Os efeitos da sentença falimentar quanto ao falido na Lei 11.101/2005

AutorLuís Felipe Spinelli - Rodrigo Tellechea - João Pedro Scalzilli
Páginas72-120

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I Introdução

A sentença falimentar produz uma série de conseqüências jurídicas que atingem diversos interesses inseridos em um processo falimentar. E, dentre os efeitos da sentença falimentar, tem-se aqueles que recaem sobre o falido, tanto relacionados à sua pessoa (de caráter pessoal) quanto aos seus bens (de caráter patrimonial).

A Lei n. 11.101 /2005 (doravante "Lei" ou "LFRE"), nos arts. 102 a 104, prevê uma série de repercussões a partir da decretação da falência do devedor. Como veremos a seguir, com a decretação da falência, o falido é afastado do controle das suas atividades, restando inabilitado para o exercício da atividade empresária e desapossado da propriedade de seus bens, além de a LFRE garantir uma série de direitos, mas impor uma série de deveres ao devedor.

A explicação para a imposição dessas limitações é coerente com a sistemática proposta pela Lei: a prolação da sentença declaratoria da falência acarreta a criação de um novo estado jurídico para o devedor, o estado de falido,1 estabelecendo-lhe uma série

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de restrições e submetendo-o a uma série de deveres, embora também lhe garanta direitos ao longo do curso do processo falimentar.

E é justamente disso que pretendemos tratar neste ensaio, analisando, sistematicamente, os arts. 102 a 104 da LFRE (Capítulo V - Da falência, Seção V - Da inabilitação empresarial, dos direitos e deveres do falido), disciplina essa que encontrava guarida nos arts. 34 a 42 do Decreto-lei n. 7.661/1945 (Título II - Dos efeitos jurídicos da sentença declaratoria da falência, Seção Segunda - Dos efeitos quanto à pessoa do falido, e Seção Terceira- Dos efeitos quanto aos bens do falido).

Objetiva-se, ao fim e ao cabo, estudar os efeitos da falência quanto à pessoa e aos bens do falido. Assim, pode-se dizer que o escopo do trabalho é muito claro: sistematizar a disciplina legal do tema no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, não pretendemos realizar grandes incursões históricas ou de direito comparado, fazendo-o em um ponto ou em outro, mas somente naquilo em que possa auxiliar na interpretação e análise crítica da LFRE. Da mesma forma, não objetivamos realizar qualquer estudo de análise econômica, tão em voga ultimamente em nosso país, já que isso demandaria estudo específico e aprofundado. Não intentamos, também, analisar outros efeitos da sentença falimentar (i.e., quanto aos sócios do falido, à situação dos credores do falido, às obrigações pré-existentes do falido ou aos atos prejudiciais aos credores - que podem dar ensejo à revogação ou à ineficácia de atos praticados antes da falência), remetendo a eles somente quando for necessário para a compreensão sistemática do ensaio.

Ainda quanto à metodologia do estudo dos efeitos da falência sobre o falido, é extremamente importante realizar uma interpretação cuidadosa e atenta da LFRE. Isso porque a Lei, em certa medida, ao regular os efeitos da falência sobre o falido, prendeu-se demasiadamente à figura do empresário individual, não tratando de modo suficientemente claro, em nosso entender, de tais efeitos sobre as sociedades empresárias - que, como se sabe, são responsáveis por parcela significativa da atividade econômica (especialmente as socie-

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dades do tipo limitada e anônima2). Assim, parece-nos que a verificação do correto alcance da decretação da falência e de seus efeitos sobre o sujeito falido (aquele que exerce a atividade empresária) é indispensável para a adequada aplicação do regime liquidatório.

Com a finalidade de atingirmos nossos objetivos, este trabalho está dividido em duas partes. Na primeira trataremos dos efeitos da sentença falimentar sobre a pessoa do falido - a sua inabilitação - e sobre os seus bens - ou seja, o desapossamento. Na segunda parte, abordaremos os direitos e os deveres impostos pela LFRE ao falido, verificando como estão intrínsecamente relacionados entre si e com o próprio estado originado com a decretação da quebra.

2. Efeitos da sentença falimentar quanto ao falido: empresário individual e sociedade empresária

Para iniciarmos nossa análise, é preciso delinear algumas diferenças entre a quebra de um empresário individual e a falência de uma sociedade empresária.

