Empreendedorismo como ideologia: análise do enfoque da revista. Exame em dez anos de publicação (1990-99)

AutorVanessa Tavares Dias/Ursula Wetzel
CargoUniversidade Federal do Rio de Janeiro
Páginas97-118

Vanessa Tavares Dias1

(...) Os resultados obtidos indicam que as narrativas usam o termo em análise de forma elástica, adaptável ao propósito de cada matéria; todavia tendem a convergir no sentido de valorização do "empoderamento"2individual e do empresariamento geral, este como condição imperativa para a adaptação aos "novos tempos".(...)

    Entrepreneurship as ideology: an analysis of the focus of a brazilian business magazine over a tenyear period (1990-1999)

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Introdução

Um dos assuntos mais recorrentes discutidos atualmente dentro do campo das ciências sociais "aplicadas" e "não aplicadas" são as transformações que incidiram nas relações de produção iniciadas no último quartel do século XX. Múltiplas reflexões assinalam a falência do modelo fordista e a ascensão de outros mecanismos produtivos pós-fordistas, pós tayloristas ou toyotista motivadores da reestruturação das relações sociais no atual contexto do capital. Outras análises apontam para a remodelação do taylorismo que teria sofrido adaptações em acordo com as exigências das novas condições tecnológicas do mundo globalizado. Em ambos os casos, porém, os analistas admitem a tese que aponta para a emergência de um novo padrão de acumulação que passa a instar a fabricação por encomenda, com diminuição de estoques, redução da necessidade de contratação de número extenso de trabalhadores e aumento significativo de contratos de trabalho estabelecidos à margem da lei.

No Brasil, o governo de Fernando Collor de Mello (1990 -92) deu início e o de Fernando Henrique Cardoso (1995 -2002) arrematou o projeto econômico de cunho neoliberal que incluía novas formas de organização da produção. No âmbito privado, observou-se a desintegração de algumas empresas, surgimento de grandes corporações pelo processo de fusão, compra de competidores por multinacionais e desenvolvimento de franquias internacionais. Na esfera estatal, uma reordenação de estruturas e funções teve como propósito sustentar as novas formas de acumulação: modificação da legislação trabalhista, com a diminuição de direitos, privatização de empresas públicas, terceirização de serviços do próprio Estado, programas de demissão voluntária e precarização da situação salarial do servidor público. Este conjunto de medidas ocasionou, dentre outros aspectos, multiplicação dos índices de desemprego em todo o país, desaparecimento de determinadas carreiras e de empregos estáveis, aumento do trabalho informal e autônomo e surgimento de subcontratados (CARDOSO, 2003; ANTUNES, 2003).

No entanto, se grande parte dos estudiosos do assunto, em aquiescência, reporta as últimas décadas como marcadas por grave processo de degradação das condições de trabalho e aumento do desemprego estrutural (ANTUNES, 2003 & 2001; CARDOSO, 2003; MACHADO DA SILVA, 2001; NEVES, 2000; HOBSBAWN, 1995), outra perspectiva, malgrado confirme a atual condição vulnerável do trabalhador, considera que nunca houve na história do capitalismo período mais propício para o aprimoramento das potencialidades criativas dos indivíduos. As análises favoráveis à conjuntura recente,

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protagonizadas em geral por administradores (DIAS, 2008), e inspiradas na maioria das vezes numa releitura da tipologia do sujeito empreendedor schumpeteriano (CAMPOS, 2003), partem do pressuposto de que a ausência de empregos configurar-se-ia em fenômeno capaz de impulsionar o indivíduo a inventar novas possibilidades de sobrevivência, ao mesmo tempo em que conseguiria, com idéias inventivas, alavancar a economia de um país.

Paralelamente ao debate acadêmico, uma panacéia relativa aos benefícios advindos do "empreendedorismo" tornou-se tema central difundido por diferentes agências, tais como meios de comunicação, SEBRAE, organizações não-governamentais, universidades e escolas públicas e privadas, além dos próprios governos. Não obstante as diversas formas de enunciar a proficuidade da "nova economia", agentes exaltam a iniciativa particular do indivíduo em abrir um negócio ou dedicarse a qualquer atividade autônoma que lhe permita tornar-se "patrão de si mesmo". Deste prisma, o "empreendedorismo" significaria um recurso moderno e mais adequado para os indivíduos se inserirem no mundo do trabalho em transformação.

No conjunto das agências citadas, a mídia impressa ocupa atualmente papel estratégico no que tange à organização e o controle social (JAMESON, 1984) e, por conseguinte, parece desempenhar papel central na construção e difusão da idéia do "empreendedorismo" (FONSECA, 2003b; CAMPOS, 2003; GRÜN, 2000; SILVA FILHO, 1998).

