos, adeptos ou não da Sharing Economy.
De fato, grandes representantes da Economia de Compartilhamento como o Airbnb,
Lyft, Uber, BlaBlaCar, Didi e TaskRabbit são, na verdade, grandes corporações, ancoradas
em altíssimo montante de capital de risco, que operam por meio de aplicativos ou websites e
movimentam milhões anualmente na economia mundial, além de possuírem notáveis
investidores, como Peter Thiel, fundador do PayPal, e o CEO da Amazon, Jeff Bezos. Dessa
maneira, são macro organizações comerciais tecnológicas
16
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14
Idem, The Currency of the New Economy is Trust. TED Talk. Disponível em:
_the_currency_of_the_new_economy_is_trust> Acesso em: 17 jun
2018.
15
BOTSMAN, op., cit.
16
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora
Elefante, 2017.
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É possível destacar três tipos de serviços que, atualmente, são mais expressivos na
Economia do Compartilhamento: hospedagem (43%), transporte (28%) e educação (17%),
cujas empresas mais bem sucedidas do ramo possuem arrecadações de fundo expressivas
17
:
(...) Até agosto de 2015, o Airbnb elevou sua arrecadação de fundos a expressivos US$ 2,3
bilhões, o Lyft alcançou US$ 1 bilhão, e sua c ompetidora, a Uber, (...) havia amealhado
US$ 7 bilhões
18
.
Entretanto, embora a ideia inicial da Economia do Compartilhamento seja o incentivo
ao consumo colaborativo
19
, mediante a confiança entre desconhecidos e o posterior
empoderamento daqueles indivíduos que compartilham visando o bem comum, o uso coletivo
e trocas comerciais que gerem interações humanas preenchidas de significado, percebe-se que
as empresas alteram prejudicialmente o modo de consumo e as formas de trabalho da
sociedade.
Nessa senda, apesar de sugerirem um novo modo de abordagem da oferta e da
demanda nos diversos mercados criados, as empresas da Economia do Compartilhamento são
reguladas por intenso autointeresse corporativo que objetiva expandir o livre mercado para as
áreas privadas da vida dos indivíduos em benefício de altos ganhos financeiros dessas
mesmas corporações
20
. É a razão pela qual determinadas startups de economia do
compartilhamento, utilizando-se da prestação de serviços, ultrapassam a esfera da colaboração
“entre vizinhos” e do empoderamento individual para transformarem-se em novas formas de
precarização do trabalho humano.
3 A Economia de Compartilhamento e o Trabalho
3.1 O TaskRabbit
Expoente nos Estados Unidos e Reino Unido, o TaskRabbit é uma das empresas de
Economia do Compartilhamento mais bem sucedidas no ramo da prestação de serviços, cujo
objetivo inicial resumia-se em conectar, mediante plataforma online, consumidores que
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17
SLEE, Tom, op., cit.
18
Ibidem, p. 43 Vale mencionar que os números correspondem à época da pesquisa. Atualmente, por exemplo, a
Uber já possui capital estimado em US$ 70 bilhões, sendo mais valiosa que as grandes empresas de aluguel de
carros como a Hertz, Avis e Enterprise.
19
"A reinvenção dos comportamentos tradicionais de mercado - alugando, emprestando, trocando,
compartilhando, trocando, presenteando - através da tecnologia, ocorrendo de maneiras e numa escala não
possíveis antes da internet. Um princípio chave subjacente é a "capacidade ociosa": o poder da tecnologia para
desvendar o valor social, econômico e ambiental dos ativos subutilizados”. BOTSMAN, Rachel. Collaborative
Consumption (2010). Disponível em ://rachelbotsman.com/thinking/>. Acesso em 17 jun 2018.
20
SLEE, Tom, op., cit.
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desejassem terceirizar a realização de tarefas básicas de seu dia-a-dia para terceiros dispostos
a realizá-las por determinado valor
21
.
Dessa maneira, o cliente disponibilizava no aplicativo a tarefa que gostaria que fosse
realizada e diversas pessoas poderiam sugerir o valor mediante o qual realizariam aquela
tarefa. As atividades, contudo, tratavam-se majoritariamente de compras de supermercado,
pequenos consertos domésticos, entre outras.
Inicialmente, o aplicativo sugeria que as pessoas, em seu tempo livre, poderiam
realizar as atividades disponibilizadas pelos clientes no aplicativo como um meio de aumentar
sua renda, além de se relacionar com outras pessoas e colaborar para a vida em comunidade.
Contudo, a realidade de grande parte dos taskers
22
traduz-se em pessoas que, em face
do desemprego, buscam alternativas para gerar renda e sobreviver. De fato, é comum
encontrar usuários do aplicativo que utilizam as atividades como fonte única ou principal de
renda, trabalhando todos os dias da semana e realizando as mais diversas atividades durante o
dia
23
.
Como exemplo, cita-se o caso de David Cordova, em entrevista concedida à revista
norte-americana Times
24
:
Eu tinha acabado de perder meu emprego na indústria financeira (...) Originalmente,
comecei a trabalhar com eles como uma maneira de ter um pouco mais de dinheiro.
Horas: cerca de seis horas por dia, mas isso depende de quanto tempo as tarefas demoram.
Os trabalhos normalmente são executados em duas horas, e eu tento agendar dois a três por
dia. Eu tento continuar de segunda a sexta, mas recentemente estendi até sábado.
Sua taxa: US$ 25 por hora para e ventos e US$ 60 ou US $ 65 por hora para tarefas de
levantamento pesado e montagem de móveis; US$ 80 por hora para se mudar. Eu comprei
minha própria van e aumentei minha taxa horária porque eu tenho que pagar gasolina e
pedágio. (....)
Quanto ele faz: posso ganhar de US$ 500 a US$ 750 por semana. Quando eu realmente
trabalho duro, posso ganhar cerca de US $ 4.000 por mês.
Trabalho mais louco: (. ..) Eu t ive que ficar do lado de fora de uma escola para crianças de
um a três anos e dizer às babás e mães onde estacionar seus carrinhos. Eu fiz isso por oito
dias. (... ) Além disso, também obtive algum trabalho administrativo, mas a empresa
realmente não precisou de assistência administrativa. Eles só precisavam de pessoas para se
sentarem lá, então quando os clientes saíam do prédio eles não passavam por um quarto
vazio.
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21
SINGER, Natasha. In the sharing economy, workers find both freedom and uncertainty. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2014/08/17/technology/in-the-sharing-economy-workers-find-both-freedom-and-
uncertainty.html > Acesso em 15 jun 2018.
22
Colaborador do TaskRabbit.
23
SINGER, Natasha, op., cit.
