Edificação: investigação acerca de um conceito jurídico

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas85-114

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multa rerum subtilitas

Quintiliano

Olho o muro e edifício nunca crido

Que entre um império e o outro se edifica

Camões, Os Lusíadas, X/130

I Proposta

Parece evidente que interessa ao Direito em geral e aos “direitos da cidade” (v. Introdução) em particular a investigação acerca do conceito jurídico de edifício (aedificium, como utilizado por Vitrúvio) e seus derivativos, notadamente “edificação”, termo este largamente empregado pela lei. Com efeito, diversas normas jurídicas utilizam o conceito e, não raro, equivocadamente. A própria Constituição Federal, no art. 182/§ 4º/I, cogita da “edificação compulsória” como sanção ao proprietário de imóvel ocioso. E, a partir dessa norma, o uso do termo se multiplica por quinze vezes no Estatuto da Cidade, de 2001, que a “regulamenta” (na verdade, disciplina a aplicação do dispositivo constitucional). Depois, o Código de Processo Civil, ao tratar da ação

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de nunciação de obra nova, estabelece que sua legitimidade pertence “ao proprietário ou possuidor, a fim de impedir que a edificação de obra nova em imóvel vizinho lhe prejudique o prédio” (art. 934/I). Já o Código Civil, tratando do uso anormal da propriedade, estabelece que ficam proibidas “as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas” (art. 1.277/Parágrafo único). De início, fiquemos apenas nestes três exemplos de uso da expressão, muito embora muitas outras leis – e muitos outros artigos do Código Civil – utilizem-se dela, como veremos.

De acordo com a lição da velha escolástica, a investigação de conceitos, quaisquer que sejam eles, deve partir do gênero próximo. No caso, é o de “construção”, atividade constitutiva de processo material que se prolonga no tempo, em várias etapas prefiguradas a partir das fundações, no nível inferior, até o ático, na outra ponta. Não se edifica num estalo ou num instante, considerando a necessidade de mobilização de pessoas, materiais, equipamentos – e, sobretudo, recursos financeiros. Mas a conclusão da obra (opera = trabalho, em latim), resultado final do trabalho, com a edificação pronta e acabada e o auto de conclusão expedido pelo Poder Público, esgota uma fase e começa outra, menos operativa mas muito mais longa e duradoura, que consiste em manter já o edifício em condições plenas de habitabilidade, com os reparos determinados pela ação inexorável do tempo. Os cuidados necessários durante a construção não são aqueles exigidos após a edificação ter sido completada. A conclusão da obra – que doravante se designa propriamente “edificação” – é o ponto de divisão.

Conforme seu uso efetivo, a edificação, na teoria clássica da Arquitetura, ganha vários nomes como prefeitura, ginásio, hotel, igreja ou teatro1; noutros tempos, monumentos como castelos, templos e palácios (na contração, “paço”, termo ainda subsistente para designar, por exem-

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plo, o Paço Municipal, sede da Prefeitura). Não poucas vezes, do próprio nome do edifício é que derivou certas extensões de sentido abstrato como “contemplação” ou “encastelar”. Porém, para além dos nomes, a obra uma vez pronta conduz a outra distinção, de grande importância, que aparta a (i) edificação com arquitetura da (ii) edificação simplesmente, distinção esta feita por John Ruskin em termos de “architecture” e “building”. Para este autor do século XIX, a Arquitetura é “a arte de erigir e decorar os edifícios construídos pelo homem, qualquer que seja seu destino, de modo que seu aspecto incida sobre a saúde, sobre a força e sobre o prazer do espírito”; ou ainda “a arte que, compreendendo e admitindo como condição de seu funcionamento as necessidades e os usos comuns do edifício, imprime em sua forma certos caracteres veneráveis ou belos, ainda que inúteis” (“but otherwise unnecessary”). Diz, ainda, em seguida, que edificar é reunir e ajustar as diferentes partes de qualquer edifício – que terá um efeito sobre a mente humana2.

Do ponto de vista jurídico, é certo que, em princípio, apenas os edifícios com arquitetura terão a proteção dos direitos autorais incidentes sobre o projeto arquitetônico, porquanto somente nesta hipótese caso terá havido originalidade na criação intelectual. Por evidente, o Direito não pode proteger a “criação do espírito” que se confunde com outras, como ocorre na maioria dos “buildings” – “edifícios comuns e correntes” (Gavin Tunstall) – que se vê no ambiente construído. Eles serão “sensaborias arquitetônicas”, na expressão de Alexandre. Herculano, que nada acrescentam naquela Arte. Porém, toda e qualquer edificação, tendo valor artístico

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ou meramente funcional, submete-se às normas urbanísticas e edilícias que fixam condicionamentos vários, seja de localização espacial seja de solidez e salubridade, com base no interesse coletivo. Já definimos em outro local que o Direito Urbanístico pode ser considerado a disciplina da ocupação dos espaços habitáveis que visa promover a inserção harmônica do edifício na cidade, da parte no todo3. De fato, objetivamente, ele determina as condições gerais de ocupação do solo que a edificação – como criação humana, objeto deste texto – há de observar.

