A emergência do paradigma multicultural sob a ótica do supremo tribunal federal

AutorJosé Alcebíades de Oliveira Junior - Felipe Franz Wienke
CargoDoutor em Filosofia do Direito e da Política pela UFSC - Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas
Páginas79-97
Revista Científica Direitos Culturais
Vinculada ao PPGD URI, Campus Santo Ângelo/RS
José Alcebíades de Oliveira Júnior e Felipe Franz Wienke pp. 79-97
v. 10, n. 20, ano 2015 79
A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA MULTICULTURAL SOB A ÓTICA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A PARADIGM OF EMERGENCY MULTICULTURAL FROM THE PERSPECTIVE OF THE
FEDERAL SUPREME COURT
José Alcebíades de Oliveira Júnior
1
Felipe Franz Wienke
2
Resumo: A complexização das relações sociais colo cou em discussão a racionalidade jurídica da modernidade,
pautada, dentre outros aspectos, pela disti nção entre direito público e direito privado. As alterações políticas na
atuação do Estado acarretaram uma indefinição acerca das fronteiras entre as áreas do poder público e da
sociedade civil. A emergência da problemática do multiculturalismo se coloca neste contexto, inserindo no
debate político a temática do reconhecimento cultural. A adoção, no cenário brasileiro, de políticas públ icas de
reconhecimento levou esta discussão para o âmbito do Poder Judiciário, onde foi possível constatar, a partir da
análise de decisões do Supremo Tribunal Federal, a consolidação de um paradigma multicultural.
Palavras-chaves: Decisão judicial. Políticas públicas. Multiculturalismo.
Abstract: The modification of social relationships brought up for discussion the legal rationality of modernity,
based, among other t hings, on the distinction bet ween public law and private law. Political changes in the
performance of the State caused a vagueness in the definition o f the boundaries between government and civil
society. The emergence of multiculturalism is placed in this context inserting in the political debate the theme of
cultural recognition. The ad option of politics of recognition brought t his discussion into the the Judiciary, where
it could be seen, from the analysis of decisions of the Supreme Court, the consolidation of a multicultural
paradigm.
Keywords: Judicial decision. Public politics. Multiculturalism.
Considerações iniciais
A percepção de que a sociedade contemporânea é marcada por forte heterogeneidade
vem sendo recepcionada com mais naturalidade no âmbito do direito. Contudo, pensar a
problemática do multiculturalismo ainda se mostra uma tarefa desafiadora para a ciência
jurídica, ainda pautada pelos princípios basilares do liberalismo clássico.
O processo de consolidação das identidades nacionais, desenvolvido com propósito
legitimador dos Estados nacionais, acarretou a ocultação dos grupos que não se adequaram a
proposta hegemônica. Tal circunstância gerou um histórico de lutas por reconhecimento
cultural, as quais acarretaram, paulatinamente, a inclusão destas demandas na agenda política.
Pensar a problemática do multiculturalismo exige uma nova visão sobre os princípios
que nortearam tradicionalmente o liberalismo. A nova interrelação que se observa entre o
Estado e a sociedade civil influencia drasticamente a fronteira rígida desenvolvida entre o
direito público e o direito privado.
A atuação do Estado como agente promotor da igualdade cultural, através da
elaboração de políticas de ordem afirmativa, gerou uma evidente tensão de valores, o que se
traduziu na discussão judicial acerca da constitucionalidade destas políticas, sobretudo em
decorrência da possível ofensa a princípios constitucionalmente estabelecidos. Esta tensão
decorrente da emergência do paradigma multicultural gera a necessidade de se pensar a
1
Doutor em Filosofia do Direito e da Política pela UFSC. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS. Email: alcebiad esjunior@terra.com.br
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Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas. Doutorando em Direito p ela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Email: felipefw@gmail.com
Revista Científica Direitos Culturais
Vinculada ao PPGD URI, Campus Santo Ângelo/RS
José Alcebíades de Oliveira Júnior e Felipe Franz Wienke pp. 79-97
v. 10, n. 20, ano 2015 80
temática de decisão judicial, buscando-se averiguar a forma como os direitos fundamentais
são tratados e harmonizados pelo Poder Judiciário.
O presente trabalho objetiva investigar se o Supremo Tribunal Federal, no exame de
constitucionalidade de políticas afirmativas, tem acolhido a perspectiva social do
multiculturalismo. Para tanto, propõe-se dois estudos de caso: o primeiro sobre o processo de
demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e o segundo envolvendo a discussão da
política de cotas adotada por universidades públicas no Brasil.
Cabe salientar que ambas as questões constituem fruto de demandas históricas de
parte da sociedade civil. Contudo, tais políticas também geraram forte quadro de resistência,
num conflito de discursos incluindo, de um lado, a defesa de princípios basilares, como a
igualdade e a propriedade privada e, de outro, o direito ao reconhecimento cultural.
Para abordar a temática aqui exposta, propõe-se um trabalho organizado em dois
momentos. Inicialmente, busca-se demonstrar que a construção de uma cultura nacional
ofuscou outros grupos parciais, o que também foi perceptível no contexto brasileiro. Busca-se,
outrossim, analisar a paulatina desfragmentação da fronteira entre o público e o privado,
observada com traços peculiares no Brasil (1.1). Ainda no capítulo inicial, é apresentada a
discussão sobre a temática do reconhecimento, sobretudo a partir das obras de Charles Taylor
e Nancy Fraser (1.2).
Num segundo momento, partindo-se da obra do jurista argentino Ricardo Lorenzetti,
busca-se avançar sobre a problemática da decisão judicial. Evidenciando-se a preocupação
com o estabelecimento de critérios mínimos que limitem o subjetivismo do juiz, é utilizado o
seu conceito de paradigmas, salientando-se a coexistência de diferentes valores na sociedade
(2.1). Por fim, são apresentados os estudos de caso propostos (2.2 e 2.3).
1 Para pensar os conflitos multiculturais além da racionalidade moderna
A produção teórica jurídica nas últimas décadas apontou, de forma predominante,
críticas à racionalidade jurídica da modernidade. O formalismo jurídico excessivo e o apego
às tradições positivistas clássicas são apontados, não raramente, como condicionantes para a
ineficácia do direito em sua função de resolução de conflitos.
De fato, as transformações sociais observadas nas últimas décadas indicaram
limitações às concepções tradicionais do direito, pautadas numa distinção nítida entre as
fontes do direito público e do direito privado, na primazia do Código Civil como norma
reguladora das relações privadas e na idealização da igualdade como princípio fundador da
sociedade moderna. A complexização das relações sociais gerou um quadro de esgotamento
dos paradigmas acima elencados, inaugurando-se novos cenários para se pensar a
racionalidade jurídica.
O jurista argentino Ricardo Lorenzetti
3
trata o primeiro momento como a era da
ordem (na qual as esferas jurídicas possuíam pressupostos claros e princípios autônomos e
auto-suficientes) e denomina o segundo como a era da desordem (onde os campos do direito
não possuem mais fronteiras fixas e estanques, sendo permeadas por zonas de indefinição).
O capítulo inicial é reservado para demonstrar a insuficiência dos paradigmas
clássicos da racionalidade moderna, sobretudo no que se refere ao conflito civilizatório
envolvendo o multiculturalismo. Para tanto, reserva-se uma seção para a análise da
problemática da reformatação das fronteiras entre o público e privado, sobretudo do que tange
a atuação do Estado como agente promotor de políticas públicas. Nesta etapa, é apresentada
3
LORENZETTI, 2010, p. 39.

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