A Emancipação da Humanidade

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas405-457

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50. Ética e corrupção

Se Helênia e Devília são hipóteses extremas de uma ordem imaginária, como caracterizar à luz desses modelos as sociedades reais, existentes hic et nunc (aqui e agora)? Poderia ser aventada uma gradação que servisse para medir o quantum de ética e o quantum de corrupção de uma sociedade?

As utopias estruturalistas hodiernas podem ser evocadas para compará-las aos ideais da sociedade ética de Helênia. Os helenianos teriam construído a estrutura social de sua cidade com base tão somente em regras primárias de obrigação e, para que fosse viabilizada, seus residentes teriam que se autoafirmar no sentido subjacente à ideia hegeliana: o cidadão imune às paixões e plenamente realizado como autoconsciência individual e social. Quais seriam concretamente essas regras que soeriam brotar de um direito espontâneo? E qual a estrutura jurídica de Devília, supondo-se que seus cidadãos recusariam o cumprimento das regras primárias de obrigação? A aceitação ou recusa deste direito originário, e a própria caracterização de suas normas como jurídicas, dependeria então da efetividade dos pressupostos ontológico-existenciais dos cidadãos de ambas as cidades, ou seja: vida, liberdade, igualdade e cidadania permeados pela justiça. Mais ainda, se em Helênia tais valores embasariam o consenso, em Devília reinaria o dissenso total, a discórdia. Mas a sociedade

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consensual heleniana seria constituída por seres racionais, que teriam construído os mecanismos para o controle das circunstâncias.

Relembrando a utopia de Agostinho de Hipona, os homens da cidade de Deus estariam vocacionados predominantemente para o reino dos céus; os da cidade do diabo, para o inferno. Mas ambas teriam acolhido os dois tipos de moradores, cuja separação seria feita no juízo final, concretizando-se a sua destinação na conformidade de seu destino, a santidade ou a danação. Analogamente, pode-se aceitar como verossímil que as cidades históricas misturam cidadãos helenianos e devilianos.

Em Helênia, as necessidades consensuais estabelecidas primam pela segurança garantida pela ordem, a paz assegurada pelo poder e a solidariedade mantida pela cooperação. Uma sociedade que reúna tais qualificações é portadora da virtude da ética e pode ser confrontada com Devília, cujos súbditos vivem a insegurança causada pela opressão, a discórdia decorrente da desordem e excesso de burocracia e o sentimento de exclusão social ensejado pela massificação.

É possível então definir uma sociedade relativamente ética e outra relativamente corrupta? Supõe-se que em ambas os cidadãos éticos ver-se-iam em situação de perplexidade e indignação com o conhecimento dos atos de corrupção de seus coabitantes. Admitindo-se as atuais divisões dos grupos microssociais segundo seu poderio econômico, é de admitir-se também que a indignação cresceria em intensidade na medida da ascensão dos corruptos aos patamares mais elevados. Numa sociedade concreta, as desigualdades sociais seriam em grande parte resultado da corrupção, tanto quanto ou mais que do trabalho.

A degeneração das chamadas elites, no campo econômico, social e político, sempre existiu, desde os primórdios da civilização. A ela se referia Aristóteles em sua clássica divisão das formas de governo, definindo a tirania como a corrupção da monarquia, a oligarquia como a corrupção da aristocracia e a demagogia como a corrupção da democracia. E corrupção, para ele, seria a inversão dos objetivos da soberania: em lugar do benefício da sociedade, os governantes estariam privilegiando os próprios interesses.

Essa mesma noção está presente na República de Platão. Lá, a estrutura política ideal seria a divisão das classes sociais conforme sua vocação

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política: o governo para os sábios, a defesa para os guerreiros e a produção para os agricultores, artesãos e operários. A justiça seria o equilíbrio entre as três classes, sendo justa a sociedade em que cada indivíduo e coletivi-dade realizasse as ações atinentes a seu objetivo, configurando a corrupção a troca de papéis: por exemplo, a administração entregue aos guerreiros e não aos sábios.

A indignação dos éticos é bem descrita por Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”374 E nos dias de hoje temos a contundente declaração de Denise Frossard: “A corrupção leva o cidadão a perder a fé nas suas instituições e, quando isto acontece, ele se torna cínico ou rebelde. E isto é um golpe de morte na democracia e na estabilidade que ela significa.”375Notando-se que entre Rui e Frossard medeia um século, somos levados a crer que a corrupção é, mais do que doença social, uma doença política profundamente arraigada em nossa cultura, antes delimitada ao Ocidente e agora global. Como explicar tamanha crise moral? Fruto do capitalismo articulado com o liberalismo? Fruto da prevalência dos valores utilitaristas? Implicação da natureza humana corrompida pelo pecado original?

