A atuação empresarial do estado e o papel da empresa estatal

AutorMario Engler Pinto Junior
Páginas256-280

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1. A inserção da empresa estatal na Administração Pública

O Estado pode recorrer à forma societária para organizar tanto a prestação de serviços públicos, quanto a exploração de atividade econômica sujeita à livre iniciativa e em regime de competição com o setor privado.1 Enquanto no primeiro caso existe liberdade de escolha do modelo organizacional (prestação centralizada ou descentralizada sob forma autárquica, fundacio-nal ou empresarial), no segundo a atuação do Estado ocorre obrigatoriamente por intermédio de empresa pública ou sociedade de economia mista.2

Quando adota a forma societária para a exploração de determinada atividade econômica em regime de concorrência com a iniciativa privada, o Estado deve submeter-se às regras do direito privado. É o que prescreve o art. 173, § 1o, II, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual as empresas estatais ficam sujeitas ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto a direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. A regra visa a assegurar condições igualitárias de competição entre empresas estatais e privadas que disputam o mesmo mercado.34

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A mesma intenção niveladora justifica a disposição contida no § 2° do art. 173, que veda à empresa pública e à sociedade de economia mista o gozo de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado. Consolidou-se no campo doutrinário e ju-risprudencial o entendimento de que a vedação constitucional somente seria aplicável à companhia sujeita ao regime de competição com o setor privado. Já a empresa pública, que atua na condição de delegatá-ria do Estado, estaria ao abrigo da imunidade tributária recíproca prevista no art. 150, VI, "a", da Constituição Federal.56

O tratamento diferenciado em função da natureza da atividade exercida tem raízes na interpretação restritiva do art. 173, § 1°, da Constituição Federal (na redação da Emenda n. 19, de 1998), que prevê a edição de lei de alcance nacional para estabelecer o estatuto jurídico das empresas estatais "que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços", as quais ficarão sujeitas ao regime próprio das empresas privadas. O Supremo Tribunal Federal decidiu que o dispositivo não alcança a empresa estatal prestadora de serviço público, o que, na prática, significa equipará-la a uma autarquia.7

A feição autárquica pode até fazer sentido para a empresa pública unipessoal que presta serviço de competência do ente controlador, pois a situação é em tudo equivalente à prestação direta pelo Estado, tornando justificável o benefício da imunidade. O mesmo tratamento afigura-se descabido se a prestação do serviço público for intermediada por sociedade de economia mista com participação de acionistas privados, ou por empresa estatal atuando como concessionária de outra esfera de governo. Nesse caso, o interesse da companhia adquire autonomia própria, seja porque passa a abrigar anseios estranhos à administração pública, seja porque fica sujeito a influências externas à vontade do Estado.8

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A Constituição Federal utiliza as expressões "empresa pública" e "sociedade de economia mista" em diversas passagens, embora sem defini-las diretamente.9 Portanto, a noção jurídica correspondente deve ser construída levando em conta o conjunto de normas constitucionais e legais aplicáveis a tais entidades. Daí resulta que a caracterização da sociedade de economia mista pressupõe o concurso de dois elementos essenciais, sendo um formal e outro substancial. Primeiro, a existência de autorização legislativa para constituição da companhia e, segundo, a titularidade do controle acionário por pessoa jurídica de direito público.10

As definições de empresa pública e sociedade de economia mista constantes do art. 5o Decreto-lei federal n. 200/1967 têm os seguintes ingredientes comuns: (i) criação autorizada por lei; (ii) personalidade jurídica de direito privado; (iii) patrimônio próprio; (iv) forma societária; e (v) exploração de atividade econômica. O traço distintivo reside no fato de a empresa pública ter como único acionista a União, enquanto na sociedade de economia mista apenas a maioria do capital votante deve pertencer à União ou a entidades da administração indireta. Tais disposições são aplicáveis exclusivamente em nível federal, com o objetivo de identificar as entidades sujeitas ao regime jurídico próprio da administração indireta daquela esfera de governo.

