O Instituto da Enfiteuse: Das origens romanas ao contexto nacional contemporâneo e tendências futuras

AutorEric Baracho Dore Fernandes
Páginas65-98

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I Introdução

O objeto da matéria a seguir1 será o instituto civil da enfiteuse, instituto com raízes anteriores ao próprio direito romano, embora neste tenha recebido a conceituação pelo qual é mais amplamente conhecido no direito contemporâneo.

A enfiteuse é o direito real, alienável e hereditário, que atribui ao seu titular o uso, fruto e a disposição da coisa imóvel, respeitado o direito do senhorio, tal qual define Pontes de Miranda2. Esse instituto tem origens no Direito Romano, sendo os primeiros contratos enfitêuticos datados do século II d.C., como será abordado a seguir nesse relato.

O ius emphyteuticum evoluiu juridicamente e continuou a existir como direito real legitimamente reconhecido nos países de orientação jurídica romano-germânica. A exemplo de Portugal, que anteriormente a nós reconhecia o direito de enfiteuse, herança jurídica deixada para o ordenamento jurídico brasileiro.

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O novo Código Civil de 2002, em seu artigo 2.0383 finalmente proibiu a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, subordinando as já existentes, até sua extinção, às disposições do código civil de 1916, exceto quanto aos terrenos da marinha e acrescidos, que são regidos por lei especial.

Apesar da constituição de novas enfiteuses ser proibida pelas disposições civis atuais, o instituto que é reconhecido pela doutrina como “o mais amplo direito sobre propriedade alheia” (nas palavras de Maria Helena Diniz4) ainda se faz juridicamente presente em várias áreas de nosso país. O município de Petrópolis, na região serrana do estado do Rio de Janeiro, é quase que em sua totalidade abrangido pelo direito de enfiteuse dos herdeiros da família real, de tal forma que todos os imóveis pagam uma taxa (Laudêmio5) quando o proprietário atribui a outra pessoa o domínio útil do imóvel, ato esse também conhecido como aforamento.

Apesar da abrangência da enfiteuse constituída no município de Petrópolis, os membros da família real não são os únicos que clamam ser titulares desse direito no Brasil. Encontramos outros exemplos menos conhecidos, tal qual o do bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, onde quase três mil pessoas representadas pela AMB (Associação de Moradores de Botafogo) chegaram a questionar na justiça o direito de uma família conhecida como Silva Porto, sobre a taxa que devem pagar a tal família no ato de venda de seus imóveis, litígio esse a ser mencionado mais adiante neste relato.

Esse trabalho busca analisar a evolução desse instituto, desde seu surgimento no Direito Romano até sua existência e efeitos no ordenamento jurídico brasileiro atual, perpassando pelos questionamentos a serem feitos quanto à extinção desse direito real em processo de desaparecimento, mas que sem dúvida ainda está presente em nosso ordenamento como objeto de litígios de grande porte.

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II Conceito Moderno

No sentindo contemporâneo, enfiteuse é o direito real, alienável e hereditário, que atribui ao seu titular o uso, o fruto e a disposição da coisa imóvel, respeitado o domínio do senhorio.

É um instituto jurídico de origem romana, derivado diretamente do arrendamento por prazo longo ou perpétuo de terras públicas a particulares. No direito Justinianeu (Período do Dominato6, em Roma), a enfiteuse é definida como direito real, alienável e transmissível aos herdeiros, que atribui a alguém (o enfiteuta), mediante o pagamento de um canon atual, faculdades sobre imóvel de outrem (o concedente), análogas às de verdadeiro proprietário.

Atualmente a enfiteuse se enquadra entre os direitos reais, como um direito real sobre coisa alheia - iura in re aliena - sendo classificada dessa forma a partir do direito justinianeu, período do Dominato na história externa romana. Contudo, é importante salientar as origens gregas7 do instituto, mesmo que tenha originalmente surgido com uma definição um pouco diferente da que se consagrou a partir do direito romano.

Maria Helena Diniz, quanto à natureza jurídica da enfiteuse, a define como:

“A enfiteuse é o mais amplo dos jus in re aliena, transferindo ao enfiteuta o jus utendi, fruendi e até o disponendi, pois este pode alienar seus direitos sem que haja anuência do senhorio, podendo ainda reivindicar a coisa de quem quer que seja”

A afirmação de Maria Helena Diniz quanto à amplitude desse direito se justifica pelo fato de que através dele, seu titular pode tirar da coisa imóvel todas as utilidades e vantagens inerentes a ela, permitindo a esse titular empregar a coisa imóvel da forma quePage 68 lhe for mais conveniente, observando a natureza da coisa, a preservação de sua substância e os direitos do senhorio sobre o imóvel.

Ainda salienta Arnoldo Wald quanto à amplitude do direito de enfiteuse:

“No quadro dos direitos reais sobre coisa alheia, é a enfiteuse que mais se aproxima do direito de propriedade. Enquanto nas servidões, no uso e no usufruto o titular de direito real sobre coisa alheia apenas pode, conforme o caso e em latitude maior ou menor, usar e gozar do bem agravado, sem ter a faculdade de dele dispor, na enfiteuse o enfiteuta, além de usar e gozar, também dispõe da coisa. Por outro lado, em vez de tratar de um direito temporário ou vitalício, como o uso, a habitação ou o usufruto, a enfiteuse é, como a propriedade, um direito perpétuo”8.

