A busca pela efetividade das normas relativas a repartição e utilização dos cursos de águas internacionais

AutorAlice Rocha; Júlia Motte-Baumvol
Páginas21-47

Alice Rocha. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB e doutoranda em Direito na Université Aix-Marseille III, na França. E-mail: rochaalice@yahoo.com.br

Júlia Motte-Baumvol. Mestre em Direito pela Université de Paris II Panthéon-Assas e doutoranda em Direito na Université de Paris I Panthéon-Sorbonne. E-mail: julia.mottebaumvol@gmail.com

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1 Introdução

Um curso de água pode ser definido como um grande rio (reconhecido pelo número de seus afluentes, a importância de seu débito, a extensão de seu curso)”1 Tal definição contém em sim mesma, de modo quase automático, um caráter internacional pois os elementos presentes no parêntese desta prevêem o encontro inevitável de várias soberanias territoriais. De fato, o curso de água internacional engloba as “águas da superfície localizadas no território de mais de um Estado, podendo compreender os afluentes situados sobre o território de mais de um Estado, e até mesmo canais laterais.”2

Independentemente da terminologia utilizada para definir tal espaço - “curso de águas internacionais”, “rio internacional” ou “bacia de drenagem internacional” – é possível constatar com facilidade que os conflitos relacionados à água nestes espaços são freqüentes, tendo em vista que um mesmo curso fluvial atravessa vários Estados – vizinhos, em amonte ou em aval – deixando estes dependentes daqueles para repartir e gerir o mesmo recurso natural.

Se, de um lado, os problemas relativos à navegação em rios internacionais foram amplamente resolvidos desde 1815, ano em que se deu o primeiro tratado sobre a matéria, estabelecendo um princípio geral de liberdade de tratamento, por outro lado, resta a questão de saber como dois Estados devem dividir e utilizar o recurso natural comum. Isto porque, sePage 22 todo Estado é soberano em relação à água dentro de seu território3, deve ser esclarecido que esta soberania não é absoluta, sendo limitada pelas obrigações impostas pelo direito internacional4. Assim sendo, cabe a este direito internacional a função de criar normas destinadas à repartição e à utilização industrial, agrícola ou humana deste recurso natural, possuindo uma implicância direta na determinação e proteção da qualidade das águas comuns divididas.

Objetivando determinar como este recurso natural será repartido e utilizado, tais normas internacionais são formuladas de modo abrangente, a partir da utilização de princípios nem sempre muito tangíveis, como a razoabilidade e equidade. Associado a isto, tais dispositivos constituem-se a partir de termos sem precisão e com viés subjetivo como “substancial”. A imprecisão destes termos e princípios, assim como a amplitude de interpretação oferecida aos Estados, faz surgir uma série de conflitos de entendimentos entre os Estados que acarretam um enfraquecimento da efetividade destas normas.

A proposta do presente estudo será justamente analisar os instrumentos utilizados pelos Estados e aplicadores de tais normas internacionais na busca pela efetividade destas, partindo do pressuposto de que a utilização da via judicial para o esclarecimento do sentido dos dispositivos estabelecidos na norma não é o caminho mais recomendado para a busca da efetividade da mesma. Por isso, novos instrumentos são oferecidos como meios de alcance da chamada “eficácia social”5 das normas relativas à utilização e repartição dos cursos de águas internacionais.

Em um primeiro momento, serão determinadas as obrigações relativas a repartição e utilização do curso de águas internacionais, demonstrando o fenômeno da proliferação do contencioso na busca de efetividade destas normas. Para tanto, serão utilizadas diversas fontes do direito internacional, como as Regras de Helsinki (1966), adotadas pela Associação de Direito Internacional (International Law Association), as Declarações de Estocolmo (1972) e do Rio de Janeiro (1992) e a Convenção de Nova Iorque de 1997 sobre a utilização dos rios internacionais (Convenção de 1997), adotada quase que de forma unânime pela AssembléiaPage 23 Geral das Nações Unidas mas que não está em vigor. Além destas fontes, serão utilizados dois tratados bilaterais (o Tratado entre os Estados-Unidos e o México de 3 de fevereiro de 1944 em relação ao Rio Grande e os Acordos de Charleville-Mézières de 26 de abril de 1994 sobre o rio Escaut e o rio Meuse) com o objetivo de mostrar a prática estatal contemporânea.

