Empresa individual de responsabilidade limitada (Lei 12.441/2011): anotações

AutorErasmo Valladão A. e N. França - Marcelo Vieira von Adamek
Páginas30-57

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1. Introdução1

A idéia de limitar a responsabilidade de indivíduos para, com isso, fomentar o exercício de atividades econômicas que, de outro modo, possivelmente nem viriam a ser exploradas, pode até ser considerada recente, se considerando o desenvolvimento histórico do direito comercial, mas seguramente também não se pode dizer nova. A doutrina já a vinha discutido pelo menos desde o final do Séc. XIX.2 E, no plano legislativo, a primeira iniciativa a respeito foi dada em 10.4.1926 por Liechtenstein, com a criação da "Ans-talt" (estabelecimento) - que, curiosamente, de imediato não empolgou a legislação de outros países3 -, sendo que os subsequentes passos só vieram quase meio século depois,4

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culminando com a sua consagração na 12ª Diretiva do Conselho das Comunidades Européias de 21.12.1989, "em matéria de direito das sociedades relativa às sociedades de responsabilidade limitada com um único sócio". Referida diretiva adotou a solução societária de limitação de responsabilidade (a sociedade unipessoal), com grande sucesso,5 mas facultou em seu art. 7- a adoção pela legislação interna dos Estados-membros da alternativa não societária (o estabelecimento ou empresário individual de responsabilidade limitada).6

No Brasil, essa mesma discussão colocou-se entre nós há algum tempo.7 As primeiras manifestações favoráveis à idéia foram no sentido de limitar-se a responsabilidade do próprio comerciante individual, portanto através de estruturas não societárias,8 e foi nesse sentido o primeiro projeto de lei de que entre nós se tem notícia, apresentado em 21.5.1947 pelo Deputado Freitas e Castro, mas que não vingou. Em realidade, foi só com o advento da atual Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/1976) que, objetivamente, de um lado, foi prevista a primeira espécie de sociedade unipessoal, a subsidiária integral (LSA, art. 251 ),9 companhia tendo como única acionista sociedade brasileira, e, de outro, foi regulada e admitida a unipessoalidade temporária de companhias (LSA, art. 206, I, d) - que a jurisprudência acabou na seqüência por alastrar para a sociedade limitada, em nome da preservação da empresa.10 Ao depois, indo um pouco além, o vigente Código Civil (Lei n.

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10.406/2012) introduziu, em caráter absolutamente excepcional e de baixíssima incidência prática, a figura do empresário individual de responsabilidade limitada incapaz (CC, art. 974, § 2º) e, para além disso, generalizou a unipessoalidade temporária das sociedades por até 180 (cento e oitenta) dias (CC, art. 1.033, IV)11 - mas ainda aqui sem consagrar a possibilidade de constituição (originária) ou persistência (temporalmente ilimitada12) de sociedades unipessoais.13

Era esse o quadro legislativo no direito brasileiro até que, de forma absolutamente inesperada - causando por isso surpresa para a comunidade jurídica (que ignorava por completo a iniciativa legislativa14 e, assim, se manteve alheia à sua tramitação, o que também deve ser imputado à sua própria incúria) e contrariando as expectativas do empresariado (que imaginava pudesse a experiência estrangeira servir de guia para a edição de uma moderna lei brasileira sobre o tema) -, sobreveio a deficiente Lei n. 12.441, de 11 de julho de 2011, que introduziu no direito brasileiro a "empresa individual de responsabilidade limitada" (ou, simplesmente, Eireli15).

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Foi assim que, depois de algumas tentativas legislativas frustradas e com aproximadamente 30 (trinta) anos de atraso em comparação à realidade de diversos países da família romano-germânica, só com o advento da Lei n. 12.441, de 11 de julho de 2011, o direito pátrio finalmente concebeu a sua própria e singular estrutura jurídica para limitar a responsabilidade de entes unipes-soais exercentes de atividades econômicas.

Seja como for - e até mesmo louvando no plano puramente pessoal a iniciativa daqueles que a patrocinaram (por terem tido o mérito de, ao menos, procurar agir) -, é preciso reconhecer, apesar disso, que a disciplina legal pátria resultante revela-se bastante imperfeita, suscitando difíceis controvérsias interpretativas, como procuraremos doravante demonstrar, e que muito ainda tardarão até serem definitivamente dirimidas.

2. Natureza jurídica

De partida, vem à baila a discussão sobre a natureza jurídica da Eireli e essa discussão, no caso, não é desprovida de interesse prático nem é meramente acadêmica; antes, cuida-se de importante questão prévia, de qualificação jurídica, bastante útil para a subsequente definição do regime jurídico aplicável. Estamos, afinal, a tratar do empresário individual de responsabilidade limitada, de sociedade unipessoal ou de nova espécie de pessoa jurídica? A depender da resposta que se dê a essa indagação prévia, será possível na seqüência transpor e justificar a aplicação de todo o arcabouço legislativo, doutrinário e jurisprudencial existente em torno de cada uma dessas instituições jurídicas para a Eireli.

