A eloquência de harpócrates: ensaio sobre o silêncio no direito brasileiro

AutorRodrigo Fuziger
CargoBacharel, mestre e doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor universitário e advogado
Páginas75-90
A ELOQUÊNCIA DE HARPÓCRATES: ENSAIO SOBRE O SILÊNCIO NO
DIREITO BRASILEIRO
Rodrigo Fuziger1
Submetido(submitted): 24 de agosto de 2016
Aceito(accepted): 29 de setembro de 2016
SUMÁRIO: 1. Prelúdio: brevíssimas considerações acerca do silêncio; 2. O(s) silêncio(s) no
Direito; 3. Silêncio e bem decidir: a incomunicabilidade do corpo de jurados no tribunal do
júri; 4. Silêncio criminoso e silêncio protetor: testemunhas e réus no sistema penal brasileiro;
5. Quem cala consente? silêncio e Direito Civil; 6. Conclusão (ou: um silêncio físico,
múltiplos silêncios jurídicos); 7. Referências Bibliográficas.
RESUMO
Este trabalho visa analisar o papel do silêncio no Direito. Há centenas, senão milhares, de
menções ao silêncio no ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, não se pretende, aqui,
estabelecer uma arqueologia ou uma espécie de taxionomia dos institutos jurídicos referentes
ao silêncio. O que se busca verificar, a partir de um olhar antropológico, é a hipótese de que
há uma miríade de significados jurídicos para o silêncio, a depender do contexto e ramo do
Direito que dele tratar. Assim, cabe perquirir como um fenômeno absolutamente idêntico (por
justamente ser uma ausência de estímulo sensorial, sendo um nada e, portanto, fisicamente,
sempre igual) adquire, dentro do específico campo do Direito, sentidos e funções diversas e,
até mesmo, antagônicas. A tese da multiplicidade de sentidos do silêncio possivelmente pode
ser evidenciada em virtude de que, dentro do plano jurídico, observa-se que o silêncio (como
ausência de expressão sensível) transmuta-se ora em dever, ora em faculdade, ora em
proibição. Assim, a partir de análises perfunctórias de alguns exemplos do uso do silêncio no
Direito (no Tribunal do Júri; na produção probatória no processo penal; nos negócios
jurídicos), buscar-se-á mostrar a condição poliédrica do significado do silêncio no Direito
brasileiro, com diversas faces a depender da circunstância jurídica em que é empregado, o que
evidenciaria uma ação da cultura atribuindo múltiplos sentidos ao mesmo fenômeno (ou
ausência de fenômeno) físico.
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia do Direito; silêncio; jurados; réus; testemunhas;
contratantes.
ABSTRACT
This work aims to analyze the role of silence in the Law. There are hundreds, if not
thousands, references to the silence in the Brazilian Legal System. However, the focus of this
work isn’t establishing an archeology of the silence in the legal institutions. What is sought is
the hypothesis that there are plenty legal meanings for silence, depending on the context and
branch of Law that addressing it. Thus, the silence is absolutely identical as a phenomenon
(an absence of sensorial inputs is, physically, always the same) acquires within the specific
field of Law, many senses and even antagonistic functions. The thesis of multiplicity of
silence senses can possibly be highlighted by the multifarious uses of the legal term Silence,
sometimes transmuted on a duty, faculty or even in a forbiddance. Therefore, through an
analysis of some examples of the use of silence in Law (in the jury; in the production of
1 Bacharel, mestre e doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Filosofia
pela Universidade de São Paulo. Professor universitário e advogado.
evidences in criminal process; in the private Law), shall be demonstrated the multiplicity of
meanings for the silence in the Brazilian Law, which possible evidences a cultural action by
assigning different significances to the same physical phenomenon (or absence of
phenomenon).
KEYWORDS: Anthropology of Law; silence; jurors; defendants; witnesses; contractors.
PRELÚDIO: BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SILÊNCIO
É fácil trocar as
palavras,
Difícil é interpretar o
silêncio.
(...)
Nada sabemos da alma,
Senão da nossa;
As dos outros são
olhares,
São gestos, são
palavras,
Com a suposição de
qualquer semelhança
no fundo.
Fernando Pessoa2
No panteão de deuses da mitologia grega, a deusa Thémis, representante da Justiça,
possui enorme importância, amplamente cultuada na Grécia antiga e rememorada ao longo
dos milênios subsequentes. Por outro lado, a mitologia helênica relega a Harpócrates,
divindade vinculada ao silêncio, um papel absolutamente secundário. Adorado em
Alexandria, a origem de seu culto ocorreu provavelmente no Egito da era ptolomaica, em
virtude do sincretismo religioso entre egípcios e gregos, sendo que estes apropriaram-se da
representação da figura infantil de Hórus (Har-pa-khered significa “Hórus, a criança”),
atribuindo-lhe novo sentido.3
Assim, a mitologia grega quase silenciou acerca do silêncio, ao passo que o culto à
deusa da Justiça (para alguns, atribuível à Diké) foi difundido e reverberou ao longo do
espaço-tempo. Muito embora a mitologia seja um tema antropológico, faz-se referência ao
Panteão grego apenas como forma de demonstrar que nas mais diversas culturas, pouco se
2 In: Poesias Inéditas. Lisboa: Ática. 1955, p. 159.
3 A figura de Hórus criança era representada no Egito antigo, por meio de um menino com o dedo
indicador próximo ao lábio, simbolizando o hábito infantil de chupar o dedo (LAVEDAN, 1931, p.
495). No entanto, o culto grego utilizou-se da mesma representação e conferiu à imagem o gestual de
silêncio, até hoje utilizado nas sociedades ocidentais.

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