Os efeitos dos regimes de bens na partilha causa mortis: Inconstitucionalidades no direito sucessório

AutorAlice de Souza Birchal
Páginas373-397
OS EFEITOS DOS REGIMES DE BENS
NA PARTILHA CAUSA MORTIS:
INCONSTITUCIONALIDADES
NO DIREITO SUCESSÓRIO
Alice de Souza Birchal
Desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Professora de Direito de Fa-
mília e Sucessões – PUC Minas. Doutora e Mestre em Direito Processual – PUC Minas
Ao meu pai, in memoriam.
Sumário: 1. A importância histórica da evolução dos paradigmas do Direito de Família para
o Direito Sucessório – 2. Meação; Herança e Legítima: diferenciação, cálculo e crítica – 3. A
Inconstitucionalidade dos arts. 1845; 1829, I, CC/02: cônjuge e companheiro são herdeiros
necessários, sem interferência do regime de bens – 4. Necessária revisão às Súmulas do STF
referentes ao Direito de Família e das Sucessões: celeridade e efetividade processuais – 5.
Conclusão.
Para se esclarecer o porquê de o Código Civil de 2002 (CC/02) ter rompido com
o paradigma do Código Civil de 1916 (CC/16), e com uma tradicional legislação que
classificava o cônjuge apenas como herdeiro legítimo para inovar e erigi-lo à classe
de herdeiros necessários, juntamente com ascendentes e descendentes (art. 1845,
CC/O2), é preciso que se reconstrua a história recente do Direito de Família e das
Sucessões, no Brasil, expressamente por sua nuance constitucional.
Explico-me.
Há todo um sistema jurídico de institutos próprios e interdependentes, com
regramento específico para cada um desses dois ramos especiais do Direito Civil e,
embora possam se complementar, conectando-se, eles não se confundem entre si. É
que seus institutos, pressupostos, classificações, presunções e ficções jurídicas são
intrínsecos a cada um desses ramos.
As normas do Direito de Família são, em geral, cogentes e projetam seus efeitos
durante a vida do casal ou do par homossexual – Livro IV, do CC/02 -, até que se
divorcie ou um deles morra, extinguindo o casamento ou a união estável.
Outro ramo do Direito Civil, com um sistema de normas próprias, é o Direito
Sucessório, cujo objeto é disciplinar os efeitos jurídicos da morte da pessoa física,
notadamente os patrimoniais – Livro V, do CC/02.
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Assim, o conceito jurídico de meação, cuja existência depende do regime
de bens da união de pessoas, em vida, difere-se daquela que define o patrimônio
hereditário ou herança, que é um instituto exclusivo do Direito Sucessório, que
surge com a morte.
Os campos e as relações jurídicas que regem um (meação) e outro (herança)
institutos não se confundem, porque têm regramento jurídico próprio e, consequen-
temente, possuem efeitos patrimoniais diferentes: em vida (Direito de Família) e
em caso de morte (Sucessões causa mortis).
Já aqui antecipo as conclusões:
a) O regime de bens regulamenta, exclusivamente, a titularidade do patrimô-
nio, estabelecendo, ou não, em vida, o condomínio durante a união do casal, ou do
par homossexual, pelo contrato de casamento (formal e solene) ou de união estável
(informal);
b) O direito constitucional à sucessão aberta surge com a morte (droit de saisine)
e é pautado pelo Direito Sucessório, não pelo regime de bens. Portanto, cônjuges
e companheiros (sejam héteros ou homossexuais) podem ou não ser meeiros, mas
sempre serão herdeiros necessários, por força do art. 1845, CC/02, independen-
temente do regime de bens (defendo que a segunda parte do inciso I, do art. 1829,
não se coaduna com a Constituição da República, de 1988, sendo inconstitucional).
1. A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DA EVOLUÇÃO DOS PARADIGMAS DO
DIREITO DE FAMÍLIA PARA O DIREITO SUCESSÓRIO
É importante contextualizar a alteração da politica legislativa entre o CC/16
e o CC/02, que trouxe a profunda modificação do sistema sucessório, pelo CC/02,
erigindo o cônjuge à categoria de herdeiro necessário.
Pelos valores arraigados à burguesia predominantemente católica, o CC/16 to-
mava exclusivamente como família aquela formada por um homem e uma mulher,
submetidos às solenidades do casamento civil, cujo vínculo jurídico se tornava in-
dissolúvel a partir da celebração do ato matrimonial, perante o Cartório de Registro
Civil das Pessoas Naturais. Tais solenidades atribuíam ao casamento a publicidade
da união perante a sociedade em que os noivos viviam e, com e partir dela, é que
poderiam advir filhos, que, à época, eram designados como legítimos.
A mulher, por ser tida como relativamente incapaz, saía do domínio paterno
e passava ao do marido, não podendo votar e, muito menos, reger administrar a si
e administrar seus bens, sem nos esquecermos do regime dotal, pelo qual a mulher
era leiloada ao marido. Ela dependia de autorização do marido para, inclusive, ser
comerciante, ainda que com economia própria.
O CC/16 reservava um capítulo para os deveres da mulher e um outro para os
do marido, na sociedade conjugal, que era indissolúvel (na saúde e na doença, até
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