24
ZIMMERMANN, Jackie. This is What it Takes to Make $2,000 a Week Working on TaskRabbit. Disponível
em: http://time.com/money/3714829/working-for-taskrabbit/> Acesso em 17 jun 2018.
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98
Assim como o entrevistado, diversos trabalhadores diariamente precisam organizar
sua agenda, sem qualquer previsibilidade no tocante às tarefas que irão realizar, seu tempo de
duração, grau de dificuldade e, ainda, qual valor terão recebido ao final de cada dia.
Ressalta-se também que a diversidade das atividades desempenhadas, desde trabalhos
domésticos a eventos, impossibilita o desenvolvimento do trabalhador, não somente pela
natureza das atividades desenvolvidas (montagem de armários, lavagem de roupas, entre
outros), mas porque se nega o aperfeiçoamento pessoal pelo exercício de uma profissão ou
atividade regular.
Além disso, há de se mencionar que o aplicativo conecta não somente indivíduos, mas
pessoas comuns à empresas que, valendo-se da precarização do trabalho, utilizam o aplicativo
para angariar mão-de-obra, como os casos dos taskers Jonatham Lal e Brian Schrie, que
trabalharam para empresas de eventos por intermédio do aplicativo
25
:
(...) ganhei US$ 70 por hora para dobrar camisetas para uma empresa iniciante. Eles
deveriam vir dobrados, e a companhia estava desesperada para colocá-los dobrados antes
de um evento.
Eu ajudei em um evento de mídia para a abertura de um parque pela Union Square, em San
Francisco, e consegui conhecer o prefeito.
Portanto, embora a ideia inicial do TaskRabbit fosse a obtenção de renda extra
mediante a solidariedade entre vizinhos, o aplicativo funciona principalmente como
intermediador de trabalhadores que, desempregados ou subempregados, aderem aos mais
diversificados trabalhos, sendo-lhes negado desenvolvimento e emancipação individual.
Vale mencionar que diversos aplicativos da Economia do Compartilhamento são
utilizados ao mesmo tempo pelas pessoas, que diariamente alternam entre tarefas no
TaskRabbit e corridas pelo Uber ou Lyft, ou cedem seus cômodos ou imóveis inteiros pelo
Airbnb, como forma de não se manterem desocupados e poderem sobreviver.
À guisa de conclusão, transcreve-se a entrevista de Jennifer Guidry, veterana da
marinha e ex-contadora, usuária das plataformas Uber, Lyft, Sidecar, TaskRabbit e Airbnb,
cuja rotina em 24h foi assim descrita
26
:
Por volta das 4h30, Guidry (...) pegou o TaskRabbit em seu laptop para verificar se havia
alguma oferta. Ela rolou pelo Craiglist, onde ocasionalmente trabalha como chef particular
(...). Ela olhou para o sofá-cama em sua mesa, refletindo em voz alta se poderia alugar pelo
Airbnb (...). Resignada, a Sra. Guidry ativou seu Iphone Uber (...) Em seu te lefone pessoal
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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25
ZIMMERMANN, Jackie. This is What it Takes to Make $2,000 a Week Working on TaskRabbit. Disponível
em: http://time.com/money/3714829/working-for-taskrabbit/> Acesso em 17 jun 2018.
26
SINGER, Natasha. In the sharing economy, workers find both freedom and uncertainty. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2014/08/17/technology/in-the-sharing-economy-workers-find-both-freedom-and-
uncertainty.html > Acesso em 15 jun 2018.
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99
Samsung Galaxy, ela ativou os modos de driver para seus a plicativos Lyft e Sidecar (... ).
Pouco mais de uma hora depois, a sra. Guidry voltou pra casa, depois de ter concluído a
largada do aeroporto (...). Ela faria uma segunda corrida no aeroporto, depois voltaria para
acordar a família e preparar o café da manhã. (...) Com a bolsa cheia de ferramentas (...) foi
de carro até uma casa a alguns quilômetros de seu apartamento em uma tarefa do
TaskRabbit (...) Os clientes (...) já tinham contratado Guidry para montar um carrinho de
madeira para seu filho (...). Agora ela deveria proteger um baú que continha sua porcelana
de casamento e taças de cristal. (...) Mais tarde, ela ajustou um portão de segurança para
crianças no topo de uma escada. Depois disso, ela pendurou uma campainha de vento na
varanda dos fundos. (...) Mais tarde, transportou passageiros por algumas horas (...) (foi) ao
supermercado para comprar mais ingredientes para as refeições do cliente. (....) Por volta da
meia-noite, ela retornou ao modo motorista, levando os moradores de Boston para os clubes
do centro e para festas locais (...) até 5 a.m.
Como se pode observar, diariamente os “ajudantes” são confrontados com serviços
pontuais, num regime de trabalho fragmentado, marcado pela incerteza e por longas horas de
trabalho, déficit de sono e sem qualquer proteção jurídica
27
.
Assim sendo, a falta de continuidade na prestação de um trabalho impacta
sensivelmente em sua formação humana, de modo que pesquisadores norte-americanos
28
afirmam que as tarefas desenvolvidas nas Economias de Compartilhamento “não são
empregos, empregos que tem futuro, empregos que tem a possibilidade de atualização; isso é
trabalho arbitrário e contingente”.
Embora a plaforma TaskRabbit ainda não esteja operando no Brasil, o fato é que não
se pode ignorar as novas formas de trabalho humano que se desenvolvem fortemente em
países de significativa influência na economia, mercado e, até mesmo, cultura brasileiras.
Em verdade, os taskers já computavam, à época da reportagem, mais de 30 mil
pessoas, operando em 19 áreas metropolitanas dos EUA e Londres, tendo levantado mais de
US$ 38 milhões em investimentos, e o fenômeno tende a ser crescente
29
.
Por certo, o mundo do trabalho há muito passou a ser globalizado, assim como a
economia, de modo que mudanças tão significativas na morfologia do trabalho em países
como os Estados Unidos impactam no modo de trabalho dos brasileiros.
Indubitavelmente, as diversas empresas de Sharing Economy possuem características
em comum no tocante à utilização de prestadores de serviço ou, como preferem denominá-
los, “colaboradores” ou “microempreendedores”, de modo que diversas características se
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
27
SINGER, Natasha, op., cit.
28
Sara Horowitz, fundadora e diretora executiva da Freelancers Union; Dean Baker, economista e co-diretor do
Centro de Pesquisa Econômica e Política em Washington; Stanley Aronowitz, diretor do Centro para o Estudo
da Cultura, Tecnologia e Trabalho no Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova Work. Para
mais, ace ssar: SINGER, Natasha, op., cit.
29
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora
Elefante, 2017.
!
