Empregado hipersuficiente e negociação individual

AutorRodrigo Fortunato Goulart
Páginas120-124

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Ver Nota1

A reforma trabalhista aprovada pelo Congresso Nacional (Lei n. 13.467/2017) inseriu alguns dispositivos na CLT que contemplam a possibilidade do trabalhador negociar, diretamente com a empresa, seu contrato de trabalho. Para que isso ocorra, e seja considerado válido e eficaz, empregado deve possuir “diploma de nível superior” e “perceber salário mensal igual ou acima de duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”. Vejamos a novel redação:

CLT / Art. 444.

Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

Sem dúvidas, o artigo contempla a possibilidade de maior liberdade para as partes na negociação do contrato de trabalho. Equiparou-se a figura do (“alto”) empregado e do empregador no mesmo patamar de negociação.

Trata-se de uma opção no mínimo ousada do legislador e paradigmática para o Direito do Trabalho, porque concede ao empregado, individualmente considerado, o “poder” de negociar banco de horas, intervalo intrajornada, aplicação do adicional de insalubridade, prêmios de incentivo, modalidade de registro de jornada etc., conforme autorizado no novo art. 611-A da CLT.

Dentre todas as alterações da CLT2, esta, sem dúvida, talvez seja a mais emblemática porque atinge em cheio o núcleo da proteção social, traçando uma nova “categoria” de trabalhador, considerado “empregado hipersuficiente” (apesar da nomenclatura apresentar evidente contradição). Fato é que, se considerada constitucional, a lei passará a pressupor plena capacidade formal de negociação (igualdade entre contratantes), baseados em critérios circunstanciais (fatores econômicos/escolaridade do trabalhador).

Críticas não faltam para este novo artigo da CLT, pois o legislador inaugurou um novo instituto jurídico, aquele em que a condição socioeconômica e/ou a formação cultural/educacional da parte pode determinar o regime contratual aplicável. Sob o ponto de vista da teoria contratual clássica, os critérios eleitos são, no mínimo, absurdos, data vênia.

Há décadas, juristas se perguntavam sobre qual seria a natureza jurídica do contrato de trabalho e o que justificaria a intervenção estatal nas relações entre patrões e empregados. E ao se depararem com as péssimas condições sociais dos trabalhadores explorados na Europa do final do séc. XIX, não tardou para que os estudiosos defendessem, à época, que o alvo da proteção social no contrato seria o trabalhador “miserável”, “carente”, ou seja, a intervenção estatal residiria no fato do empregado depender financeiramente do seu empregador para sobreviver.

Todavia, a Teoria da Dependência Econômica foi descartada no início do século XX. Não obstante o esforço dos estudiosos, a tese não conseguia justificar a situação, por exemplo, do empregado que possui mais de uma ocupação para poder sobreviver (fato comum nos dias atuais). Mesmo considerando que esta era a regra do Século XIX e início do século XX (quando a teoria foi formulada), a problemática de se estipular a dependência (econômica) como critério de aplicação do Direito do Trabalho é que ela se baseia em uma situação “metajurídica”.

Para Rojo, uma prestação de serviços realizada sob subordinação e dependência, será certamente regida pelas normas protetoras e pelos princípios particulares do Direito do Trabalho.3 O mesmo pode acontecer, segundo o autor, naquelas prestações laborais efetuadas mediante subordinação jurídica, porém, sem dependência econômica (como, por exemplo, o herdeiro de uma grande fortuna que trabalha por mera distração). Esse fato não afastaria que a tutela jurídica justrabalhista seja destino de ampla proteção legal, porque, segundo o autor, o critério de atuação do Direito do Trabalho é jurídico e não meramente econômico.

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Ou seja, a noção de dependência é outorgada à pessoa trabalhadora não pela sua condição financeira, mas pela sua situação de subordinação jurídica no contrato de trabalho (vínculo obrigacional, decorrente do contrato). A noção de dependência é, segundo o entendimento predominante, uma noção jurídica (legal), e que, a rigor, desconsidera o estado socioeconômico da pessoa.

Tal condição, contudo, não deixa de ser contraditória, pois se o Direito do Trabalho foi erigido com base em um passado de lutas, resistências e péssimas condições sociais dos trabalhadores, não seria lógico pensar que a chave de acesso à proteção, aquela em que se revela a existência de um contrato de trabalho, não demonstrasse de modo preciso quem são os indivíduos em posição de hipossuficiência.

Sem dúvida, é paradoxal esta compreensão dominante, porque demonstra que as condições socioeconômicas da parte e a importância do objeto contratado para a satisfação das necessidades existenciais do ser humano não influenciam o regime jurídico aplicável. Mas se era justamente as péssimas condições de vida da classe operária e a ausência de possibilidade do trabalhador fazer sua vontade por si mesmo que justificou o surgimento do Direito do Trabalho, por que aparentemente os critérios de acesso à proteção social (art. 3º CLT) são baseados em juízos essencialistas e objetivos?

É preciso compreender, segundo Ricardo Marcelo Fonseca, que a “subordinação” do trabalhador preexistia à regulamentação do contrato de trabalho, e o direito positivo, diante de uma situação de “subordinação” já existente, acabou traçando os limites formais para definir até onde essa subordinação poderia ser exercida licitamente (denominando-a de “subordinação jurídica”), in verbis:

A subordinação, portanto, não foi inventada, mas foi apenas regulamentada. Melhor dizendo, ela foi “domesticada” precisamente pela introdução de um conceito jurídico-formal, o de “subordinação jurídica”, para que pudesse circular sem constrangimentos numa relação jurídica calcada num modelo contratual, onde as premissas da autonomia da vontade são constituintes.4

Mas se no início das primeiras legislações protetivas a “subordinação” era uma qualidade quase indissociável da condição social da classe trabalhadora, ou seja, a ideia de “estar sob as ordens de autoridade diretiva do empregador, sem a possibilidade de negociação contratual”, também é verdade que atualmente esta característica pode ou não estar presente na relação de emprego. Em outras palavras, se a compreensão de “trabalhador protegido” no século XIX (empregado) estava intimamente ligada com a ideia da “subordinação”, quando esta refletia de modo fiel e visível as características socioeconômicas das partes e a imposição unilateral de vontade, neste início de século XXI ,este traço encontra-se diluído, apagado, desbotado e muitas vezes ausente.

Dentro de uma concepção positivista, o desafio e os esforços da doutrina sempre foram no sentido de encontrar um requisito objetivo (uma outra noção “jurídica” para o fenômeno) que pudesse refletir com precisão as condições socioeconômicas e, por sua vez, a ausência de autonomia de vontade do trabalhador explorado pelo Capital. Porém, isso não se revela uma tarefa simples em um mercado de trabalho altamente complexo e heterogêneo.

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