Ante ao exposto e partindo do pressuposto de que esta noção ganha contornos particulares de acordo com a natureza da fonte e o público para o qual está sendo destinada a mensagem, a tarefa deste artigo é, primeiramente, compreender como uma mídia de negócios de grande circulação no Brasil aborda esta temática. Em segundo lugar, compreender o seu conteúdo ideológico. Neste sentido, entendemos ideologia como sendo um conjunto de idéias que têm a capacidade de moldar necessidades, desejos e comportamentos dos receptores, mas que guarda, de maneira significativa, identificação com as necessidades e os desejos que as pessoas já têm. Ou seja, contrariamente à perspectiva que entende ideologia como uma imposição de interesses unilaterais, ela encerra, por um lado, certa substância real, na medida em que consegue fazer com que os indivíduos se identifiquem com princípios e valores; mas, por outro, apresenta certa substância falsa, no sentido de não revelar as contradições e incoerências dessas próprias idéias (EAGLETON, 1997).

Para a análise, elegemos a revista Exame como objeto e campo de estudo, mais precisamente, matérias publicadas entre 1990 e 1999. Após esta introdução, buscaremos apresentar a relação estabelecida entre a nova organização do mundo do trabalho e a emergência da ordem ideológica regulada pelas idéias associadas ao "empreendedorismo". Também será abordada a importância da mídia como propagadora central de certa cultura de natureza corporativa, na qual se encontram os vários sentidos dados ao termo em questão.

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Em seguida, buscaremos explicitar as etapas de pesquisa, evidenciando a escolha e o recorte do objeto, assim como os instrumentos teóricos escolhidos para investigação da fonte. Posteriormente, apresentaremos, de forma sintética, a análise de 86 reportagens selecionadas. Por fim, buscaremos estabelecer algumas conclusões possíveis.

Toyotismo, Pequena Empresa, Informalidade e Empreendedorismo

Uma das respostas dadas pelo capital à última grande crise da acumulação, como dito anteriormente, foi a adoção de novos mecanismos produtivos. O modelo de administração toyotista, que acabou influenciando quase todo o mundo capitalista, não significou a adoção de uma forma de produção em si, mas uma nova organização da produção capitalista relacionada à grande indústria. Assim, além de não substituir integralmente o fordismo/taylorismo, o toyotismo, tendeu a mesclar-se com outras formas de racionalização que dão maior eficácia à lógica da flexibilidade da produção (BERNARDO, 2009; ALVES, 2007, ANTUNES, 1995).

Como diversos analistas têm apontado, as características mais gerais do toyotismo são, primeiramente, a introdução no core das corporações industriais de uma série de inovações tecnológicas associadas a formas de organização da força de trabalho e demandas relativas a novas qualificações e à mulifuncionalidade dos funcionários. Contudo, como aponta Alves (2002, p.79), o toyotismo sistêmico se disseminou para "a borda periférica do sistema industrial e de serviços, através das suas redes de subcontratação, constituídas através de médias e pequenas empresas". Logo, com o toyotismo, a empresa "enxuta" passa a demandar a multiplicação de empresas de menor porte, voltadas a atividades diversificadas, para as quais foram delegadas funções antes abrangidas pela grande indústria, estabelecendo-se, assim, uma relação de dependência das pequenas empresas em relação à necessidade das grandes.

A partir desse novo contexto, o debate público passa a apresentar as pequenas unidades produtivas a partir de sua capacidade de inovar e de gerar empregos, as colocando como chave para o desenvolvimento econômico de um país. Adeptos desta perspectiva passam a defender a figura e o ethos particular do "empreendedor", neste caso identificado com o pequeno empresário, como fundamentais para a sobrevivência de seus empreendimentos e do sucesso de suas atividades (CAMPOS, 2003).

Ao mesmo tempo em que se multiplicava este tipo de empresa, os dispensados da indústria passaram a ser empurrados para ocupações informais, terceirizadas ou autônomas. Sendo assim, pequenos empresários, cujo status social difere significativamente do empresário industrial, juntamente

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com trabalhadores assalariados e não assalariados irão compor a nova face da classe trabalhadora, mais complexificada, fragmentada e heterogênea em relação àquela encontrada em passado recente (ANTUNES, 1995). Além disso, o avanço da tecnologia, as atividades vinculadas ao setor de serviços e a ênfase na informação passaram a formar novo contexto para as relações de trabalho, que parece deslocar a experiência da atividade repetitiva dos operários no chão de fábrica para outras experiências laborativas, também distintas da racionalização conexa ao trabalho industrial.

Estas mudanças levaram à formulação de um discurso acadêmico por vezes romantizado, baseado na idéia de que a relação entre capital e trabalho teria se tornado mais humanista (SILVA, 2008). Por este motivo, diversos autores têm chamado a atenção para o fato de que as novas formas...

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