100
aplicam igualmente às empresas como a Uber, Lyft, Didi e TakRabbit, razão pela qual o
estudo dos fenômenos observados com os taskers mencionados, por exemplo, podem ser
estendidos aos motoristas da Uber ou do Lyft, o que permite maiores discussões sobre a
Economia do Compartilhamento no Brasil.
3.2 A Uber
Fenômeno mundial, a Economia de Compartilhamento de mobilidade é movimento
notório e crescente, cujos representantes são macro organizações de sucesso como a Uber,
Lyft, BlaBlaCar, Didi, ZipCar, entre outros, prestando serviços de compartilhamento de
viagens de curta ou longa distância, sendo algumas largamente utilizadas pelos brasileiros.
A Uber
30
, corporação bilionária cujo segundo maior cliente é o Brasil
31
, foi fundada
em junho de 2010 e atualmente está presente em mais de 65 países , contando com mais de 3
milhões de motoristas no mundo. Em relação ao Brasil, está presente em mais de 100 cidades
brasileiras e possui mais de 500 mil motoristas e mais de 20 milhões de usuários brasileiros.
Realiza, em média, mais de 15 milhões de viagens por dia no mundo
32
.
A empresa baseia-se na ideia de que o compartilhamento de viagens movimenta a
economia na medida em que permite aos motoristas uma geração de renda viável, além de
estimular a vivência comunitária, o acesso às cidades e, ainda, preservar o meio ambiente,
permitindo praticidade e menores custos aos passageiros
33
.
Disponibiliza, para tanto, diversos serviços aos motoristas e passageiros, como
seguros de viagens, proteção (mediante compartilhamento das viagens com familiares),
assistência 24h no aplicativo e telefone emergencial, além de tabelas práticas em seu website
e aplicativo para auxiliar os motoristas a calcular seus ganhos de maneira fácil e
transparente
34
.
A empresa ainda oferece vantagens exclusivas para aqueles que desejam adquirir um
carro para trabalhar na plataforma, assim como planos de celulares (para fins de utilização do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
30
Uber é uma “empresa de tecnologia que está transformando a maneira como as pessoas se movimentam pelas
cidades. Ao conectar, de forma simples, motoristas parceiros e usuários através de nosso app, ajudamos a deixar
cidades mais acessíveis, oferecendo mais opções para usuários e mais oportunidades de negócios para motoristas
parceiros”. A Uber. Disponível em com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/>. Acesso
em 15 jun 2018.
31
Informação disponibilizada no site V alor. Disponível em ber-
investe-r-250-milhoes-em-centro-tecnologico-no-brasil>. Acesso em 16 jun 2018.
32
A Uber. Disponível em R/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/>. Acesso em 15
jun 2018.
33
Uber. Disponível em .com/br/en/drive/> Acesso em 15 jun 2018.
34
Uber, op,. cit.
!
101
aplicativo), descontos em manutenção dos automóveis e em combustível, além de
desenvolvimento profissional por meio de vantagens em cursos de idiomas, negócios,
finanças pessoais, entre outros
35
.
O mais atraente, contudo, é a ideia de que o motorista poderá definir seu próprio
horário de trabalho, assim como receber semanalmente os lucros de suas viagens
36
.
Entretanto, apesar dos aparentes benefícios assegurados, percebe-se que a empresa
comporta-se de maneira a não se responsabilizar por nenhum de seus “parceiros” ou clientes,
envolvendo-os em incertezas, determinando o montante que irão receber, estipulando – ou
melhor, definindo – jornadas mínimas de trabalho e controlando-os por meio de pontuações.
É o que se abordará a seguir.
3.2.1 O modelo de trabalho na Uber
Ao se habilitar para dirigir na Uber
37
, a pessoa física é informada sobre as expectativas
de ganhos semanais que obterá caso possua “disciplina e controle dos custos”, sendo-lhe
comunicado que:
Em média, os parceiros que dirigem de 15 a 30 horas por semana com a Uber tem ganhos
líquidos de R$ 180,00 a R$ 350,00 por semana, já tirando a taxa Uber e custos com
combustível.
Já aqueles que dirigem mais de 40 horas na semana, tirando o combustível e a taxa Uber,
tem ganhos líquidos de em média R$480,00 por semana ou mais
38
.
Como se observa, a empresa indiretamente induz o motorista iniciante à determinadas
jornadas de trabalho, indicando-lhe o modo de trabalho dos motoristas já habilitados como
modelo para lucratividade.
Contudo, de acordo com o site da empresa, o valor das corridas varia de acordo com o
tempo e distância percorrida em cada viagem. Nesse sentido, assim também varia a taxa
devida à Uber
39
.
É preciso salientar que a própria corporação define não somente o valor da viagem
mas também a porcentagem que cobrará sobre essa viagem (taxa). Além disso, realiza a
cobrança do passageiro em nome do parceiro – como “agente limitado de cobrança” do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
35
Uber, op,. cit.
36
Uber, op,. cit.
37
A autora, para fins de pesquisa, habilitou-se na Uber como motorista.
38
Dados enviados por e-mail à autora pela empresa.
39
Uber. Disponível em .com/br/en/drive/>
!
102
prestador terceiro –, repassando semanalmente o valor líquido das viagens, já excetuadas as
referidas taxas
40
.
Interessante mencionar, ainda, que os termos e condições contidos no contrato com a
empresa definem que poderá ela: (i) “limitar os preços cobrados em espécie”; (ii) determinar à
seu critério promoções e créditos aos passageiros; (iii) alterar discricionariamente formas de
funcionamento do aplicativo (o que implica sensivelmente nos ganhos dos motoristas); (iv)
estabelecer, remover e/ou revisar o preço relativo a todos os serviços; (v) além de aumentar os
preços quando a oferta de serviços for menor que a demanda
41
.
Dessa maneira, pode-se perceber que a empresa define e altera os valores das viagens
ou, em outras palavras, a remuneração dos parceiros, assim como define as regras de cobrança
e recebimento desses valores, repassando-os aos parceiros. Ainda é possível até mesmo que
os remunere diretamente, quando agracia clientes com créditos promocionais que, não
ocasionalmente, lhes proporcionam corridas gratuitas, oportunidades nas quais repassa o valor
devido aos motoristas
42
.
Outra característica relevante refere-se às normas de conduta e desligamento
aplicáveis aos parceiros da Uber. Ocorre que a empresa possui arcabouço rígido de regras
acerca do comportamento esperado dos motoristas e usuários, além de Código de Conduta da
Comunidade
43
, Políticas de Desativação
44
, entre outros, cujo objetivo é assegurar a boa
reputação e confiabilidade da própria empresa.
