Educação jurídica estranhada: movimentos sociais, universidade popular e mobilidade jurídica

AutorRicardo Prestes Pazello - Naiara Andreoli Bittencourt - Igor Augusto Lopes Kobora - Felipe Balotin Pinto - Ana Cláudia Milani e Silva
CargoProfessor de Antropologia Jurídica na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). ...
Páginas546-570

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Ricardo Prestes Pazello 2

Naiara Andreoli Bittencourt 3

Igor Augusto Lopes Kobora 4

Felipe Balotin Pinto 5

Ana Cláudia Milani e Silva 6

Recebido em 1.4.2016

Aprovado em 12.5.2016

Resumo: Este artigo visa ao estudo crítico das características da educação jurídica na universidade brasileira a partir da metodologia antropológica do estranhamento da academia, com o objetivo de afirmar a necessidade de sua transformação. Para tanto, problematizarse-á a construção pedagógica da faculdade de Direito, buscando desvelar seu significado político e social por meio da defesa de uma alteração das estruturas

Abstract: This article aims at the critical study of the legal education characteristics in the Brazilian university, making use of the methodology of estranging the academy. The objective is to affirm the necessity of its transformation. Therefore, the pedagogical construction of the Law School will be problematized, aiming at unveiling its political and social meaning through the defense of an alteration of the academic structures, so as to propose a

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acadêmicas de modo a propor um modelo que conjugue Universidade Popular e Universidade Itinerante. A partir da experiência das escolas itinerantes fundadas por movimentos sociais do campo afirma-se a possibilidade concreta da aplicação de métodos pedagógicos de libertação e coletivos. Por fim, em contraposição ao modelo de educação posto, sugere-se, como faísca de abalo e transformação da universidade, a implementação de uma turma específica para assentados e beneficiários da reforma agrária, problematizando os possíveis estranhamentos e choques culturais, sociais e pedagógicos com a academia jurídica tradicional.

model which combines Popular University and Itinerant University. From the experience of the itinerant schools established by field social movements, it is asserted the concrete possibility of applying libertarian and collective pedagogic methods. At last, in opposition to the education model in force, it is proposed, as a spark of shock and transformation of the university, the implementation of a specific class for settled and beneficiaries of the land reform, problematizing the possible strangeness and cultural, social and pedagogical clashes with the traditional Law academy.

Palavras-chave: Educação jurídica; universidade popular; movimentos sociais; beneficiários da reforma agrária; pedagogia da alternância.

Keywords: Legal education; popular university; social movements; beneficiaries of the land reform; pedagogy of alternation.

Introdução

O estudante de direito certamente se depara com um espelho a cada dia que frequenta os bancos universitários: enxerga-se em seus professores e ao enxergar-se estranha seu mundo. Desde as vestes e a linguagem até a posição social, muita coisa muda a partir do primeiro dia de aula. No entanto, não basta percebê-lo, é preciso problematizálo.

No texto coletivo que apresentamos aqui, resultado das discussões que envolveram professor e estudantes durante as atividades do curso de “Antropologia Jurídica” no Programa de Iniciação à Docência de 2012, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, percepção e problematização se conjugam, tendo por fio condutor uma metodologia de estranhamento daquilo que nos é mais natural no ambiente acadêmico de direito: a educação jurídica.

Buscando uma apreciação crítica sobre seu desenvolvimento histórico e sua caracterização em termos epistemológicos e pedagógicos, nossa reflexão se volta para a

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análise da experiência da turma de direito para beneficiários da reforma agrária, lastreada pelo legado educacional dos movimentos sociais. Daí o resgate das obras de Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Roberto Kant de Lima, as quais podem nos servir de uma espécie de “antropologia da academia”. Por outro lado, as escolas itinerantes, nesse sentido, serão nosso principal apoio de referência interpretativa, com a finalidade de erigir uma consequente reflexão acerca da necessidade de uma universidade itinerante que, de um lado, ponha a nu as contradições de nossa educação superior e jurídica, em especial, apresentando a plausibilidade da superação destas por meio do horizonte de uma universidade popular, construída pelo protagonismo das classes hoje despossuídas do poder político, econômico e cultural, em nossa realidade social.

Estranhar o que conhecemos e nos estraharmos por não conhecermos aquilo que pode nos colocar ante a superação de nossas contradições é o grande objetivo deste texto.

