Empregados sujeitos a radiações ionizantes em hospitais

AutorJosé Affonso Dallegrave Neto
Páginas211-238

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Parecer acerca da inconstitucionalidade da Portaria n. 595/2015 do MTE que suprimiu o adicional de periculosidade aos operadores de aparelhos móveis de raios-x

José Affonso Dallegrave Neto *

Consulta

Visando esclarecer a (in)constitucionalidade da Portaria n. 595/2015 do Ministério do Trabalho e Emprego1, solicitou-se a elaboração de Parecer acerca do tema, apresentando-se os quesitos abaixo enumerados:

  1. A Portaria n. 595/2015 respeita as normas legais e internacionais de proteção à saúde do trabalhador?

  2. A Portaria n. 595/2015 observa as regras e princípios da Constituição Federal?

  3. A edição da Portaria n. 595/2015 ofende o Princípio da Isonomia?

  4. Em caso de validade, a Portaria n. 595/2015 pode ser aplicada de forma retroativa?

    O Parecer versa sobre a (in)validade da supressão do direito ao adicional de periculosidade para determinadas situações e categorias profissionais, a partir da edição da Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego, n. 595/2015 (DOU 8.5.2015).

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    Mais precisamente, caberá investigar e analisar se é legalmente válida e eficaz a Nota Técnica, inserida na Portaria n. 595, que:

    — deixou de considerar como perigosas, as atividades desenvolvidas em áreas que utilizam equipamentos móveis de Raios X para diagnóstico médico;

    — retirou da classificação tida como sala de irradiação perigosa, as áreas tais como emergências, centro de tratamento intensivo, sala de recuperação e leitos de internação que utilizam equipamentos móveis de Raios X.

    É importante ressaltar, desde logo, que o adicional de periculosidade dos trabalhadores expostos às radiações ionizantes e às substâncias radioativas prejudiciais à saúde é um direito assegurado há quase 30 (trinta) anos e remonta ao grave acidente com Césio-137, ocorrido em Goiânia/GO, no mês de setembro de 1987, considerado o maior infortúnio radiológico do Mundo2:

    ACIDENTE RADIOLÓGICO EM GOIÂNIA COM BOMBA DE CÉSIO 137. DANO AMBIENTAL E PESSOAL. “A configuração do dano ambiental causado pelo maior acidente radiológico do mundo com a destruição da bomba de césio 137, na cidade de Goiânia, no ano de 1987, é fato público e notório e também fartamente documentado nos autos. (...) O dano ambiental decorrente da exposição radiológica provocou danos físicos que causaram a morte de quatro pessoas e atingiu, direta ou indiretamente, outras centenas, das quais foram assim distribuídas”. (TRF 1ª Região. AC n. 2001.01.00.014371-2/GO. 5ª Turma. Rel. Des. Selene M. de Almeida. DJ: 15/08/2005. p. 45)

    A partir desse trágico acidente, com amparo na delegação prevista no art. 200, VI, da CLT, o então Ministério do Trabalho editou a Portaria n. 3.393/1987, assegurando o adicional de periculosidade a todos os trabalhadores expostos às radiações ionizantes, cujo labor estivesse enquadrado nas condições elencadas no quadro de atividades e operações perigosas da Comissão Nacional de Energia Nuclear, que passou a integrar a NR-16 do Ministério do Trabalho.

    A aludida Portaria do Ministério do Trabalho, n. 3.393/1987, baseava-se em dois pressupostos maiores, quais sejam:

    “i) qualquer exposição do trabalhador às radiações ionizantes ou substâncias radioativas é potencialmente prejudicial à sua saúde;

    ii) o presente estado da tecnologia nuclear não permite evitar, ou reduzir a zero, o risco em potencial oriundo de tais atividades, sob pena de impor à sociedade custo tão elevado que dificilmente o mesmo seria justificado.”

    Após breve período de revogação dos efeitos contidos na Portaria n. 3.393/19873, o Ministério do Trabalho editou a Portaria n. 518/2003, reafirmando seus termos e repristinando os efeitos antes contidos naquela Portaria de 1987.

    Vale dizer, o adicional de periculosidade continuou sendo um direito de todos os empregados expostos à radiação ionizante nas atividades de operação com aparelhos raios-X, com irradiadores de radiação gama, radiação beta ou radiação de nêutrons, incluindo diagnóstico médico e odontológico em salas de irradiação e operação de aparelhos raios-X e de irradiadores gama, beta ou nêutrons4. Importa sublinhar que até a edição da Portaria n. 595/2015 jamais havia tido distinção entre os direitos dos trabalhadores expostos à radiação ionizante proveniente de aparelhos, móveis ou fixos, de raios-X.