Efetivamente, os parceiros são instruídos sobre como se portar durante a prestação do
serviço – conferir o nome do cliente antes de recebê-lo no interior do veículo, não dialogar a
menos que o cliente tome a iniciativa, uso do ar condicionado e música ambiente, manter o
veículo devidamente higienizado, entre outros –, de maneira a serem bem avaliados pelo
cliente ao final da viagem
45
.
Entretanto, a avaliação mútua realizada – pois os clientes também são avaliados pelos
motoristas – vai além da mera pesquisa de satisfação. Em verdade, os parceiros que durante o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
40
Uber, op., cit.
41
Uber. Termos. Disponível em: w.uber.com/pt-BR/legal/terms/br/> Acesso em 17 junh 2018.
42
Uber, op. cit.
43
Uber. Guia de Comunidade. Disponível em: comunidade-uber/>
Acesso em 15 jun 2018.
44
Uber. Política de Desativação. Disponível em: drive/resources/regras/> Acesso
em 15 jun 2018.
45
Informações concedidas por entrevistado.
!
103
prazo de 30 dias não alcançam avaliações entre 4.80 e 4.90 (no total de 5 estrelas)
46
são
prontamente desligados do aplicativo, conforme determinado pela política de desativação
acima mencionada
47
.
Indispensável, inclusive, é fazer alusão às metas impostas pela empresa aos seus
parceiros. Em verdade, os motoristas são instigados a cumprir metas sob pena de desativação
do aplicativo, o que significa que possuem um tempo mínimo aceitável de uso da plataforma
e de viagens.
Consequentemente, são obrigados a aceitar 90% das corridas que lhe são oferecidas
48
,
devendo alcançar taxas de aceitação dentro da média de sua cidade, não ultrapassar as taxas
de cancelamento estipuladas ou, ainda, não permanecer online sem disponibilidade imediata
para a prestação do serviço
49
.
Isto posto, constata-se que a Uber (i) define a remuneração dos motoristas, cobrando
dos passageiros em nome dos condutores ou pagando-a diretamente; (ii) define regras sólidas
acerca do comportamento dos parceiros a fim de assegurar a reputação da empresa,
submetendo-os a constantes avaliações e exigindo-lhes notas máximas, sob pena de
desligamento; (iii) definem metas acerca do número de viagens que devem ser aceitas e/ou
podem ser recusadas
50
.
À vista disso, pode-se concluir que a corporação exerce forte controle sobre os
prestadores de serviços, não somente no que toca à sua liberdade pessoal mas, principalmente,
no que se refere à prestação do serviço.
Abertamente, a empresa declara em seu contrato com os trabalhadores que “os
serviços e todos os direitos sobre eles são e permanecerão de propriedade da Uber (...)”
51
,
acrescentando que os usuários concordam em:
(...) indenizar e manter a Uber (...) por todas e quaisquer reclamações, cobranças, prejuízos,
responsabilidades e despesas (...) decorrentes ou relacionados: (i) ao uso dos Serviços, de
serviços ou bens obtidos por meio do uso dos serviços; (iv) violação dos direitos de
terceiros, inclusive Prestadores Terceiros
52
.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
46
Dados referentes à cidade de São Paulo capital.
47
Média de Avaliação - Manter uma média de avaliação por parte dos usuários da plataforma abaixo da média
de avaliação da cidade. Política de Desativação. Disponível em
BR/drive/resources/regras/> Acesso em 15 jun 2018.
48
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora
Elefante, 2017.
49
Uber. Políticas de desativação, op. cit.
50
Uber. Termos. Disponível em: w.uber.com/pt-BR/legal/terms/br/> Acesso em 17 junh 2018.
51
Uber. op., cit.
52
Uber, op., cit.
!
104
Nesse sentido, coloca-se como proprietária da prestação de todo e qualquer serviço ou
bem obtido por meio do “uso dos serviços”, ou seja, do aplicativo. Dessa maneira, define que
deverá ser indenizada até mesmo por prejuízos ou despesas causadas aos seus trabalhadores.
Fica claro, portanto, que os motoristas da Uber não são meros prestadores de serviços
independentes mas que, seguramente, experimentam certo grau de subordinação à empresa.
Apesar da conclusão alcançada, a Uber declara, hialinamente, nos termos contratuais
firmados com os parceiros e usuários que “prestadores parceiros independentes não são
empregados(as) e nem representantes da Uber, nem de qualquer de suas afiliadas”
53
, ao passo
em que é reconhecido que o uso dos aplicativos das empresas de Economia do
Compartilhamento pelos clientes fundamenta-se necessariamente na confiança na empresa em
si, e não necessariamente no prestador do serviço
54
.
Logo, as pessoas utilizam o aplicativo não apenas pela confiança no motorista, mas
principalmente pela confiança na reputação da empresa, de maneira que é incorreto
desconsiderar os trabalhadores como legítimos representantes da Uber.
Em suma, apenas para fins de reforçar o argumento, é preciso ressaltar que a
corporação salienta – em seu Guia da Comunidade – que “o respeito entre todos é o mais
importante para continuar confiando na plataforma” ou, em outras palavras, na empresa.
Assim sendo, o controle exercido sobre os motoristas é uma forma de garantir a idoneidade
empresarial.
3.3 A Precarização do Trabalho nas Economias de Compartilhamento
As empresas de Economia de Compartilhamento, adeptas da ideia da colaboração
entre pessoas em prol do fortalecimento dos laços comunitários, inegavelmente transformou
os modos de consumo da sociedade. Por meio da tecnologia, é possível compartilhar bens e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
53
Uber, op, cit.
54
“Mas, estudando centenas de redes e mercados, existe um padrão que as pessoas seguem, que eu chamo de
“escalando o monte da confiança”. Vou usar o BlaBlaCar como um e xemplo real. No primeiro nível, temos de
acreditar (...) que a ideia de compartilhar uma corrida é segura (...). O segundo nível refere-se a confiar na
plataforma, que o BlaBlaCar vai nos ajudar se algo der errado. E o terceiro nível refere-se a usar poucas
informações para decidir se a outra pessoa é de confiança”. BOTSMAN, Rachel. We've stopped trusting
institutions and started trusting strangers. TED Talk. Disponível
em:otsman_we_ve_stopped_trusting_institutions_
and_started_trusting_strangers/transcript> Acesso em 15 jun 2018.
!
105
serviços mediante a confiança depositada nas plataformas digitais e, consequentemente, em
pessoas desconhecidas
55
.
As mudanças experimentadas nas formas de consumo alteraram o mundo do trabalho,
de maneira que expressivos contingentes populacionais utilizam-se dos aplicativos na busca
de renda extra ou, como em muitos casos, como única forma de sobrevivência, conforme
pontuou Sara Horowitz ao referir-se à Sharing Economy: “As pessoas estão fazendo isso em
meio à estagnação salarial e à desigualdade de renda, e precisam fazer essas coisas para
sobreviver”
56
.
