Efeitos aplicativos do Art. 71.2 da Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias 1980 e o direito de retenção de mercadorias em trânsito

AutorLeonardo Brandelli
Páginas185-246

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1. Notas Introdutórias: Tributo à Professora Véra Fradera a partir das lições da CISG

Na festiva ocasião que celebra a personalidade acadêmica representada pela Professora Véra Maria Jacob de Fradera, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, escolhemos analisar um tema de interesse no contexto de aplicação e interpretação das normas da Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias de 1980 (“CISG”) – o direito de retenção de mercadorias em trânsito (“stoppage in transit”), examinado a partir de um caso concreto.

Essa categoria, originada na prática dos sistemas de tradição jurídica anglo-americana, representa absoluta inovação em termos de remédios convencionais assegurados às partes (vendedores, exportadores) em contratos internacionais disciplinados pela Convenção de Viena de 1980, pois articula duplamente os efeitos, para o vendedor, da declaração de inadimplemento antecipado (‘antecipated breach’) e da retenção das mer-

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cadorias em trânsito, colocadas à disposição do comprador, antes de sua efetiva entrega ou traditio (Arts. 71.1 e 71.2 da CISG2).

A oportunidade de análise, é importante lembrar, vem de encontro com o mais recente e acalorado debate, nos círculos legislativos e acadêmicos internos, quanto à necessidade e conveniência da adesão, pelo Brasil, à Convenção de Viena de 19803. Constituiria esse movimento parâmetro correspondente aos anseios de um Estado – agente econômico – em busca de inserção e reafirmação no contexto do comércio internacional, sobretudo em tempo de concorrência entre os países integrantes do grupo denominado “BRICs”? Ou cabal constatação do atraso do Brasil quanto à tomada de decisões não menos importantes de alinhamento ou ajustamento de seu quadro normativo interno à realidade do comércio internacional?

A adesão à CISG, passados mais de vinte anos de sua entrada em vigor, pode ser interessante do ponto de vista do desenvolvimento do Direito Uniforme, no domínio da regulamentação da compra e venda mercantil, e mundo com o qual o Brasil vem dialogar. Mas esse fato pode se tornar menos sensacionalista, se considerarmos que a Convenção envelheceu e não acompanhou, por exemplo, as profundas transformações do direito das obrigações no domínio da contratação eletrônica, nas interações com outras áreas do Direito do Comércio Internacional

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(e.g. transporte, afretamento), e sua regulamentação em distintos contextos – interno, regional e multilateral. Numa perspectiva cética, o mundo da CISG tem se tornado cada vez mais hermético e autorreferente. E neste, poucos especialistas e advogados têm realmente uma visão sistemática das múltiplas interfaces da Convenção com as áreas do Direito Internacional.

Vários anos se passaram, desde o início da década de 1980, sem que os juristas brasileiros estivessem, com raríssimas exceções4, efetivamente atentos para a experiência concreta gestada pela Convenção de Viena de 1980 no contexto da harmonização e uniformização das normas subs-tantivas relativas à venda e compra internacional e para os importantes aportes da doutrina e jurisprudência construídas nos sistemas comparados sobre a aplicação de suas normas, dentro de uma perspectiva eminentemente internacionalista5.

Os percalços constantemente encontrados pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito do Comércio Internacional (“UNCITRAL”) na tarefa de modernização do texto da Convenção de Viena de 1980 não foram capazes, contudo, de afastar o prestígio, a profundidade e a técnica de um tratado que se tornou, ao lado da Convenção de Nova Iorque sobre Reconhecimento e Execução das Sentenças Arbitrais de 19586, alicerce básico para a regulamentação das relações jurídicas privadas no domínio do Direito do Comércio Internacional. Isso, principalmente, se observada

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a relação indissociável existente entre contratos internacionais e arbitragem comercial internacional.