    Esta matéria encontra-se pacificada pelo Tribunal Superior do Trabalho, desde a edição da correta OJ n. 345 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais:

    ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. RADIAÇÃO IONIZANTE OU SUBSTÂNCIA RADIOATIVA. DEVIDO (DJ 22.6.2005). A exposição do empregado à radiação ionizante ou à substância radioativa enseja a percepção do adicional de

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    periculosidade, pois a regulamentação ministerial (Portarias do Ministério do Trabalho ns. 3.393, de 17.12.1987, e 518, de 7.4.2003), ao reputar perigosa a atividade, reveste-se de plena eficácia, porquanto expedida por força de delegação legislativa contida no art. 200, “caput”, e inciso VI, da CLT. No período de 12.12.2002 a 6.4.2003, enquanto vigeu a Portaria n. 496 do Ministério do Trabalho, o empregado faz jus ao adicional de insalubridade.

    A Portaria do Ministério do Trabalho n. 595/2015 incluiu uma nota explicativa no Quadro Anexo à Portaria n. 518/2003 para esclarecer que, doravante, não são consideradas perigosas as atividades desenvolvidas em áreas que utilizam equipamentos móveis de Raios X para diagnóstico médico.

    Eis o singelo texto da Portaria n. 595/2015, cuja (in)constitucionalidade será objeto de análise desse Parecer:

    O MINISTRO DE ESTADO DO TRABALHO E EMPREGO, no uso das atribuições que lhe conferem o inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição Federal e os arts. 155 e 200 da Consolidação das Leis do Trabalho — CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, resolve:

    Art. 1º Incluir Nota Explicativa no final do Quadro Anexo da Portaria n. 518, de 4 de abril de 2003, DOU 7.4.2003, que dispõe sobre as atividades e operações perigosas com radiações ionizantes ou substâncias radioativas, com a redação que se segue:

    Nota Explicativa:

  5. Não são consideradas perigosas, para efeito deste anexo, as atividades desenvolvidas em áreas que utilizam equipamentos móveis de Raios X para diagnóstico médico.

  6. Áreas tais como emergências, centro de tratamento intensivo, sala de recuperação e leitos de internação não são classificadas como salas de irradiação em razão do uso do equipamento móvel de Raios X.

    Art. 2º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. (DOU 8.5.2015)

    Considerando que o adicional de periculosidade encontra-se previsto no art. 7º, XXIII, da Constituição Federal, com status de direito social, faz-se mister, antes de fundamentarmos nossa posição, trazer à baila as principais lições que envolvem a eficácia dos direitos fundamentais à luz do sistema jurídico brasileiro.

O tema dentro do sistema jurídico pátrio

Desde a definição clássica de Kant, que caracterizou o sistema como unidade, sob uma ideia de conhecimentos variados ou conjunto de conhecimentos ordenado segundo princípios, todo conceito de sistema requer, na observação de Claus-Wilhelm Canaris5, a presença de dois elementos: a) ordenação; b) unidade. Ordenação expressando um estado de coisas intrínseco, racionalmente apreensível, isto é, fundado na realidade. Unidade no sentido de recondução da multiplicidade do singular a alguns poucos princípios constitutivos. Assim, o sistema jurídico implica uma unidade totalmente coordenada 6.

O sistema jurídico é incompleto e inacabado, o que é perfeitamente compreensível se admitirmos que o direito visa regular anseios dos integrantes da sociedade, os quais, por sua essência, são mutantes e mutáveis. Esta metamorfose de valores é dialética, devendo o direito acompanhá-la, sob pena de a norma jurídica perder sua reflexividade e legitimidade.

Nesse compasso, exsurge a noção de sistema jurídico como o plexo de normas dinâmico, imbricado e hierarquizado. O Brasil adota o sistema jurídico do tipo aberto. Vale dizer, todo o aparato normativo se vincula ao quadro de princípios e valores proeminentes contidos na Constituição Federal. E, nessa perspectiva, o sistema atua como um filtro de adequação de toda a ordem legal aos valores e princípios constitucionais7.

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O papel do sistema é o de traduzir e concretizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica8.

Com efeito, a interpretação mais adequada de qualquer ato normativo é sempre a sistematizada em detrimento da exegese gramatical e isolada.

“A interpretação mais prestante na ordem jurídica do texto constitucional é a interpretação sistêmica. Quer dizer, eu só consigo desvendar os segredos de um dispositivo constitucional se eu encaixá-lo no sistema. É o sistema que me permite a interpretação correta do texto.” (STF, MS n. 27931, rel. Min. Celso de Mello, julgado em 27.3.2009)

A partir dessa noção conceitual, passa-se a analisar e esquadrinhar o tema da supressão de direitos fundamentais, em especial a possibilidade de uma simples Portaria do Ministério do Trabalho afastar o direito ao adicional de periculosidade para os trabalhadores expostos à radiação ionizante proveniente de aparelho móvel de raios-X, utilizado em áreas de emergências, centros de tratamento intensivo, salas de recuperação e leitos de internação.

Senão vejamos.

José Afonso da...

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