O Ato Institucional n. 8, de 2 de abril de 1969, procurou induzir os governos subnacionais a seguirem o mesmo padrão de reforma administrativa adotado no âmbito federal. Dessa forma, autorizou os Estados federados, assim como os Municípios mais populosos, a fazerem uso do mesmo instrumento normativo excepcional para reestruturar suas respectivas administrações, que, por sua vez, deveriam ser orientadas pelos mesmos princípios adotados pela União, embora admitindo adaptações em função das peculiaridades locais.11

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Sob a ótica do direito constitucional e administrativo, toda sociedade controlada direta ou indiretamente por pessoa jurídica de direito público, independentemente de sua constituição ter sido precedida de lei autorizativa, é considerada parte integrante da administração pública, ficando subordinada a alguns ditames constitucionais também aplicáveis ao conjunto do setor público: (i) princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (cf. art. 37, caput, Constituição Federal); (ii) submissão ao controle externo do Tribunal de Contas (cf. art. 71, II, Constituição Federal); (iii) exigência de concurso público para admissão de pessoal (cf. art. 37, II) e (iv) contratação mediante processo licitatório (cf. art. 37, XXI).

Ao contrário do Decreto-lei n. 2.627, de 19 de setembro de 1940 (legislação anterior sobre sociedades anônimas), que era silente sobre a figura da sociedade de economia mista, a Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (lei atual sobre sociedades anônimas) dedicou um Capítulo inteiro ao assunto, com normas derrogatórias do regime comum aplicável às demais companhias (Capítulo XIX, arts. 235 a 242). Não consta da Lei n. 6.404/1976 nenhuma alusão expressa à figura da empresa pública, o que denota a preocupação primordial de regular a convivência entre acionista controlador público e acionistas minoritários privados, e não propriamente o funcionamento da sociedade unipessoal controlada pelo poder público. No entanto, a pluralidade qualitativa de sócios não deve ser vista como condição essencial para a companhia controlada por pessoa jurídica de direito público ficar sujeita ao tratamento diferenciado aplicável às sociedades de economia mista. A rigor, tanto a sociedade efetivamente unipessoal, quanto aquela integrada apenas por entidades da administração pública, podem ser destinatárias das disposições contidas no Capítulo XIX da Lei n. 6.404/1976.

Não há um conceito unívoco de sociedade de economia mista, seja porque a

Constituição Federal não contém uma definição explícita, seja porque o Decreto-lei n. 200/1967 aplica-se exclusivamente à administração pública federal e com foco em questões típicas de direito administrativo, seja ainda porque a Lei n. 6.404/1976 também se esquivou da conceituação direta. O intérprete deve ficar atento para o fato de que o ordenamento jurídico utiliza o termo "sociedade de economia mista" em diversas passagens, porém, com nuan-ces distintas quanto ao regime jurídico aplicável.12 Sob o prisma da legislação societária, a empresa controlada por uma companhia mista não estaria abrangida pelas exceções do Capítulo XIX da Lei n. 6.404/1976 e, no entanto, pode ser considerada sociedade de economia mista em face do texto constitucional.

Alguns doutrinadores reconhecem na sociedade de economia mista regida pela Lei n. 6.404/1976 a aptidão apenas para explorar atividade econômica sujeita à livre iniciativa, reservando à empresa pública constituída sob a forma de sociedade unipessoal a prestação de serviço público de titularidade estatal.13 Seme-

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lhante entendimento afigura-se inaceitável e não tem apoio na lei do acionariato, que, a rigor, não contém nenhuma limitação quanto a natureza do empreendimento, salvo a exigência de sua conformidade com a lei, a ordem pública e os bons costumes, além naturalmente da finalidade lucrativa (cf. art. 2°, caput).14 É certo que o art. 5o do Decreto-lei federal n. 200/1967 utiliza a expressão "atividade econômica" para indicar o escopo da empresa pública e da sociedade de economia mista, o que, à primeira vista, não incluiria a prestação de serviço público. Tudo sugere, porém, que o legislador federal referiu-se a "atividade econômica" em sentido amplo, e não no sentido estrito de negócio especulativo característico do setor privado.15

Tornou-se pacífica a existência de sociedades de economia mista subnacionais, seja para prestação de serviços públicos, seja para exercício de atividade econômica qualificada pelo relevante interesse coleti-vo a que se refere o art. 173 da Constituição Federal, estando ambas sujeitas aos ditames da legislação societária.16 Apenas o motivo de segurança nacional é considerado privativo da União para efeito de justificar a intervenção no domínio econômico, não se estendendo às demais esferas de governo.

A lei estadual ou municipal que autoriza a constituição de empresa pública ou sociedade de economia mista deve aceitar integralmente o modelo previsto na Lei n. 6.404/1976, não lhe sendo facultado alterar as normas de ordem pública previstas naquele diploma legal, para melhor adequá-las às peculiaridades locais...

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