Caso seja decretada a falência do empresário individual, sobre a pessoa do empresário recairão todos os efeitos jurídicos da aplicação do regime liquidatório; se estivermos tratando de falência do empresário falecido, ocorre a falência do espólio, e o regime que incide sobre o inventariante resta mitigado - ou seja, não ocorre a inabilitação do inventariante nem o desapossamento de seus bens: o que ocorre é que a representação do espólio falido cabe ao inventariante.3

Por outro lado, em se tratando de falência de uma sociedade empresária, em princípio, a inabilitação e o desapossamento, nos termos do art. 81, § 2º, da LFRE,4 atingem somente a própria sociedade empresária, não tocando os administradores ou o liquidante.5 O que ocorre, como veremos melhor mais adiante, é que a sociedade falida é representada pelos administradores ou liquidantes, nos termos do estabelecido no contrato ou estatuto social (como dispõe o art. 81, § 2º, da LFRE, e como dispunha o art. 37, caput, do Decreto-lei n. 7.661/1945).

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Quanto aos sócios da sociedade empresária falida, o caput do art. 81 e os arts. 115 e 190 da LFRE estipulam que a decisão que decreta a falência de uma sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes (como também ocorre, por exemplo, na Itália - art. 147 do Regio Decreto 16 marzo 1942, n. 267, modificado pelo Decreto legislativo dei 9 gennaio 2006, n. 5); portanto, acabam também sendo inabilitados e desapossados de seus bens, o que, por outro lado, evidencia que os sócios de responsabilidade limitada não se sujeitam aos efeitos da falência.

Por conseguinte, quando falamos em inabilitação e desapossamento, estamos falando da inabilitação e desapossamento do empresário individual e da sociedade empresária, bem como dos sócios da sociedade falida cujo regime jurídico abarque sócios de responsabilidade ilimitada. Nessa lógica, é correto afirmar que a falência não acarreta a inabilitação nem o desapossamento do inventariante do espólio falido ou dos administradores, liquidantes ou sócios de responsabilidade limitada da sociedade falida.

De qualquer forma, lembramos que o art. 179 da Lei dispõe (como previa de modo semelhante o art. 191 do Decreto-lei n. 7.661/1945) que, no caso de quebra da sociedade, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao falido para todos os efeitos penais decorrentes da LFRE, na medida de sua culpabilidade. Logo, como veremos a seguir, na hipótese de tais sujeitos serem condenados por crime fal¡mentar, também poderão restar inabilitados. E, aqui, cabe desde já uma pergunta: o art. 179 nada diz a respeito do inventariante do espólio falido, nem do liquidante de sociedade; em razão disso, podem tais sujeitos ser condenados pela prática de crime falimentar e, consequentemente, também restarem inabilitados?

Feitas essas colocações - e indagações - introdutórias, adentremos, agora, na análise dos efeitos da falência quanto ao falido, iniciando pela inabilitação e, posteriormente, partindo para o estudo do desapossamento.

2. 1 Pessoa: inabilitação ao exercício da atividade empresária

De acordo com o art. 75, caput, da LFRE, a decretação da falência acarreta o afastamento do devedor de suas atividades, com o objetivo de preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa.

A partir da decretação da quebra (independentemente de qualquer formalidade ou do próprio trânsito em julgado da decisão), o empresário individual (bem como o inventariante) é alijado do comando da atividade empresária que acarretou a sua bancarrota. No contexto das sociedades empresárias, a regra é semelhante: os sócios perdem o poder de ditar as diretrizes para o exercício da atividade, e os administradores (ou liquidantes), o poder de gestão e (re)presentação - o que também ocorre com os mandatários, nos termos do art. 120 da LFRE, como não poderia deixar de ser. Assim, a atuação de tais agentes fica restrita ao autorizado pela Lei n. 11.101 /2005.

A restrição não se limita a essas medidas. Além de tal afastamento imediato, o falido (empresário individual, sociedade empresária e sócios de responsabilidade ilimitada) resta inabilitado para o exercício da atividade empresária também a partir da decretação da falência (não dependendo de qualquer formalidade ou do trânsito em julgado da decisão).6 Assim, a decretação

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da falência acarreta a inabilitação do falido, independentemente da prática e condenação por crime falimentar, como determina o art. 102 da Lei.78 E o juiz ordenará ao Registro

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Público de Empresas Mercantis, a cargo das Juntas Comerciais, que anote e inscreva, para tornar público o nome do falido, a data da sentença e a sua inabilitação (nos termos do art. 99, VIII, da LFRE, o que não era previsto, de modo expresso, no Decreto-lei n. 7.661/1945). Então, a inabilitação é conseqüência natural da sentença falimentar.9

A inabilitação decorrente da decretação da quebra acarreta no impedimento do falido, por si ou por interposta pessoa, de exercer a atividade empresária; ainda, resta impedido de exercer a profissão de corretor de seguros (art. 3º, "d", da Lei n. 4.594/1964), a de corretor de navios (Decreto n. 20.881 /l 931, art. 20) e a de leiloeiro (art. 3º, "a" e "c", do Decreto n...

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