Ora, de que a Eireli não constitui forma de limitação de responsabilidade do empresário individual, dúvida alguma pode haver.16 A Eireli foi arrolada, no art. 44, VI, do CC como espécie de pessoa jurídica, o que inequivocamente sinaliza que não se está diante de uma hipótese de patrimônio separado, como seria o do empresário individual de responsabilidade limitada, mas de um patrimônio autônomo', o titular do patrimônio afetado ao exercício da atividade não é o sócio único, ou titular da Eireli, e sim é a própria Eireli; não há dois patrimônios titulados por um mesmo indivíduo. Logo, é claro, não se está diante da figura do empresário individual de responsabilidade limitada.

Em realidade, a dúvida mais consistente que pode existir é se a Eireli constitui sociedade unipessoal ou nova espécie de pessoa jurídica e, quanto a isso, a nosso ver, a análise sistemática do art. 980-A do CC - que (z) se refere a "firma ou denominação sociaF (§ l-)ea "capital social" da Eireli (caput);17 (ii) dispõe que a mesma poderá "resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio" (§ 3º); e (iií)

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prevê a sua regência supletiva pelas "regras previstas para a sociedade limitada" (§ 6º) - revela assim tratar-se inequivocamente de sociedade unipessoal; mais especificamente, cuida-se de um subtipo societário - a sociedade limitada unipessoal.

A tese segundo a qual a Eireli constitui nova espécie de pessoa jurídica - conquanto defendida por respeitáveis estudiosos18 e consagrada em enunciados de encontros acadêmicos (aprovados por maioria)19 - dá excessivo relevo à literal circunstância de que, no rol das pessoas jurídicas de direito privado, o legislador inseriu a Eireli em inciso distinto das sociedades (CC, art. 44, II e VI).20 Ocorre que, se essa alocação topográfica tivesse algum relevo, ter-se-ia que concluir, de forma harmónicamente absurda, que também as organizações religiosas e os partidos políticos deixaram de ser associações no direito brasileiro, apenas porque a Lei n. 10.825/2003 os arrolou em distintos incisos do mesmo art. 44, conclusão essa que, ao que consta, ninguém defende. O que releva considerar, muito mais do que a alocação topográfica do instituto, é em realidade a sua essência jurídica: a leitura do art. 980-A do CC indica tratar-se a Eireli de uma organização finalística privada, exer-cente de atividade econômica, com substrato pessoal e finalidade lucrativa. Nessas condições, o substrato pessoal exclui a sua possível qualificação como fundação (CC, art. 62) e a finalidade lucrativa afasta a sua configuração como associação (CC, art. 53), revelando, pela coincidência de elementos estruturais, que se cuida, sim, de vera sociedade (CC, art. 981). O nosso fértil legislador pátrio pode já ter criado muitas coisas, mas seguramente não conseguiu engendrar uma nova modalidade de organização finalística privada, o sempre conveniente tertium gentis...

Se assim é, por qual razão o nosso legislador não afirmou claramente tratar-se de sociedade unipessoal? Possivelmente, não o fez por conta de conhecido e ultrapassado constrangimento ou prurido jurídico em consagrar que, mesmo sendo a sociedade legalmente qualificada como contrato e resultar da reunião de pessoas (CC, art. 981), pode haver sociedade com um só sócio - questão essa, de resto, de há muito resolvida, e muito bem resolvida, no direito europeu continental através da 12º Diretiva da CEE sobre Direito das Sociedades de 30.12.1989: a sua constituição pode se dar por ato unilateral e a sua arrumação dogmática é hoje dada pela teoria do contrato plurilateral associativo,21 através

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do qual se constitui e se regra a organização.22 Ademais, sob os prismas do ordenamento patrimonial e do ordenamento da empresa, a sociedade unipessoal em nada difere da pluripessoal; apenas no plano societário é que a união de pessoas permanece latente, mas pode, por efeito da cessão de uma participação, voltar a existir.23

Em suma, a Eireli é sociedade limitada unipessoal24 e, por isso, a ela se aplicam, no que couberem, as regras gerais do regime jurídico societário (p. ex., elementos da organização societária, regras sobre grupos de sociedades, desconsideração da personalidade jurídica, operações societárias ou impedimentos à participação de indivíduos em determinadas sociedades) e, inclusive, regras de regimes jurídicos extravagantes (p. ex., sobre recuperação e falência de sociedades empresárias, regimes jurídicos tributários favorecidos,25 disciplina sobre...

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