Entre os brasileiros, certamente, a Professora Véra Fradera tem destaque mais do que merecido, não apenas por sua atuação concreta em di-vulgar os fundamentos da ciência do Direito Comparado (tão maltratada pelo insuficiente espaço acadêmico ou inadequado uso entre os profissionais do Direito no Brasil)7, como pela iniciativa de pesquisa e formação de discípulos, na Academia e na vida, orientados para temas relativos à Convenção de Viena sobre Venda e Compra Internacional de Mercadorias.8

Se para o legislador e juiz domésticos, a ausência de ratificação de um tratado ou acordo internacional pelo Estado brasileiro ou de sua incorporação ao ordenamento interno justificaria uma conduta desidiosa, fleumática e relutante de legislar e julgar, respectivamente (desconsiderando, pois, o recurso às fontes do Direito do Comércio Internacional), esses fatores nunca representaram nenhum obstáculo ou desincentivo à curiosidade e engajamento acadêmico de nossa homenageada.

Ao contrário, motivaram-na a formar grupos de estudos e a estimular seus alunos da Faculdade de Direito da UFRGS como pioneiros na participação do tradicional Vis International Commercial Arbitration Vien-

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na Moot Court, a mais importante competição envolvendo arbitragem e contratos internacionais e que, na atualidade, celebra sua 20a edição9. Do mesmo modo, sua contribuição para as Jornadas brasileiras de Direito Civil abriu espaços para inovações importantes em torno da leitura doutrinária e jurisprudencial em matéria de contratos e venda e compra internacional de bens corpóreos10.

O Enunciado nº 169 da III Jornada de Direito Civil, por exemplo, propôs a transposição, para o direito brasileiro, do ‘princípio da mitigação da perda11, decorrente do Artigo 77 da CISG12, em matéria de direito dos contratos. Segundo esse princípio, o credor deve tomar todas as medidas razoáveis que estejam ao seu alcance para minimizar as perdas resultantes do inadimplemento das obrigações do contrato pelo devedor. Na melhor das interpretações, trata-se de um princípio que decorre do dever de colaboração mútua das partes, fundado na boa-fé objetiva e integrante, portanto, de deveres conexos nas relações jurídicas obrigacionais13.

Não é à toa, portanto, que nossa homenageada faz jus à deferência neste artigo, que ficará eternamente registrado na presente coletânea de estudos, vindo de um admirador e jovem professor. Trata-se de um retrato do verdadeiro locus da autonomia universitária e da independência acadêmica, para os quais – eu ressaltaria com forte convicção – não existe preço, mas sim, valor essencial.

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Seguindo a proposta de apresentação de um tema caro às linhas de pesquisa do Direito Internacional Privado e Direito do Comércio Inter-nacional, o presente artigo discute o escopo e alcance do Artigo 71.2 da Convenção de Viena de Compra e Venda Internacional de Mercadorias de 1980, que prevê um dos remédios convencionais específicos em caso de suspensão do cumprimento do contrato de venda e compra internacional pelo vendedor: a possibilidade de exercício do direito de retenção da mercadoria em trânsito – stoppage in transit. Para tanto, é dividido em cinco partes, além da presente introdução. No item 2 são analisados al-guns aspectos relativos à vocação universal da CISG e sua relevância para o desenvolvimento da disciplina do Direito do Comércio Internacional. Ali, destacam-se fundamentalmente os valores da flexibilidade, diversi-dade e autonomia da fonte normativa convencional por ela representada, além de aspectos concernentes à relação de interface entre a Convenção e o Direito Internacional Privado (interações críticas), e as variações da interpretação uniforme de suas normas. O item 3 identifica algumas expressões da relação entre a Convenção de Viena de 1980 e o direito brasileiro, particularmente quanto ao recente debate sobre a adesão do Brasil à CISG. No item 4, são examinadas questões pontuais sobre o alcance, natureza, princípios e justificativas que informam o direito de retenção de mercadorias em trânsito, segundo o Artigo 71.2 da CISG, partindo-se de um caso concreto envolvendo um contrato de venda e compra inter-nacional de minério entre a empresa XYZW S.A. (Brasil) e XING Corp. (China). As conclusões reiteram as características do stoppage in transit e sua inovação prática no Direito do Comércio Internacional.

2. A vocação universal da CISG em seus 25 anos de existência
2.1. Significado da CISG para o Direito do Comércio Internacional

A Convenção de Viena sobre os Contratos de Venda e Compra Inter-nacional de Mercadorias foi adotada em 1980 após uma longa rodada...

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