A maneira como os trabalhos são desempenhados ou, até mesmo, sua natureza, tem
gerado a crítica de diversos economistas e pesquisadores norte-americanos que alertam que,
embora a fragmentação da mão-de-obra não seja algo novo no mercado, ela aparenta ser
novidade quando acompanhada de alta tecnologia, mediante o uso de plataformas digitais e
websites, com novas denominações como “economia dos pares”, “economia colaborativa” ou
“economia compartilhada”
57
.
Por certo, a sugestão de que os trabalhadores possuem autogestão e variedade na
prestação de serviços, elaborando seus próprios cronogramas e escolhendo as atividades que
irão desempenhar – além de poderem trabalhar para “seus pares” e não para “chefes” ou
corporações “sem rosto” – objetiva mascarar a situação fática de precarização laboral que
enfrentam
58
.
Com efeito, a Economia do Compartilhamento apenas democratizou serviços “de
luxo” antes desempenhados por profissionais em tempo integral, como motoristas, chefs de
cozinha e assistentes pessoais, hoje caracterizados, contudo, com a marca da ocasionalidade
59
.
Defendem os economistas que as empresas da Sharing Economy crescem
exponencialmente devido ao fraco mercado de trabalho mundial, pois os indivíduos não
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
55
BOTSMAN, Rachel. We've stopped trusting institutions and started trusting strangers. TED Talk. Disponível
em:otsman_we_ve_stopped_trusting_institutions_
and_started_trusting_strangers/transcript> Acesso em 15 jun 2018.
56
SINGER, Natasha. In the sharing economy, workers find both freedom and uncertainty. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2014/08/17/technology/in-the-sharing-economy-workers-find-both-freedom-and-
uncertainty.html > Acesso em 15 jun 2018.
57
SINGER, Natasha, op. cit.
58
SINGER, Natasha. In the sharing economy, workers f ind both freedom and uncertainty. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2014/08/17/technology/in-the-sharing-economy-workers-find-both-freedom-and-
uncertainty.html > Acesso em 15 jun 2018.
59
SINGER, Natasha, op. cit.
!
106
conseguem empregos em tempo integral, sujeitando-se a trabalhos temporários que, na
verdade, são mais acessíveis.
De fato, os falsos microempreendedores da Economia do Compartilhamento são
encorajados pelas grandes corporações a aceitar ocupações pontuais, intermitentes, precárias e
sem quaisquer benefícios ou proteções básicas de emprego
60
.
Deveras, frisam que o modelo de trabalho criado incentiva, por demasiado, a
concorrência entre os trabalhadores, acentuando sua individualidade, colocando-os “uns
contra os outros”, vez que competem entre si pelos mesmos trabalhos e, assim sendo,
estipulam preços cada vez menores por seus serviços, sem qualquer freio regulatório
61
.
A competição torna-se ainda mais intensa dadas as avaliações aos quais são
submetidos pelas empresas – como a reputação de estrelas da Uber ou o novo algoritmo do
TaskRabbit, que conecta os clientes à taskers com determinadas habilidades e orçamentos –
de modo que muitos trabalhadores afirmam que, a depender da alteração no modo de
funcionamento do aplicativo, passam a ter mais ou menos ofertas de serviços
62
.
A precarização é intensificada, portanto, pelas frequentes alterações implementadas no
aplicativo, pois coagem os “colaboradores” a elaborarem constantes estratégias de serviço,
preços ou a diversificarem cada vez mais suas atividades a fim de manterem uma carta de
clientes considerável, como informa Horowitz: “Ter um portfólio diversificado é a melhor
proteção”
63
.
Outro ponto relevante, apontado pelos referidos pesquisadores, é que muitos
colaboradores percebem menos que o salário mínimo observados os gastos demandados com
a prestação do serviço, como as taxas devidas aos aplicativos, as despesas, impostos e seguros
que adquirem por conta própria
64
.
Deveras, os mercados online vigentes encontram novas maneiras de monetizar a mão-
de-obra e bens, levando as pessoas a se auto-explorarem, sem qualquer proteção formal
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
60
SINGER, Natasha, op. cit.
61
SINGER, Natasha, op. cit.
62
SINGER, Natasha, op. cit.
63
SINGER, Natasha. In the sharing economy, workers find both freedom and uncertainty. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2014/08/17/technology/in-the-sharing-economy-workers-find-both-freedom-and-
uncertainty.html > Acesso em 15 jun 2018.
64
SINGER, Natasha, op. cit.
!
107
adequada capaz de lidar com as assimetrias observadas na prestação de trabalhos
contingentes, faltando-lhes a mínima proteção jurídica e segurança
65
.
Em suma, a relação observada entre as empresas da Economia do Compartilhamento e
seus parceiros as tornam verdadeiras “corretoras de mão-de-obra”
66
.
4 A Constituição Federal de 1988 e a Economia do Compartilhamento: uma leitura
constitucional das formas de prestação de serviços
O episódio da Economia do Compartilhamento é global e, certamente, irreversível,
alcançando os mais diversos países. O Brasil, que já experimenta essa realidade, precisa
promover a interpretação e o acolhimento das novas morfologias do trabalho então aventadas
de acordo com a Carta Magna de 1988, de maneira a garantir a devida regulação e, portanto, a
proteção de diversos trabalhadores.
4.1 A Constituição da República de 1988 e o Estado Democrático de Direito
A Constituição da República de 1988 estrutura-se em três pilares essenciais: o Estado
Democrático de Direito; a forte carga principiológica humanística e social; e a consagração
dos direitos fundamentais da pessoa humana.
67
A Carta Magna de 1988 marcou a inauguração, no Brasil, de nova fase do
constitucionalismo, compreendida como constitucionalismo humanista e social
contemporâneo, em fase posterior à 2ª Guerra Mundial. Objetivou aprimorar e aprofundar as
conquistas do Estado Social, avançando em concepção mais abrangente e estrutural da
dignidade da pessoa humana
68
.
Nessa senda, a Constituição de 1988 passou a melhor contemplar os direitos humanos,
principalmente os de caráter social, econômico e cultural (dentre eles, os direitos trabalhistas),
de maneira a orientá-los para a garantia da dignidade do ser humano.
Dessa maneira, o Estado Democrático de Direito – primeiro pilar – é aquele que,
primando pela democracia –– institucionalizada não somente na sociedade política mas,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
65
SINGER, Natasha, op. cit.
66
SINGER, Natasha, op. cit.
67
DELGADO, Maurício; DELGADO, Gabriela. A Reforma Trabalhista no Brasil - com comentários à Lei n.
13.467/17. São Paulo: LTr, 2017.