II Discussão de conceitos

Como dito de início, a distinção entre “construção” e “edificação” pode ser importante do ponto de vista jurídico e, portanto, cumpre seja melhor explicitada, com a delimitação possível de seus contornos conceituais. Por exemplo, quando se fala que a competência profissional do arquiteto se liga especificamente à edificação, pública ou privada, e não à construção em geral, do que é que se fala, afinal? Exemplo disso é o Decreto-lei nº 176/98, que aprova o Estatuto da Ordem dos Arquitetos de Portugal, cujo art. 42.3 define o domínio profissional da Arquitetura: “a edificação, o urbanismo, a concepção e desenho do quadro espacial da vida da população”. Ou, reiterando, quando o Estatuto da Cidade disciplina a sanção da “edificação compulsória”, no art. 5º, o que estará mesmo querendo dizer? Veja-se, pois, que a investigação aqui proposta não é de modo algum desnecessária ou desimportante porquanto apresenta relevantes consequências jurídicas: no limite, a aplicação – ou não – de sanções graves ao proprietário desidioso de lote vazio ou subutilizado.

Penso que se poderiam identificar, a partir dos livros e das leis, dois critérios básicos de distinção entre ambos os termos: o primeiro ligado à finalidade do construído sobre (ou sob) o solo e o segundo de natureza temporal, processual ou, melhor, operacional. O primeiro

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critério, na verdade, tem a ver com aspectos funcionais e o segundo se preocuparia com os trabalhos edilícios no tempo, gerindo os mate-riais. Talvez se pudesse dizer, com escasso rigor, que o primeiro vincula-se à propriamente Arquitetura e à Arte – e o segundo à Engenharia e aos sistemas estruturais. O rigor dessa última caracterização é diminuto porque tais sistemas incluem-se no campo material de atividades do profissional da arquitetura (art. 2º/Parágrafo único/VIII da lei do CAU). Desde os escritores clássicos (Vitruvius, Alberti), não se pode ver a Arquitetura meramente como forma construída.

  1. Edificação = abrigo humano

    Quanto ao primeiro critério, parece claro que o termo “obra” é termo genérico que, em Arquitetura, abrangeria qualquer tipo de obra material, de caráter permanente (ou não), levantando-se do solo por força da ação do homem sobre a natureza, para qualquer finalidade. O sentido é amplíssimo: um abrigo para guardar bicicletas (lembrando Pevsner) ou uma mureta que seja, de 0,50 m, para fechamento da testada do lote serão, com certeza, obras ou, tradicionalmente, construções – em larga medida termos sinônimos. Mas esta obra pode ser destinada ao abrigo e proteção do homem ou não – e a partir de tal critério de distinção o sentido dos termos começa a se restringir. No sentido de abrigo, de tutissimo refúgio contra as “incalamidades dos tempos” (Lobão), o termo “construção” corresponde ao francês “batiment”, que segundo Pierre Merlin, designa “toda construção que serve de abrigo aos homens, aos animais, aos objetos” (Dictionnaire de l’aménagement, vbte. “construction”).

    Com significação etimológica de “amontoar” ou “empilhar” (struere, donde “estrutura”4) os materiais, a construção seria, pois, o gênero do qual a edificação é a espécie. A edificação ou, particularmente, o edifício é, nesta linha, a construção destinada ao abrigo especificamente humano, ou seja, a “casa” que Lobão vai aplicar para Casa de Deus, Casa de Supli-

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    cação, Casa de Misericórdia, etc. É a distinção que consta do histórico Código de Obras paulistano, denominado “Arthur Saboya”, de 1929 (Lei paulistana nº 3.427, de 19 de novembro de 1929). Segundo ele, “construir é, de modo geral, fazer qualquer obra nova, muro, cais, edifício, etc.; edificar é, de modo particular, fazer edifício destinado à habitação, fábrica, culto ou qualquer outro fim” (art. 2º/11). Tal sentido do termo teve uma longa trajetória no Brasil. De fato, a distinção se coloca em face da finalidade do abrigo produzido: se se tratar de abrigo humano – ainda que não apenas residência –, a construção será chamada de edifício ou edificação. Em outras palavras, todo edifício é uma construção mas nem toda construção é um edifício: um termo é gênero e o outro é espécie, o que torna perfeitamente possível falar-se em construções edilícias, expressão utilizada pela doutrina italiana (“construzioni edilizie”).

    Com base em tal critério, por exemplo, veja-se como conceitua o...

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