À luz de artigos da legislação civil que rege a enfiteuse em nosso ordenamento jurídico9, podemos também definir o instituto como direito real que se constitui10 através de contrato bilateral e oneroso, de caráter perpétuo, em que por ato inter vivos ou disposição testamentária, o proprietário pleno da coisa imóvel cede a outrem o domínio útil de um trato de terras não cultivadas ou de terrenos destinados à edificação, mediante o pagamento de certa pensão ou foro, anual, certo e invariável.

A partir dessa breve delimitação conceitual do instituto à luz da doutrina contemporânea e legislação civil, partiremos então a uma análise jurídica deste à luz do direito justinianeu, de forma a traçarmos um paralelo com o a regulamentação da enfiteuse no direito contemporâneo, mais adiante.

III A Enfiteuse no Direito Justinianeu

O direito justinianeu concebia a enfiteuse como um direito real sobre coisa alheia. Somente na Idade Média, em virtude das amplas faculdades do enfiteuta sobre o imóvel, surgiu a idéia de que a enfiteuse seria na verdade uma modalidade de propriedade,Page 69 porém inferior à do verdadeiro proprietário. Dessa forma criou-se a concepção de que o enfiteuta tinha o domínio útil (direito do enfiteuta de usufruir ou dispor) sobre a coisa imóvel, enquanto o proprietário possuía domínio direto (poder do senhorio sobre o imóvel) sobre a coisa.

No direito justinianeu, o enfiteuta possuía as seguintes faculdades:

  1. O uso e gozo amplo11 do imóvel, com a limitação de não praticar atos que o deteriorassem;

  2. A aquisição dos frutos que o imóvel produz por simples separação da coisa principal;

  3. A transmissão inter uiuos ou mortis causa do direito de enfiteuse;

  4. A constituição de servidão predial (que onere ou favoreça o imóvel) ou pessoal, a possibilidade de dá-lo em hipoteca ou de conceder subenfiteuse (contrato através do qual o enfiteuta sub-roga alguém, o subenfiteuta, nos direitos e obrigações oriundos da enfiteuse, permanecendo sua responsabilidade em relação ao senhorio direto);

  5. A defesa judicial do direito de enfiteuse e dos direitos de servidão porventura existentes em favor do imóvel.

    São faculdades muito semelhantes às de proprietário, como bem salienta Moreira Alves.

    Em contrapartida, o enfiteuta possuía certas obrigações a serem observadas:

  6. Não deteriorar o imóvel;

  7. Suportar todos os ônus (impostos, multas, etc) que recaiam sobre a coisa;

  8. Pagar o canon (vectigal ou pensio) anual. Essa taxa era de valor muito pequeno em relação ao rendimento do imóvel, e o seu não pagamento por mais de três anosPage 70 consecutivos dava ao proprietário o direito de retirar do enfiteuta seu direito sobre a enfiteuse. Por fim;

  9. Dar preferência, quando quiser alienar o direito de enfiteuse, ao proprietário do imóvel. Sendo assim, o proprietário tem direito de preferência. Por outro lado, se o proprietário não quiser se valer de seu direito, o enfiteuta está obrigado a pagar-lhe 2% do valor da alienação. Os juristas medievais denominam essa taxa de laudêmio.

    A enfiteuse tinha três formas de constituição ao tempo do direito justinianeu:

  10. Mediante contrato entre o proprietário do imóvel e o enfiteuta;

  11. Por meio de legado do proprietário do imóvel;

  12. Transmissão do direito de enfiteuse já constituído, seja por ato jurídico inter uiuos (transmissão do enfiteuta em favor de terceiro) ou mortis causa (transmissão por herança ou legado).

    Por outro lado, a enfiteuse também podia ser extinta, no direito justinianeu, nos seguintes casos:

  13. Renúncia do direito de enfiteuse pelo enfiteuta;

  14. Destruição do imóvel;

  15. Confusão, situação onde são reunidas no mesmo indivíduo as qualidades de enfiteuta e proprietário;

  16. Decadência12 do direito de enfiteuse, que ocorre a título de pena para o enfiteuta quando ele não mantém seu imóvel conservado em bom estado, quando deixa de pagar o canon anual por três anos consecutivos ou quando aliena o direito de enfiteuse sem consultar o proprietário para saber se este deseja utilizar-se de seu direito dePage 71 preferência (nesse caso a alienação é nula e o enfiteuta perde seu direito sobre o imóvel).

    O enfiteuta, na defesa do seu direito de enfiteuse, podia, no direito justinianeu, lançar mão de todas as ações de que dispõe o proprietário: rei uindicatio13, actio confessoria14, actio negatória15 e os meios judiciais de defesa dos direitos de vizinhança, bem como dos interditos possessórios.

    Tendo sido expostas as características desse direito real...

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