Em um segundo momento, serão analisados os novos instrumentos utilizados na busca da efetividade das normas relativas à utilização e a repartição dos cursos de água internacionais. Esses novos instrumentos são tanto de caráter legal, como a utilização do princípio da cooperação para interpretação dos dispositivos normativos, como institucionais, momento em que serão analisadas as Comissões Internacionais.

Vale ressaltar que o conceito de efetividade utilizado neste estudo se caracteriza como a realidade do direito, demonstrada a partir da coincidência entre o comportamento social e os modelos traçados pela norma jurídica.6 Tal efetividade se aproxima do conceito de eficácia, mas não se confunde com esta que ocorrendo em um momento anterior é a responsável por oferecer aptidão às normas de produzirem efeitos próprios, conferindo às mesmas as qualidades necessárias para ser aplicada, exigida e executada.7

2 A falta de efetividade das normas materiais relativas à utilização dos cursos de água internacionais
2. 1 Apresentação das normas materiais

A partir da leitura da doutrina e da jurisprudência em direito internacional, percebe-se que existem duas normas principais na matéria: primeiramente, a obrigação de utilizar os cursos de água internacionais de modo equitável e razoável e, em segundo lugar, a obrigação de não causar dano significativo ao mesmo.

2.1. 1 A utilização equitável e razoável dos cursos de águas internacionais

Um conflito de usos dos cursos de águas internacionais ocorre quando o volume ou a qualidade da água de um curso de água internacional dado se dão de modo a não permitir a todos os Estados com território ao longo deste curso de obter a utilização plena que estes consideram razoável e útel. Diante deste conflito, resta o questionamento a respeito de comoPage 24 realizar a divisão ou repartição8 da utilização destas águas. De acordo com a Comissão do Direito Internacional (CDI), “o princípio da igualdade soberana do Estado quer que qualquer Estado do curso de água tenha, sobre a utilização do curso de água, direitos qualitativamente iguais e correlativamente ligados aos dos outros Estados do curso de água”9 No entanto, não se deve concluir, com base neste princípio, que cada Estado do curso de água tem direito à partes e vantagens iguais. Este princípio também não significa que as águas devem ser divididas de modo idêntico.10 O que deve ser compreendido é que cada Estado do curso de água tem o direito de utilizá-lo e de obter todas as vantagens de modo equitável11.

Nascida nos Estados Unidos, a partir das sentenças da Corte Suprema sobre os litígios interestatais do início do século XX, a doutrina da utilização equitável é amplamente utilizada como regra geral de direito aplicável à determinação dos direitos e das obrigações dos Estados.12 Já em 1929, o Corte Permanente de Justiça Internacional, a propósito da navegação sobre o rio Oder, declarou que:

[...] a comunidade de interesses sobre um rio navegável torna-se a base de uma comunidade de direito, da qual os traços essenciais são a perfeita igualdade dos Estados ribeirinhos no uso de todo o percurso do rio e a exclusão de todo privilégio de qualquer residente em relação aos outros.13

A partir desta doutrina, surge o princípio da utilização equitável e razoável, erigido pela Convenção de Nova Iorque de 1997 como o princípio base da utilização dos cursos de águas internacionais. Isto está disposto de modo claro em seu artigo 5º, que determina que os Estados do curso de água devem utilizá-lo de maneira equitável e razoável. Em especial, o artigo dispõe que um curso de água internacional será utilizado e considerado a partir de uma visão de alcance de vantagens ótimas e compatíveis com as exigências de uma proteção adequada deste. Para isso, o artigo 6º desta mesma Convenção indica como os Estados devem proceder, enunciando que:

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[...] a utilização equitável e razoável [...] implica na consideração de todos os fatores e circunstâncias pertinentes, principalmente: os fatores geográficos...

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