68
DELGADO, Maurício; DELGADO, Gabriela. op. cit.
!
108
também, na sociedade civil –– passa a centralizar a dignidade do homem como ponto central
de toda a normatividade do país
69
.
De fato, a democracia consiste na participação popular no processo decisório e na
formação dos atos de governo, sejam diretos (como plebiscitos e referendos) ou indiretos
(escolha de representantes)
70
.
Contudo, há de se considerar o papel primordial do regime democrático, a saber,
conferir efetividade à dignidade da pessoa humana
71
.
Logo, pode-se afirmar que o Estado Democrático de Direito atualmente é aquele que
"se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos
civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os
quais de nada valeria a proclamação daqueles direitos".
72
Em relação ao segundo pilar, a Constituição da República consagrou a concepção
normativa dos princípios, ou seja, que possuem o caráter de normas jurídicas, constituindo
princípios gerais que incidem sobre diversas áreas do Direito, principalmente o Direito do
Trabalho. É possível delinear ainda, em caminho inverso, o movimento de
constitucionalização de diversos princípios trabalhistas, como o princípio da norma mais
favorável (art. 7º, caput, da CF/88)
73
.
No tocante ao terceiro pilar, há a proteção constitucional dos direitos fundamentais da
pessoa humana, incluídos aqui os direitos trabalhistas, inseridos no Título II, "Dos Direitos e
Garantias Fundamentais", sendo objeto de proteção do art. 60, §4º, IV, da CF/88 (cláusulas
pétreas)
74
.
Direitos Fundamentais são o conjunto de direitos que, positivados em determinada
Constituição, versam sobre a pessoa humana, podendo ser eles reconhecidos de maneira
expressa ou implicitamente na normativa constitucional
75
.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
69
DELGADO, Maurício; DELGADO, Gabriela op., cit.
70
SANDIM, Fábio Lucas Telles de Menezes Andrade. ENAMAT. Disponível em:
ads/2010/11/TD08-Fabio-Sandim-BREVES
CONSIDERA%C3%87%C3%95ES-SOBRE-O-ELO.pdf> Acesso em 02 set 2018.
71
DELGADO, Mauricio; DELGADO, Gabriela. Constituição da República e Direitos Fundamentais -
dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho. 4.ed. São Paulo: Ltr, 2017.
72
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 149.
73
DELGADO, Mauricio; DELGADO, Gabriela. Constituição da República e Direitos Fundamentais - dignidade
da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho. 4.ed. São Paulo: Ltr, 2017.
74
DELGADO, Mauricio; DELGADO, Gabriela. op., cit.
75
VIEIRA, Oscar Vilhena. Direito s Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros,
2006.
!
109
A necessidade de se proteger constitucionalmente os direitos da pessoa humana se
justifica no fato de que, como preconiza José Afonso da Silva
76
, estes são direitos que
objetivam “uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”, razão pela qual se
denominam fundamentais:
No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas
sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo
sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser,o
apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados
77
.
Por serem encontrados na Constituição, são revestidos pela supremacia de que goza a
Carta Magna, sendo, pois, dotados de superior força jurídica frente às demais normas do
ordenamento
78
.
A escolha de quais direitos são considerados indispensáveis para o ser humano varia
conforme a sociedade, motivo pelo qual se pode dizer que os direitos fundamentais são
também culturais
79
.
Conclui-se, então, que pelo fato dos direitos fundamentais serem reflexo da sociedade
que os elegeu é que se poder ter as mais diversas Constituições: umas que protegem mais os
direitos de liberdade e propriedade, sendo vistas como mais liberais, outras que objetivam a
maior concretização de igualdade material entre os indivíduos e, portanto, consideradas mais
sociais, ou solidárias, entre outras
80
.
Não se deve pensar, no entanto, que o prestígio de que gozam os direitos fundamentais
advenha unicamente do fato de estarem eles positivados constitucionalmente, pois, como
dito, a ideia que prevalece é que são os direitos da pessoa humana que legitimam e conferem
finalidade à Constituição, de tal maneira que não passaria esta de mero arranjo político caso
não se prestasse a garanti-los
81
.
É, pois, neste sentido que também se consegue definir o papel do Estado:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
76
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p 178.
77
SILVA, José Afonso da, op. cit.
78
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas
S.A., 2014.
79
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A cultura dos Direitos Fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio
Leite (Org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 239- 250.
80
VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros,
2006.
81
FERREIRA FILHO, op., cit.
!
110
[...] o Estado é uma realidade instrumental. É uma máquina concebida pelo constituinte
para buscar a plena efetividade, a plena concretização dos princípios, dos objetivos e dos
direitos fundamentais.
82
É ele, portanto, o maior responsável pela prestação de obrigações referente aos direitos
da pessoa humana, tornando-se o principal sujeito passivo das obrigações decorrentes dos
direitos fundamentais
83
.
Reforça-se, por fim, a ideia de que os direitos fundamentais não são criados pelo
Estado, e que “[...] este, sim, está à disposição dos direitos fundamentais para buscar a sua
plena concretização. Os direitos fundamentais não são instrumento do Estado; este, sim, é
instrumento dos direitos fundamentais
84
”.
Assim, caracterizados os referidos pilares, percebe-se que a Constituição Federal de
1988 instrumentaliza o Direito como ferramenta civilizatória, no sentido de incluir
socialmente as parcelas menos abastadas da população, reforçando o ramo trabalhista,
previdenciário e ambiental. Nesse sentido, faz convergir toda a normativa constitucional e
infraconstitucional à proteção da dignidade humana
85
.
4.2 O Direito Fundamental ao Trabalho
É no rol dos direitos fundamentais de segunda geração que se encontra o direito ao
trabalho, que inicialmente foi garantido a fim de se desconstituir a ideia de que o trabalho
poderia ser equiparado e reduzido à simples mercadoria, que se sujeita à lei da oferta e da
procura no mercado
86
.
O problema de transformar o trabalho em algo utilitário é a violação aos direitos da
pessoa humana, pois desprestigia o próprio trabalhador e sua dignidade, vez que o
instrumentaliza assim como instrumentalizado é o ofício (trabalho). Perde, desta maneira, o
caráter social do trabalho e da própria condição humana do obreiro
87
.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
82
CLÉVE, Clémerson Mérlin. O controle de constitucionalidade e a efetividade dos direitos fundamentais. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003. p. 388.
83
VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros,
2006.
84
CLÉVE, Clémerson Mérlin. op., cit., p. 392.
85
DELGADO, Maurício; DELGADO, Gabriela. A Reforma Trabalhista no Brasil - com comentários à Lei n.
13.467/17. São Paulo: LTr, 2017.
