Edição gênica e os limites da responsabilidade civil

AutorGraziella Trindade Clemente e Nelson Rosenvald
Ocupação do AutorDoutora em Biologia Celular pela UFMG. Mestre em Ciências Morfológicas pela UFMG/Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT)
Páginas235-261
EDIÇÃO GÊNICA E OS LIMITES DA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Graziella Trindade Clemente
Doutora em Biologia Celular pela UFMG. Mestre em Ciências Morfológicas pela
UFMG. Pós-graduada em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra. Pós-
-doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Professora Titular
no Centro Universitário Newton Paiva e da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana.
Advogada e Odontóloga.
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT). Pós-Doutor em Direito Socie-
tário na Universidade de Coimbra (PO). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/
SP. Visiting Academic na Oxford University (UK). Professor Visitante na Universidade
Carlos III (ES). Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Professor
do Doutorado/Mestrado do IDP/DF.
Sumário: 1. Introdução. 2. Aplicabilidade da edição gênica (CRISPR/Cas9). 3. Riscos previ-
síveis da técnica edição gênica (CRISPR/CASS9). 4. Riscos desconhecidos da edição gênica
(CRISPR/Cas9) e a responsabilidade civil. 5. Danos decorrentes da não utilização da edição
gênica (CRISPR/Cas9) e a responsabilidade civil. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Avanços científ‌icos na área biomédica geram impactos inegáveis na vida dos seres
humanos que, consequentemente, irão ref‌letir na ordem jurídica. Diante de tecnologias
disruptivas que provocam mudanças de paradigmas e inovam de forma revolucionária,
criam-se desaf‌ios inéditos suscitando adequações do sistema jurídico aos novos anseios.
Nesse sentido, a edição gênica (CRISPR/Cas9) destaca-se como inovadora tec-
nologia de manipulação de sequências do DNA, caracterizada por sua alta ef‌iciência
e facilidade de uso, sendo def‌inida como ferramenta promissora e revolucionária no
mapeamento de doenças graves de caráter hereditário, na maioria das vezes incuráveis,
gerando expectativa positiva no que se refere às medidas de prevenção e de criação de
novas alternativas terapêuticas em humanos.
Mesmo considerando os benefícios terapêuticos preventivos demonstrados nas
pesquisas básicas e pré-clínicas em embriões humanos, devido ao seu ineditismo e à
possibilidade de promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto
sobre as futuras gerações, tais investigações encontram barreiras de aceitação em todo o
mundo. Justif‌icam-se, desse modo, os intensos debates em torno da aplicabilidade dessa
nova tecnologia, seja no que tange à necessidade de adequada regulamentação, seja no
que se refere aos seus limites e potencialidades.
GRAZIELLA TRINDADE CLEMENTE E NELSON ROSENVALD
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Conf‌igura-se, portanto, debate árduo, em que se discutem não somente dilemas
éticos mas, também, o impacto dos riscos futuros e desconhecidos aliados à incerteza
quanto aos efeitos danosos decorrentes dessa nova tecnologia, no âmbito da responsabi-
lidade civil.1 Some-se a isso que, diferentemente da tradição anglo-americana a aversão a
riscos é elemento cultural da sociedade brasileira.2 Nesse sentido, como grande desaf‌io
na tentativa de apresentar alternativas no plano da reparação de danos, ampliação da
conf‌iança, solução e administração de conf‌litos de interesses, justif‌ica-se o enfrentamen-
to de temas relevantes como: a expansão da função precaucional da responsabilidade
civil, a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento, o cabimento da excludente
de responsabilidade, a importância da regulação pública das externalidades negativas e
a proteção geral da personalidade.
Em sentido diametralmente oposto e inaugurando singular discussão, confrontamos
questões ainda postas somente no campo das hipóteses, sobremodo a preocupação de
que, na eventualidade da técnica de edição gênica tornar-se opção terapêutica viável, sua
não utilização possa também acarretar efeitos potencialmente danosos. Mesmo conside-
rando que a inquietude recorrente frente a tecnologias inovadoras seja a possibilidade
de danos consequentes à sua utilização, não se pode negar a potencialidade lesiva da
situação contrária, bem como a possível repercussão no âmbito da responsabilidade civil.
2. APLICABILIDADE DA EDIÇÃO GÊNICA (CRISPR/CAS9)
O desenvolvimento da técnica de edição gênica CRISPR/Cas9 (clustered regularly
interspaced short palindromic repeats)3 e a possibilidade de se editar células da linhagem
germinativa humana (ovócitos e espermatogônias)4 representaram uma verdadeira revo-
lução tecnológica na medida em que possibilitaram a modulação específ‌ica de trechos do
DNA de seres vivos, bem como a manipulação do DNA humano. Tais avanços acenaram
para a viabilidade da manipulação de embriões humanos com todas as suas implicações.
1. Como frisa Yuval Noah Harari, os questionamentos éticos caminham em uma mesma direção: “Depois da seleção e
da substituição, o passo potencial seguinte é o da correção. Uma vez que se torne possível corrigir genes letais, por
que passar pelo transtorno de inserir algum DNA estranho, quando se pode reescrever o código e transformar um
perigoso gene mutante em sua versão benigna? Poderíamos então usar o mesmo mecanismo para consertar, além
de genes letais, todos os responsáveis por doenças menos fatais, como o autismo, a obesidade e a estupidez. Quem
ia querer que seu f‌ilho sofresse de algum desses males?” Homo Deus – Uma breve história do amanhã, Companhia
das Letras, São Paulo, 2019, p. 62.
2. Talvez este cenário de resistência ao novo em um contexto de hipercontrole do estado burocrático brasileiro possa
ser refreado com a edição da Lei n. 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica) que assegura espaço de tolerância
para empreendimentos privados com tendências disruptivas, experimentalistas e inovadoras, abrindo-se espaço
para uma “liberdade para inovar”. Comentando a LLE, André Ribeiro Tosta enfatiza que a tentativa do legislador
“parece ser a de oferecer mecanismo com peso legal que traga conf‌iança a atores dispostos a investir em atividades
econômicas novas e com isso, diminuir os custos para a inovação tecnológica e social no país, reduzir o custo
Brasil”. TOSTA, A. R. Liberdade de inovação. In: MARQUES NETO, F. P.; RODRIGUES JR, O. L.; LEONARDO, R.
X. Comentários a Lei de Liberdade Econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 138.
3. JINEK, M., CHYLINSKI, K., FONFARA, I., HAUER, M., DOUDNA, J. A., CHARPENTIER, E. A Programmable
Dual-RNA-Guided DNA Endonuclease in Adaptive Bacterial Immunity. Science, v. 337, n. 6096, p. 816–821.
doi:10.1126/science.1225829, 2012.
4. LIANG, P., XU, Y., ZHANG, X., DING, C., HUANG, R., et al. CRISPR/Cas9-mediated gene editing in human
tripronuclear zygotes, Protein Cell, v. 6, n. 5, p. 363-372, 2015.

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