A endemia da exclusão e a pandemia da covid-19: o acesso ao saneamento básico sob a ótica da bioética de intervenção

AutorMarcelo Sarsur e Amanda Pacheco
Ocupação do AutorDoutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais/Graduanda em Direito
Páginas43-60
A ENDEMIA DA EXCLUSÃO E A PANDEMIA
DA COVID-19: O ACESSO AO SANEAMENTO
BÁSICO SOB A ÓTICA DA BIOÉTICA DE
INTERVENÇÃO
Marcelo Sarsur
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Colaborador do
GEPBio – Grupo de Estudos e Pesquisas em Bioética e Direito. Diretor da Sociedade
Brasileira de Bioética – Regional Minas Gerais. Integrante da Comissão da Advocacia
Criminal da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Minas Gerais. Coordenador
da Setorial Justiça e Segurança Pública do movimento Livres. Advogado criminalista.
Amanda Pacheco
Graduanda em Direito. Membro Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em
Bioética (GEPBio) do Centro Universitário Newton Paiva.
Sumário. 1. A pandemia e o encontro marcado com a exclusão brasileira. 2. Bioética da Inter-
venção: Uma resposta para os dilemas bioéticos das periferias do mundo. 3. A falta de acesso
ao saneamento básico como questão persistente da bioética. 4. Prolaxia, enfrentamento à
Covid-19 e o imperativo do acesso ao saneamento básico. 5. O marco legal do saneamento
básico: rumo ao acesso universal? 6. Conclusão. 7. Referências.
1. A PANDEMIA E O ENCONTRO MARCADO COM A EXCLUSÃO BRASILEIRA
Estima-se que, no mês de abril de 2020, cerca de um terço da população mundial, em
todos os continentes, esteve sob alguma forma de restrição de circulação, desde medidas
de distanciamento social até as mais restritivas formas de lockdown1. A pandemia global
provocada pelo novo vírus SARS-CoV-2, sem paralelos desde a eclosão da gripe espa-
nhola de 1918, impactou de modo direto, e severo, todas as sociedades e comunidades.
Ante a falta de uma vacina ef‌icaz ou de protocolos de tratamento farmacêutico seguros
para enfrentar os sintomas da contaminação, aposta-se em estratégia tão antiga quanto
ef‌icaz: a prevenção do contágio, pela restrição de circulação de pessoas – não apenas
dos pacientes sintomáticos, mas em especial de pessoas que podem ter sido expostas
ao vírus e que, apesar de serem capazes de contaminar terceiros, ainda não apresentam
manifestações perceptíveis da doença. Até meados de agosto de 2020, não se obteve uma
1. KAPLAN, Juliana; FRIAS, Lauren; MC-FALL-JOHNSEN, Morgan. A third of the global population is on corona-
virus lockdown – here’s our constantly updated list of countries and restrictions. Business Insider, 15 abr. 2020.
Disponível em .com/countries-on-lockdown-coronavirus-italy-2020-3>. Acesso
em 16 abr. 2020.
MARCELO SARSUR E AMANDA PACHECO
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vacina ef‌icaz e segura para o enfrentamento da Covid-19, a despeito de diversas pesqui-
sas em andamento, desenvolvidas por laboratórios de países distintos. O ano de 2020 já
se apresenta como o ano da pandemia: os impactos sociais, políticos, econômicos e de
saúde pública são relevantes e irreversíveis.
Não se pode dizer, propriamente, que a atual pandemia era um acontecimento
imprevisível; o risco já era conhecido, seja por governos nacionais2, por entidades
internacionais3, ou por intelectuais públicos e pensadores4. Não se trata, pois, de um
cisne negro5, mas de um fato natural e social que, conquanto previsível, foi largamente
ignorado por quem deveria ter zelado para minimizar seus impactos. Não apenas o pla-
nejamento não foi efetuado a contento, com medidas específ‌icas para o combate de uma
eventual pandemia, mas mesmo as providências mais elementares para a contenção da
disseminação do vírus esbarraram na indiferença ou no ceticismo de algumas autorida-
des nacionais. Em diversos lugares, a disponibilização de exames para a detecção dos
casos de contágio, a contratação emergencial de prof‌issionais de saúde, o suprimento
de equipamentos de proteção individual para as equipes de atendimento e a montagem
de estruturas de atendimento à saúde, passos mínimos para a atenuação das medidas de
restrição à circulação de pessoas, ainda não foram efetivadas ou sequer foram iniciadas.
O negacionismo quanto à gravidade da doença, ao invés de favorecer a retomada eco-
nômica, a prejudica; tanto é que, na experiência comparativa, países e localidades que
adotaram medidas pautadas na ciência, como o isolamento social rígido e o rastreamento
de casos, já puderam efetuar reaberturas bem sucedidas, enquanto Brasil e Estados Unidos
da América, dois Estados que optaram por não ter uma política centralizada e unívoca
no enfrentamento à pandemia, lidam ainda com picos elevados de casos e de fatalidades
decorrentes da Covid-19.
2. Os auxiliares do Presidente Donald Trump participaram, no início de 2017, de um exercício conjunto com a
equipe do então Presidente Obama, no qual se simulou a eclosão de uma pandemia de gripe. Como relata Susan
Rice, ex-Conselheira de Segurança Nacional dos EUA, “durante a transição em janeiro de 2017, o time de Obama
providenciou relatórios e conduziu um exercício lado-a-lado com líderes do iminente governo Trump, focado em
ameaças pandêmicas. Como ocorreu com muitas das ajudas que oferecemos, ele foi descartado pela equipe nova.”
(RICE, Susan E. The Government Has Failed on Coronavirus, but There Is Still Time. The New York Times, Opinion,
13 mar. 2020. Disponível em .nytimes.com/2020/03/13/opinion/corona-virus-trump-susan-rice.
html>. Acesso em 16 abr. 2020. Tradução livre).
3. A Organização Mundial da Saúde, muito criticada por sua postura diante da crise da Covid-19, mantém, desde
2009, um Quadro de Trabalho de Preparação para Gripes Pandêmicas, que se encontra, atualmente, em sua terceira
edição, datada de maio de 2017.
4. O fundador da Microsoft, Bill Gates, anteviu, ainda em 2015, que as capacidades globais de enfrentamento de
pandemias estavam muito aquém do que era necessário (TED TALKS 2015. The Next Outbreak? We’re Not
Ready. Bill Gates. Disponível em .ted.com/talks/bill_gates_the_next_outbreak_we_re_not_ready>.
Acesso em 16 abr. 2020.). Antes mesmo dessa previsão, o pensador e analista de riscos Nassim Nicholas Taleb,
em 2007, já escrevia: “Enquanto viajamos mais pelo planeta, as epidemias se tornarão mais agudas – teremos uma
população de germes dominada por um pequeno número, e o assassino bem sucedido se espalhará vastamente, e
mais ef‌icazmente.” (TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan. The Impact of the Highly Improbable. New York:
Random House, 2016. p. 317. Tradução livre.)
5. Nassim Nicholas Taleb def‌ine o “cisne negro” como “um evento marginal, porque reside foram do reino das expec-
tativas regulares, porque nada no passado pode convincentemente apontar para a sua possibilidade. Em segundo
lugar, ele carrega um impacto extremo (ao contrário do pássaro). Em terceiro lugar, apesar de seu status marginal,
a natureza humana nos faz criar explicações para a sua ocorrência após o fato, tornando-o explicável e previsível”
(TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan. The Impact of the Highly Improbable. New York: Random House,
2016. p. xxii. Tradução livre.)

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