A educação jurídica e sua pouca estranha história

A reforma universitária é questão antiga na América Latina, na qual – embora eventualmente nos esqueçamos – o Brasil se inclui. Sobre o tema, cabe relembrar as reflexões suscitadas por Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro, as quais, embora da década de 1960, permanecem gravemente atuais. Ainda que o objeto e o objetivo de suas propostas sejam mais amplos que o do presente trabalho, é de se notar o quanto suas críticas podem contribuir para nossas ponderações. Sobretudo em dois pontos, quais sejam, o acesso à universidade e o modo como as faculdades de direito, às quais restringiremos nossa análise, reproduzem seus conhecimentos.

Detenhamo-nos em Álvaro Vieira Pinto. No tocante aos estudantes, Vieira Pinto não trata somente daqueles que estão na universidade. A reforma deve se preocupar com os alunos que não puderam ingressar nela, mais do que com aqueles que compõem o quadro discente. Reflete sobre os que “não-são-ainda”, que historicamente não são,7 mas que em breve o serão. E se, como defende o autor de A questão da universidade, são os

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estudantes os principais responsáveis pelas mudanças, indispensável que haja, portanto, uma maior abertura das instituições neste sentido.

Quanto à problematização do modo de ensino, nos é difícil avaliar outras realidades. Mas, especificamente no curso de graduação em direito, as críticas de outrora permanecem, razão pela qual nos ocupamos de um estranhamento deste centro de reprodução de conhecimento. E não se pode aceitar que nossas faculdades de direito estejam caminhando de maneira impecável. Muito embora partamos de nossa realidade na UFPR, sem qualquer óbice nossa reflexão, que tratará de uma possibilidade de mudança local, poderia ser generalizada para os demais cursos jurídicos.

Desde uma perspectiva mais ampla, Álvaro Vieira Pinto explica como os objetivos das universidades brasileiras, no início, são (ou deveriam ser) diferentes dos objetivos atuais, quando elas já não se justificam como apenas um local para manutenção dos interesses de um pequeno grupo. O objetivo não é perpetuar o conhecimento que se legitima porque “posto”. E uma reforma em maior escala teria uma inevitável finalidade política(PINTO, 1986, p. 14-19). (À medida que não temos pretensão de adentrar em uma discussão tão ampla, limitamo-nos a uma questão que pode servir de centelha para a transformação em nossa faculdade de direito.)

E isso porque, em sua explicação, é uma virtude da classe dominante, no Brasil, ter forjado a idéia de universidade no século passado. Todavia, não é por isso que este projeto deva ser mantido intacto. Pelo contrário, este instrumento de “comando ideológico da classe dirigente”(PINTO, 1986, p. 25) deve hoje servir a outros fins.

Tais críticas no sentido de reforma vêm de décadas, o que não significa dizer que haja muita mudança ocorrendo. As faculdades de direito, ou de ciências jurídicas, fazem parte desse bloco que não recebe alterações. Empreendendo o estranhamento da “pedagogia” adotada, se é que (em muitos dos momentos) se pode chamar assim, constata-se que não houve muita mudança.Tradicional (e supostamente indefectível) é o relato de professor que entra na sala com um código e uma lista de chamada nas mãos. O mestre abre o código e os alunos, os cadernos (atualmente, os computadores). O professor começa a ler os artigos propostos para aquela aula, fazendo comentários “doutrinários”

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sobre cada um deles. Os alunos, por sua vez, anotam detalhadamente as palavras do professor – afinal, estas serão as únicas respostas consideráveis no momento da avaliação.

São apresentadas aos alunos questões puramente abstratas, de um direito que é descolado da sociedade. Com esta abordagem, teórica e especulativa, na qual não há menção a estatísticas e pesquisa de campo, o direito, que deveria surgir do social – para então o servir –, quase sempre se mostra surgindo do próprio direito.

Na contramão da lição de pedagogia de Paulo Freire, não há qualquer esforço de trazer “palavras”, no caso, situações, do próprio universo dos alunos. Ao contrário, preferem-se situações pensadas em abstrato que deslindem de modo a justificar um ponto de vista.

Aparenta ter sido assim nos últimosmais de cem anos, nos quais existiu nossa faculdade de direito. O bacharel, para portar este título, tem como obrigação estar presente às aulas (afora quando se institui o ideário do ensino livre) e responder as provas conforme as narrações de seus eloquentes lentes, hoje professores.

Mormente, a apresentação que se dá nas salas de aula reduz o direito à pura legalidade, o que, segundo Roberto Lyra Filho, já representa a dominação ilegítima. Além disso, a “identificação entre Direito e lei pertence (...) ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessariam as contradições (...) não havendo Direito a procurar além ou acima das leis” (LYRA FILHO, 1986, p. 09-12).

Os relatos de que...

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