86
GOTTI, Alessandra. Direitos sociais: fundamentos, regime jurídico, i mplementação e a ferição de resultados.
São Paulo: Saraiva, 2012.
87
DELGADO, Gabriela Neves. Estado democrático de direito e Direito fundamental ao trabalho digno. Revista
dos Tribunais, São Paulo, n. 925, p. 306-321, nov. 2012.
!
111
O primado do trabalho no capitalismo gerou a centralidade do trabalho na vida do
homem, pois o definia como indivíduo e como membro familiar e social. Ainda, lhe dava
poderes para influenciar e participar da vida social e da economia, motivo pelo qual foi um
grande incentivador e assegurador da democracia
88
.
O trabalho retira da margem os que, nas sociedades excludentes de antes do século
XIX, eram destituídos de riquezas, garantindo um mínimo de poder social à grande massa
populacional que só possuía o trabalho como meio emancipador, dai a “falácia de se instituir
Democracia sem um correspondente sistema econômico-social valorizador do trabalho
humano”
89
.
O empoderamento do homem por meio do trabalho e, logo, a dignidade que daí
provém, se dá também porque é por meio do trabalho que o indivíduo se insere no mercado de
trabalho e, consequentemente, tem acesso aos bens necessários para a sua sobrevivência. Na
lógica da concorrência gerada pelo modelo capitalista, em que toda a produção se volta para o
mercado, os que nele não se inserem estão à margem da sociedade, pois a concorrência
traduz-se em processo de seleção somente dos mais competentes ou fortes
90
.
Ora, garantir os meios para subsistência do homem é garantir-lhe a vida, sendo este o
bem maior da pessoa humana. Portanto, não há meios para que o homem garanta sua
subsistência a não ser pelo trabalho, que deve ser honesto, digno e remunerado, assegurando-
se, consequentemente, uma vida digna para o trabalhador e para toda a comunidade
91
.
O trabalho sendo, pois, remunerado, permite que a pessoa tenha acesso aos bens e
serviços de que necessita. Eis o significado ético e antropológico do trabalho e, logo, do
dinheiro, que definem e condicionam o homem em sua relação com os demais:
No se puede concebir el acesso a la educación, a la vivienda y a la alimentación sin el
recurso al dinero. Por eso, el derecho al trabajo justamente remunerado es la clave de la
“cuestión social
92
.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
88
DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os
caminhos da reconstrução. 3. ed. São Paulo: LTr, 2006.
89
DELGADO, Mauricio Godinho. op. cit., p. 29.
90
SUNG, Jung Mo; SILVA, Josué Cândido da. Conversando sobre ét ica e sociedade. 16. ed. Rio de Ja neiro:
Vozes, 2009.
91
FERRARI, Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. História do
trabalho, do direito do trabalho e da justiça do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2002.
92
"Não se pode conceber o acesso à educação, à habitação e à alimentação sem recorrer ao dinheiro. Portanto, o
direito ao trabalho justamente remunerado é a chave para a "questão social " PABLO, San. Una Nota Teológico-
Etica sobre el dinero. Propuestas Eticas hacia el siglo XXI. Santiago, 1993.
!
112
Assim sendo, é cristalino o entendimento de que o direito ao trabalho é direito que
decorre do próprio direito à vida e que pode, assim sendo, ser concebido como tão natural e
imperioso quanto a necessidade de viver
93
.
Daí porquê definir o trabalho como direito fundamental, já que ele – transcendendo
uma perspectiva meramente produtiva ou econômica – assegura o direito à vida por meio do
acesso aos meios de subsistência, e faz nascer, no homem, uma identidade pessoal. O
indivíduo, portanto, reconhece-se como sujeito de direitos, merecedor da tutela e proteção do
Estado
94
.
Promove, ainda, uma identidade social dado o reconhecimento da pessoa pela própria
comunidade, o que lhe permite desempenhar um papel, uma função, sentindo-se útil e capaz
de participar da vida em comum
95
.
A Constituição Federal de 1988 definiu, em seu Capítulo II, Título II, os direitos
sociais no Brasil. Eis a redação do artigo 6º:
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.
No entanto, nem o artigo 6º, assim como o artigo 7º (responsável por definir os
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais), trataram de definir expressamente o direito ao
trabalho. Este, portanto, é depreendido da interpretação conjugada do artigo 1º, inciso IV, que
declara que a República Federativa do Brasil tem como um dos fundamentos os valores
sociais do trabalho, com o artigo 170 que definiu que a ordem econômica brasileira funda-se
na valorização do trabalho, e o artigo 193, que define que a ordem social baseia-se no
primado do trabalho
96
.
Desta forma, consegue-se reconhecer o direito social ao trabalho como condição para
se efetivar a existência digna (finalidade da ordem econômica) e, em última instância, a
dignidade da pessoa humana, como prevê o artigo 1º, inciso III, da CF/88, fundamento da
República Federativa do Brasil
97
.
O direito social ao trabalho previsto pela Constituição de 1988 envolve o direito à
livre escolha de uma profissão, e de formação para tal, assim como o direito à relação de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
93
FERRARI, Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. op. cit.
94
DELGADO, Gabriela Neves. Estado democrático de direito e Direito fundamental ao trabalho digno. Revista
dos Tribunais, São Paulo, n. 925, p. 306-321, nov. 2012.
95
DELGADO, Gabriela Neves. op. cit.
96
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2011
97
Silva, José Afonso da. op. cit.
!
113
emprego (artigo 7º, I) por meio da garantia de emprego, que traduz-se no direito de o
trabalhador manter sua relação de emprego (continuidade da relação de emprego) em vista
das dispensas arbitrárias do empregador
98
.
Embora trabalhador seja, como apregoa Carlos Henrique Bezerra Leite, em sentido
amplo, “toda pessoa física que utiliza sua energia física, mental ou intelectual em proveito
próprio ou alheio, visando a um resultado determinado, econômico ou não”, e que, em razão
disto, chegue-se à conclusão de que nem todo trabalhador seja empregado, a interpretação
constitucional dada pelo nobre doutrinador é de que, à luz do ordenamento constitucional,
apenas os empregados são destinatários dos direitos previstos no artigo 7º, da CF/88
99
.
Tal interpretação advém da corrente doutrinária restritiva, que defere somente ao
trabalhador subordinado a proteção conferida pelo Direito do Trabalho
100
.
É mais coerente, no entanto, dentro da perspectiva dos direitos fundamentais sociais, a
corrente ampliativa, que entende que todos os trabalhadores, subordinados ou não, são
destinatários dos direitos tutelados pelo Direito do Trabalho
101
.
