Editorial.

AutorAlmeida, Carla
CargoEditorial

Se há um aprendizado que o ano de 2020 nos deixou é o de que as mulheres estão no centro das desigualdades que estruturam e continuam a dar vida à sociedade capitalista moderna. As relações sociais regidas pelo capital, racializadas, coloniais, cisheteronormativas e patriarcais atravessam as mulheres em muitos sentidos e continuam a nos convocar ao fino trato das muitas camadas históricas que compõem a sua presença no mundo.

Os artigos apresentados no número 47 da Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea foram escritos antes mesmo que a pandemia da COVID-19, que sacudiu e virou ao avesso a sociedade mundial, impusesse novas regras de convivência, a exemplo da quarentena, do isolamento e do distanciamento social com suas implicações políticas e econômicas, sem mencionar as afetivas e existenciais.

Em artigo publicado na coletânea Para Além da Quarentena: reflexões sobre crise e pandemia (1) (FREITAS; ALMEIDA; LOLE, 2020) escrevemos: "é no isolamento que emana das casas que encontramos o eco possível das reivindicações por garantias da vida humana. São casas de mulheres dos morros, das favelas, dos subúrbios, dos asfaltos, de papelão nas calçadas das cidades", das áreas rurais..."o eco é pela não banalização das mortes". E continuamos: "As mulheres sempre foram transgressoras nas lutas pela sobrevivência, pela visibilidade, pela saúde e pelos direitos sexuais e reprodutivos". Insistimos que a pandemia que assolou o ano de 2020 nos mostrou que, de um jeito ou de outro, temos que "falar de conceitos como, cuidado, proteção social, interdependência e saúde. Mas estamos vivendo um duro aprendizado". Passado um ano desde que o vírus SARS-COV-2, ou Novo Coronavírus, foi detectado na China, reconhecemos, um tanto perplexas, a persistência do desprezo a vidas consideradas de menor valor, como aquelas protagonizadas por corpos negros, indígenas, pobres, LGBTQIA+, de mulheres.

Se há um aprendizado que a epistemologia feminista nos revelou é que não há como fazer a revolução sem as mulheres. Aliás, são elas que cotidianamente nos mais distintos territórios testemunham as profundas contradições sociais que, junto com os seus, precisam enfrentar o corre da vida, como se diz. E sempre o fizeram. Nesta direção, nosso projeto de pesquisa Por uma História do Gênero e Feminismos no Serviço Social (2) busca trazer à baila as memórias das pioneiras do debate de gênero/feminismos no campo profissional e acadêmico do Serviço Social, narrando a história que a história não conta. Foi das preocupações e reflexões desse projeto que surgiu a ideia para este dossiê.

Estudos feministas ajudam a reconhecer estratégias cotidianas que, embora situadas em amplos regimes de dominação masculina, revelam muitas resistências e poderes que atravessam esses sistemas. Mulheres que lutaram denunciando as mortes de seus filhos, por creche, saneamento básico, alimentação, entre outras questões da manutenção da vida e do bemviver. Ou que de um modo menos evidente empreenderam muitas formas de contornarem as ausências ou falências de proteção social, a exemplo da "maternidade transferida" (3) (COSTA, 2002) e das redes informais de apoio a suas existências e de suas famílias. Michelle Perrot (4) (2001, p. 23) chamará de feminismo informal "essa maneira de atuação, privada, secreta, mas suscetível de por em xeque a dominação", e Angus McLaren (5) (1997) designará por feminismo popular as inúmeras estratégias realizadas pelas mulheres para escaparem dos poderes dos médicos e dos maridos.

A partir das leituras de autoras feministas negras brasileiras como Jurema Werneck, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e outras aprendemos que mulheres negras na diáspora africana realizaram ao longo do tempo um conjunto de organizações e lutas em torno de seus interesses e disputaram as narrativas de si, num movimento que envolveu a descoberta dos processos violentos e dolorosos pelos quais passaram. Alguns exemplos são: as irmandades femininas negras; as associações em defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas desde a década de 1930; as organizações de mulheres negras com as pautas de saúde, educação, direito ao trabalho entre outras na década de 1970; as lutas contra a objetificação de seus corpos; a defesa da vida de seus filhos mortos ou encarcerados. Contestaram, firmemente, a atribuição que lhes foi dada de objetos da política ou de passividade.

O Dossiê Movimento de Mulheres, Feminismos e Estudos de Gênero que integra o no 47 da Revista Em Pauta buscou trazer visibilidade a histórias que não são contadas, estimulando novos olhares para narrativas consagradas em torno da participação social de mulheres e das dinâmicas de gênero em diferentes campos de estudo. A história das mulheres surgiu exatamente para pôr em evidência esses sujeitos e uma perspectiva outra da história onde os chamados pequenos eventos, o cotidiano e outros agentes sociais ganham importante dimensão de análise. E, neste sentido, é fundamental destacar as mulheres, principalmente as mulheres negras, indígenas, trabalhadoras rurais e pobres como o "outro" numa história oficial que não as contempla.

Além de narrar a diversidade das movimentações no "campo discursivo de ações feministas", em sentido amplo, este número da Revista Em Pauta buscou analisar a complexidade de suas relações e de que maneira jogam novas luzes sobre concepções estáveis e essencializadas da "mulher".

O primeiro conjunto de artigos versa sobre a abordagem histórica do feminismo no Brasil, a partir de alguns elementos marcantes como o dia internacional da mulher e a ditadura militar brasileira, explorando novos ângulos sobre a trajetória das mobilizações políticas das mulheres. Em Uma análise decolonial sobre três interpretações do movimento feminista no Brasil: redefinindo as fronteiras do mapa (1970-1980), Leticia Alves Maione propõe abordagem a partir do pensamento social feminista crítico na América Latina, explorando de que modo certas interpretações repercutem politicamente no tempo presente, marcado pelo histórico colonial do sistema moderno capitalista. O artigo de Larissa Shayanna Ferreira Costa e Verônica...

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