Teria a corrupção alguma justificativa? Salvo a inversão de valores, que aponta o utilitarismo e o hedonismo como metas a atingir, existe a justificativa leninista: “o fim justifica os meios”.

Trata-se de uma perversidade que se define a si mesma como ética, mas que autoriza malfeitos com vistas a um objetivo nobre e superior. Assaltam-se bancos para obter recursos para a revolução, praticam-se atos de terrorismo para apressar a democracia, num entendimento as mais das vezes distorcido. E vivencia-se nos dias atuais o terrorismo pregado e praticado com fulcro no fundamentalismo religioso.

Em verdade, a luta messiânica é coisa do passado, pois no contexto das sociedades organizadas de hoje o objetivo mesmo é tomar o poder. E, uma vez lá instalado, a casta vitoriosa objetiva sua manutenção pelo maior tempo possível. O que antes se afigurava como alternativo passa a consti-

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tuir o normal, o desejável. A ânsia pelo poder alia-se à ganância pelo dinheiro.

Essa moral presume que os que a apregoam tenham exercido, ou exerçam efetivamente, alguma atividade revolucionária dedicada a uma causa nobre. É a ética que teria legitimado o genocídio dos povos indígenas da América em nome da fé cristã, é a moral do guerrilheiro que legitima assaltos e sequestros em nome de uma ideologia racional.

O que a história tem demonstrado é que essa moral não passa de oportunismo a justificar ações nefastas dos que souberam aproveitar-se da descrença para com suas antigas elites. É uma ética fundamentalista, que não deixa de ser pragmatista e hedonista.

Definir ações políticas como corruptas ou éticas depende do ponto de vista ideológico do sujeito da definição, mas é inegável que, mensurados os efeitos deletérios que causa, toda forma de corrupção é uma enfermidade social, e o remédio que a pode sanar é a prática da virtude da ética, consequência de um processo social de desalienação.

Indaga-se, portanto, se é possível, no contexto da crítica filosófica, alguma resposta à perplexidade e indignação que toma conta dos habitantes de Helênia, quando o avanço da dominação deviliana assume foros de verdadeira calamidade, quando não somente se corrói a credibilidade das instituições como se é levado a questionar a validade da democracia, do estado de direito e dos valores positivos da autonomia e da heteronomia.

51. O mal-estar na globalização

Evocam-se as reflexões de Freud ao referir-se ao “mal-estar na cultura”,376 o que nos leva a pensar sobre a época atual, dominada por três fatores: a globalização, o domínio da informática e a afirmação do capitalismo como o modelo final e definitivo de produção da riqueza.377Os estudos econômicos e políticos sobre o hemisfério ocidental, quando se repudiavam os males do capitalismo em sua versão neoliberal, geralmente deixavam de lado as economias socialistas, que estavam em

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fase experimental. Ainda sob os efeitos ideológicos da guerra fria, ignoravam-se os avanços socialistas e dificilmente se tentava uma análise comparativa, mesmo depois do fracasso e dissolução da União Soviética e da queda do muro de Berlim. Em suma, a visão que se tinha do mal-estar na cultura desfilava os problemas do capitalismo.

Só que o planeta se transformou, e é condizente fixar um marco para analisar as mudanças e constatar suas implicações em setores relevantes. Se partirmos do ano de 1959 – quando Fidel Castro e seus combatentes chegaram à Sierra Maestra, derrubaram o regime de Fulgêncio Batista e implantaram o socialismo –, até os dias de hoje, o cenário se modificou.

A primeira dessas alterações foi o abandono, por inútil e sem motivo, da bipolaridade política que dividia as ideologias racionais entre esquerda e direita. Sem o espectro bipolar, o mundo passou a entender que seus problemas são maiores e mais complexos do que a simples oposição entre ideias e ideais, e que ninguém mais era obrigado a rotular-se ou rotular para fazer valer um ponto de vista. O fim da guerra fria e do próprio comunismo como doutrina apta a atrair a adesão dos que condenavam o capitalismo produziu a convergência entre Ocidente e Oriente, perdendo qualquer sentido a divisão política entre ambos.

Não se pode dizer que os países que enveredaram pela via socialista tenham fracassado. Entre os que ainda hoje se dizem socialistas, destacam-se Cuba e China, em face da influência ideológica que ainda exercem sobre a inteligência ocidental. O visível atraso de Cuba no campo econômico – visto que no campo social, na medicina, no esporte e na educação a vitória da revolução cubana é expressiva quando comparada com a miséria e ignorância que também envolve seus vizinhos, do México à Patagônia –, deve-se tanto à ineficiência de seus...

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