Elemento vital e garantia interna da Constituição: vontade de constituição, sentimento constitucional e patriotismo constitucional

AutorRaoni Macedo Bielschowsky
CargoProfessor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
Páginas450-490
Elemento vital e garantia interna da
Constituição: vontade de constituição,
sentimento constitucional e patriotismo
constitucional
Vital element and internal guarantee of Constitution:
will of constitution, constitutional sentiment, and
constitutional patriotism.
Raoni Macedo Bielschowsky*
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia – MG, Brasil
1. Introdução
A constituição é o locus em que, de forma mais clara, Direito e Política
articulam-se dialeticamente na dinâmica da vida de uma comunidade que
se pretenda comprometida com um projeto de Estado de Direito. Ela é o
topos em que normalidade e normatividade, permanência e transformação,
estaticidade e dinamicidade, mais marcadamente apresentam sua tensão e
complementariedade, sendo o eixo jurídico-político por excelência de uma
experiência estatal. De mesmo modo, essas faces tampouco são cindíveis
na realidade constitucional, pois, exceto para fins de mera exposição e
classificação, dificilmente se poderá falar de uma dimensão estritamente
jurídica ou estritamente política de uma constituição. Isso porque sua nor-
matividade decorre, em parte, de certa normalidade, ao mesmo tempo em
que pretende prescrever uma outra normalidade ainda por vir a ser1, isto é,
*Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia; Doutor
em Direito pela UFMG; Mestre em Ciências-Jurídico Políticas pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa/Portugal; Bacharel em Direito pela UFRN. Pesquisador do Grupo “Poli-
teia: cultura política, teoria e identidade constitucional”. E-mail: rmabiel@hotmail.com. Orcid:
0000-0003-2316-3534.
1 HELLER, 1998.
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uma normatividade essencialmente contrafactual2. Assim, é possível afir-
mar que toda constituição jurídica é politicamente projetada, politicamente
legitimada e, consequentemente, de certo modo, politicamente válida.
No entanto, não apenas a legitimidade/validade de uma constituição
coloca(m)-se de forma (jurídico-)política, mas sua própria eficácia (social)
também se faz possível, em boa medida, politicamente. Desde essa pers-
pectiva, é possível apontar que esta dimensão está bastante relacionada
àquilo que por vezes pode ser tratado como o elemento vital de toda Consti-
tuição, isto é, a sua “capacidade de mobilizar as emoções e energias sociais
com vistas à sua realização”3; e também pode ser identificada como uma
das faces do dinamismo constitucional, mais especificamente aquela relacio-
nada à garantia interna de uma constituição, logo, à “adesão à normativida-
de constitucional por parte daqueles que se lhe subordinam”4. Isso porque,
desde essa tradição, é um equívoco pretender que os textos jurídicos, por si
só, sejam capazes de transformar a realidade ou, ainda, considerar que a
simples existência de um texto constitucional seja capaz de hermeticamen-
te garantir a efetivação constitucional5.
Nesse sentido, há uma série de chaves que correntemente são vincula-
das a esse mencionado elemento vital e todas elas referem-se, de uma forma
ou de outra, à relação dos cidadãos com sua constituição. Embora tenham
isso em comum, também é interessante compreender como cada uma des-
sas construções teóricas acaba por dar maior ênfase a uma determinada
forma/força de associação/vinculação dos cidadãos com sua comunidade
jurídico-política e seus respectivos projetos constitucionais.
No mais das vezes, essas ideias força têm tido, quando muito, sua rela-
ção/aproximação rapidamente mencionadas6, mas não têm sido abordadas
ou articuladas analiticamente, menos ainda, em conjunto. Assim sendo,
este artigo pretende apresentar uma revisão bibliográfica que contextualize
as bases desses conceitos, levantando suas formulações mais importantes e
originais, com o condão de apresentar uma reconstrução de três das princi-
pais chaves recorrentemente relacionadas a esse elemento vital: vontade de
constituição, sentimento constitucional, patriotismo constitucional.
2 ROSENFELD, 2010.
3 SAMPAIO, 2003, p. 81.
4 COUTINHO, 2009, pp. 377-380.
5 CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 70.
6 MIRANDA, 2006; COUTINHO, 2009; SAMPAIO, 2003.
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2. Vontade de Constituição
O termo vontade de constituição ganha projeção no famoso opúsculo A força
normativa da Constituição7, fruto de discurso proferido por Konrad Hes-
se, na Universidade de Freiburg, por ocasião da aula inaugural do ano de
1959. Tendo sido aluno de Rudolf Smend8, Hesse é autor de grande im-
pacto no constitucionalismo do pós-guerra, não apenas na Alemanha, mas
também no Brasil e no mundo constitucional como um todo. Sua projeção
é tanta que Massimo La Torre chega a indicá-lo como o mais influente
constitucionalista alemão pós-19459.
Contudo, antes mesmo dessa formulação de 1959, Werner Kägi, um
dos principais expoentes da Escola de Zurique, em obra publicada em
1945, já utilizara a expressão vontade de norma (Wille zur Norm)10 cunhada
em oposição à expressão nietscheana vontade de poder (Wille zur Macht)
uma dicotomia também presente no discurso de Hesse. Kägi, inclusive,
detalha mais motivos para essa oposição que o faz Hesse, na medida em
que comenta que a vontade de norma estaria cada vez mais sendo substituí-
da pela vontade de poder, num contexto em que muitas constituições (do
período entreguerras) teriam sido, efetivamente, destruídas e eliminadas
porque alguma vontade de poder assim o quisera11.
Parte importante da crítica de Kägi àquilo que trata como “uma crise
de seu tempo”, vincula-se ao que o suíço chama de decadência do norma-
tivo que, por sua vez, estaria relacionada a quatro dimensões distintas: a)
à geral decadência do normativo na existência humana em comunidade; b) à
mudança da ideologia política e da ideia de Estado; c) à crescente pluralização,
diferenciação e dinamização da existência social; e d) à crise da Constituição
normativa.
7 HESSE, 1991.
8 A construção jurídico-constitucional de Smend, com sua importante teoria da integração,
exerceu imensa influência na vida e desempenho do Tribunal Constitucional Alemão a partir de
1949, e, antes mesmo disso, ele também foi um dos principais atores da luta pelo método da
Teoria do Direito do Estado de Weimar (Methodenstreint der Weimaraner Staatsrechtlehre).
9 LA TORRE, 2007.
10 A tradução castelhana consultada traduz “Willer zur Norm” por “Voluntad por la Norma”. No
entanto, aqui preferimos seguir a mesma lógica utilizada na tradução para português de “Wille
zur Verfassung” por “vontade de constituição”.
11 KÄGI, 2005.
Raoni Macedo Bielschowsky

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