Redução da jornada de trabalho: elemento concretizador da qualidade de vida no meio ambiente laboral

AutorMaíra S. Marques da Fonseca
CargoMestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná ? Brasil
Páginas192-209

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Introdução

Tramita no Congresso Nacional do Brasil a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 231-A de 19951, que tem por escopo a alteração dos incisos XIII e XVI do art. 7º da Constituição Federal, em defesa da redução da duração semanal do trabalho de 44 para 40 horas, sem redução salarial, bem como do aumento da remuneração do trabalho extraordinário de 50% para 75%. A medida já foi aprovada por comissão especial da Câmara dos Deputados, aguardando apreciação em plenário.

A pesquisa bibliográfica demonstra que em praticamente todas as clássicas obras dos maiores educadores de Direito do Trabalho do Brasil, a limitação e redução da jornada2 laboral conta com quatro aspectos: um de índole econômica, um de caráter social, outro político, e um terceiro e último voltado a questões biológicas.

O que se pretende expor com o presente artigo é que as influências geradas pela redução do tempo durante o qual o empregado aliena sua força de trabalho ao empregador têm o aval de instaurar um meio ambiente de trabalho de qualidade, não apenas em termos de saúde e higiene, como também sociais, políticos e econômicos, o que se

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verifica em razão do movimento dialético que naturalmente se instaura entre o meio ambiente do trabalho e o meio ambiente geral.

1. Redução da jornada de trabalho: natureza controvertida da medida

O desenrolar do embate acerca da redução da jornada de trabalho exibe, invariavelmente, argumentos diametralmente opostos, aparentemente inconciliáveis.

Aos indecisos, contudo, ilusório se pensar que o afinamento com uma ou outra linha argumentativa se resolva apenas por meio de análise do quadro econômico nacional. Quando se fala em redução legal da jornada de trabalho nacional, reporta-se, espontânea e incisivamente, à questão de cunho político.

Além da indispensável e fria verificação de números, premente se faz a compreensão no sentido de que a alteração da carga horária semanal em um país vem sempre acompanhada de questão ideológica, de modo que jamais deve ser apreciada alienada do contexto histórico ou de seu aspecto transformador da realidade social.

Demanda antiga, o anseio pela limitação e redução da jornada de trabalho passa a fazer sentido a partir das primeiras manifestações do capitalismo, quando os empregadores, detentores dos meios de produção, sempre munidos da intenção de angariar mais lucros, iniciam a exercer controle (e abuso) sobre o tempo durante o qual os trabalhadores ficam a sua disposição em função de contrato empregatício.

O sistema capitalista de produção inaugura, destarte, a noção de alienação do tempo alheio, o que se dá pelo fato de que os empregados passam a não mais ser donos de todo o seu tempo de vida, haja vista a venda de parcela desse tempo ao empregador, que dele irá dispor de modo a não desperdiçá-lo, como verdadeira mercadoria. Segundo Thompson, o tempo se torna moeda, por isso, a partir daí, “ninguém passa o tempo, e sim o gasta”34.

Se, por um lado ao empregado interessa a valorização de seu trabalho e condições mais salutares de vida, ao empregador, em mão oposta, interessa a extração máxima da força de trabalho mediante dispêndio mínimo de receitas5. A medida da jornada de trabalho é, por conseguinte, germe de manifestações divergentes de interesses. Delgado exara com sensatez:

É a jornada, portanto, ao mesmo tempo, a medida da principal obrigação obreira (prestação de serviços) e a medida da principal vantagem empresarial

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(apropriação dos serviços pactuados). Daí sua grande relevância no cotidiano trabalhista e no conjunto das regras inerentes ao Direito do Trabalho.6O período durante o qual o empregado utiliza a própria força de trabalho para reproduzir o valor recebido por sua venda é o que se denomina duração do trabalho necessária, é a parte necessária de sua jornada. Mas, com isso, não se determina a magnitude da jornada de trabalho, a qual equivale à soma da duração de trabalho necessário e da duração de trabalho excedente, de modo que se torna uma grandeza variável. É o que ensina Marx:

A jornada de trabalho não é uma grandeza constante, mas variável. Uma das suas partes é determinada pelo tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho do próprio trabalhador, mas sua magnitude total varia com a duração do trabalho excedente. A jornada de trabalho é, portanto, deter-minável, mas, considerada em si mesma, é indeterminada.7No sistema capitalista de produção, o trabalho necessário só pode constituir uma parte da jornada de trabalho, pois a acumulação do capital pelo empregador é inerente a este sistema. A taxa da mais-valia se determina justamente pelo tempo de trabalho excedente prestado. Daí dizer que “na teoria da mais-valia, que trata da expropriação do excedente econômico, Marx confere centralidade à duração e à intensidade do trabalho; portanto, ao tempo de trabalho”8.