Pode-se inclusive dissertar sobre a impossibilidade de interpretação diversa da
corrente ampliativa vez que, como mencionado, o direito ao trabalho – por proteger a
dignidade da pessoa humana e, ainda, a democracia – não pode ser restringido apenas aos que
trabalhem de maneira subordinada, em um vínculo de emprego, sob pena de se adotar
mecanismo que limite e deprecie o caráter social deste direito
102
.
Segundo Keller, não resta, por fim, qualquer dúvida de que deve ser esta a
interpretação conferida ao direito ao trabalho, prevista na CF/88, reforçada pelo advento da
Emenda Constitucional nº 45, cuja alteração no artigo 114, enseja o entendimento de que os
sujeitos ativos do direito ao trabalho, na normativa brasileira, são todos os trabalhadores
103
.
Como se percebe, então, o direito ao trabalho previsto pela Constituição Federal busca
alcançar o pleno emprego e condições dignas de trabalho para todos os trabalhadores
104
.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
!
98
Silva, José Afonso da. op. cit.
99
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Constituição e direitos sociais dos trabalhadores. São Paulo: LTr, 1997. p.
97.
100
KELLER, Wer ner. O direito ao trabalho como direito fundamental: instrumentos de efetividade. São Paulo:
LTr, 2011.
101
KELLER, Werner. op. cit.
102
KELLER, Werner. op. cit.
103
KELLER, Werner. op. cit.
104
KELLER, Werner. op. cit.
!
114
Um trabalho digno significa um trabalho minimamente protegido, tutelado. No
entendimento de Gabriela Delgado, a existência de um direito fundamental gera a necessidade
de também existir um dever fundamental de proteção à este direito.
Nesse sentido, a existência de um patamar mínimo de direitos trabalhistas,
correspondente aos direitos trabalhistas indisponíveis, certamente é a rede de proteção jurídica
assegurada para todo trabalhador, a fim de ser-lhe garantido um trabalho condizente com a
dignidade humana, ou seja, um trabalho digno, em conformidade com a Constituição Cidadã
de 1988 e o Estado Democrático de Direito
105
.
4.3 O Trabalho Digno e a Economia de Compartilhamento
Toda nova modalidade de trabalho deve ser compreendida a partir da Constituição da
República de 1988 e, dessa forma, com enfoque em condições laborativas condizentes com o
trabalho digno, único capaz de assegurar a dignidade da pessoa humana
106
.
O trabalho desempenhado pelos diversos trabalhadores abordados, como os parceiros
da Uber, Lyft, ou os taskers, demonstra-se demasiadamente precário pois nega-lhes a mínima
proteção em face dos intempéries da economia, subjugando-os à condições de trabalho
descontínuas, incertas, de baixo ou nenhum grau de profissionalização e sem qualquer
regulamentação jurídica.
Embora empresas como a Uber estejam inseridas na Política Nacional de Mobilidade
Urbana – Lei 12.587/2012 , sendo classificadas como transporte remunerado privado
individual de passageiros
107
e, no Distrito Federal, possuam regulamentação conforme a Lei
Distrital 5.691/16, as referidas normativas referem-se apenas ao acesso universal à cidade,
competência dos municípios para estabelecimento de contribuição municipal, tempo de uso
máximo do veículo, entre outros.
Nesse sentido, não abordam o trabalho desempenhado por seus diversos trabalhadores,
mantendo-os à margem da regulamentação jurídica e, desse modo, dos direitos trabalhistas
assegurados pela Constituição.
Portanto, a ausência de normas que regulem a prestação de serviço inseridas nas
Economias de Compartilhamento, considerando a subordinação que lhes é inerente, perpetua
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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105
DELGADO, Gabriela. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. 2.ed. São Paulo: LTr, 2015.
106
DELGADO, Gabriela. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. 2.ed. São Paulo: LTr, 2015.
107
!
115
violações à dignidade humana dos denominados “parceiros” e os insere em profunda
insegurança jurídica.
De fato, os princípios constitucionais do trabalho estendem-se às relações de trabalho
dos trabalhadores (denominados “colaboradores”), de maneira que, de pronto, já se pode
indicar a violação de diversas normas como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; da
Centralidade da Pessoa Humana na Vida Socioeconômica e na Ordem Jurídica, da
Valorização do Trabalho e do Emprego; da Segurança, entre outros
108
.
Por certo, a ideologia da colaboração entre pares apenas mascara condições de
trabalho degradantes, que infringem normas de saúde dos trabalhadores e obstam seu
desenvolvimento pessoal, retirando-lhes a propagada autonomia e tornando-os subordinados
de diversos empregadores, sejam às bilionárias corporações que comandam as prestações dos
serviços ou aos consumidores que agora possuem, até mesmo, assistentes pessoais à baixo
custo. Mascara, enfim, muitas vezes, a própria relação de emprego.
Em suma, é hialino que a rede de colaboração baseada na prestação de serviço das
Economias de Compartilhamento não coaduna com os moldes de trabalho preconizados pela
Constituição Federal de 1988, vez que não pactua com a dignidade da pessoa humana dos
colaboradores e, nesse sentido, é incapaz de assegurar-lhes um trabalho que os emancipe
individualmente e socialmente, ou seja, um trabalho digno.
5. Conclusão
As empresas de Economia de Compartilhamento, embora adeptas da ideologia do
consumo colaborativo e, nesse sentido, da promoção do compartilhamento solidário e
saudável de bens e serviços entre pares, afastam-se de seu propósito para tornarem-se
corretoras de mão-de-obra sem, contudo, responsabilizarem-se por seus trabalhadores.
Desse modo, negam aos seus prestadores de serviços qualquer amparo, utilizando-se
de seu trabalho para lucro próprio e autointeresse corporativo. Em verdade, os submetem a
trabalhos pontuais, descontínuos, sem a possibilidade de real desenvolvimento profissional e,
determinando-lhes o preço dos serviços, chegam a limitar os ganhos dos então
“microempreendedores”.
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!
108
DELGADO, Mauricio. Princípios Constitucionais do Trabalho e Princípios de Direito Individual e Coletivo
do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2017.
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116
Sob o véu da autonomia, diversos trabalhadores, submissos às corporações e aos
consumidores, permanecem à margem da devida proteção justrabalhista e dos direitos que lhe
são assegurados pela Constituição Federal de 1988, fundada sob os pilares do Estado
Democrático de Direito, o caráter normativo dos princípios e, essencialmente, a dignidade da
pessoa humana.
Por fim, afirma-se que todo trabalhador é sujeito de direitos fundamentais e, em
atenção ao que dispõe o texto constitucional, faz jus ao direito fundamental ao trabalho digno,
único condizente com a ordem democrática brasileira e com o respeito e prestígio devidos ao
valor social do trabalho e à dignidade da pessoa humana, fundamentos elementares da
República Federativa do Brasil.
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