Em nome da ostensiva vinculação havida entre o salário e a jornada, desponta o profundo atrito essencial entre os interesses do empregado, que quer obter melhor remuneração com o menor desgaste, e do empregador, que almeja obter maior rendimento pagando o menor salário possível9. Moraes já resumia no início do século XX, “em duas palavras: por toda parte, o industrialismo moderno paga, pelo menor preço possível, a maior quantidade de trabalho que pode obter de uma criatura humana. Esforço máximo — mínima remuneração”10!

Diante dos antagônicos interesses que envolvem o tema da duração do trabalho, é categórico Dal Rosso ao asseverar que “trabalhar mais ou menos horas é resultado das relações vigentes entre os agentes sociais. Os momentos em que a força de trabalho está enfraquecida política ou economicamente são propícios ao alongamento das horas de trabalho”11. O mesmo autor explica que o alongamento das horas de trabalho é mais incisivo em momentos históricos durante os quais a força dos trabalhadores está menos articulada econômica ou politicamente, de modo que a curva da jornada de trabalho representa, muito mais do que um momento histórico, a relação havida entre os autores sociais em diferentes épocas.

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A jornada normal de trabalho reflete, portanto, a correlação de forças que se estabelece na sociedade, entre interesses antagônicos, e resulta em um padrão socialmente estabelecido, pelo que se trata antes de questão política do que econômica, como já se disse. A lei materializa essa correlação de forças e será tanto mais tutelar e protetiva quanto maior for a força dos trabalhadores em relação ao poder das classes empregadoras. Esse padrão varia em consonância com as circunstâncias de tempo e de lugar. No passado, já vigorou o entendimento de que o trabalhador deveria trabalhar de sol a sol. Hoje, no Brasil, prevalece a regra de que se deve fazê-lo, em tom de normalidade, por oito horas diárias e quarenta e quatro semanais12.

A premissa de que a extensão da duração do trabalho depende da correlação de forças entre as classes sociais faz bastante sentido se analisada sob os ares da teoria de Poulantzas, para quem o Estado possui um núcleo prático, técnico e puramente social, denominado ossatura material que, apesar de não poder ser reduzido à simples dominação política, está sujeito à manipulação e influência dos interesses da classe dominante. Não se pode, portanto, considerar que a economia é composta de elementos invariáveis, autorreproduzíveis e autorreguláveis, caso contrário, se estaria a ocultar as lutas travadas no cerne das relações de produção e exploração. Para o autor:

O espaço e o lugar da economia, o espaço das relações de produção, de exploração e de extração do excesso de trabalho (espaço de reprodução e de acumulação do capital e de extração da mais-valia no modo de produção capitalista) jamais constituiu, nem nos outros modos de produção (pré-capita-listas), nem no capitalismo, um nível hermético e enclausurado, autorreproduzível e depositário de suas próprias “leis” de funcionamento interno.13Crucial notar que os dispositivos diversos criados com a finalidade de regulamentar a jornada de trabalho ao longo da história variam de acordo não só com os sistemas produtivos em vigência, mas com a força de mobilização dos trabalhadores, com o poder de controle dos empregadores detentores dos meios de produção, e, finalmente, com o grau de intervenção do Estado nas relações laborais.

Marx, precursor estudioso do capitalismo, já dizia que “o estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é o resultado de uma luta multissecular entre o capitalista e o trabalhador”14. A regulamentação da jornada de trabalho durante a história da produção capitalista se mostra, assim, como contínua luta deflagrada pelos trabalhadores em busca de sua limitação e retração15, constatação esta explanada também por Magano16.

Em face do exposto resta claro que a expectativa de atingimento de consenso quanto à redução da jornada de trabalho sem redução salarial é utópica e, quiçá, inviável dentro

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do contexto do sistema capitalista de produção. Crucial, portanto, a exposição constante de argumentos capazes de fomentar o debate, a fim de que se atenda à factível expectativa de utilização da informação científica como instrumento de transformação social.

2. Fundamentos de índole biológica e social

A redução da jornada de trabalho se destaca como alvo de críticas precipuamente no que tange a seus aspectos econômicos, os quais possuem forte implicação política. Nos quesitos de índole biológica e social, contudo, parece incontroverso que os benefícios seriam praticamente imensuráveis.

Primeiramente, acerca da relação havida entre duração e...

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