Enfoques de uma crise: o jornal como fonte de pesquisa histórica

AutorDenise Castilhos de Araujo - Claudia Schemes - Magna Lima Magalhães
CargoProfessora do Instituto de Ciêncas Sociais Aplicadas, pesquisadora do Grupo de Pesquisas Cultura e Memória da Comunidade. - Doutora em HIstória, professora dos cursos de HIstória e Design de Moda - Doutora em HIstória, professora do curso de HIstória, pesquisadora do Grupo de Estudos em Cultura e Memória da Comunidade
Páginas167-185

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Denise Castilhos de Araujo1

Claudia Schemes2

Magna Lima Magalhãe3

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1 O JORNAL COMO FONTE HISTÓRICA

Este artigo apresenta algumas reflexões sobre a crise do setor coureiro calçadista, da cidade de Novo Hamburgo, no estado do Rio Grande do Sul a partir de sua apresentação no jornal NH. Lançamos mão do jornal como importante fonte para o trabalho de cunho histórico, posto que a ampliação das abordagens históricas, bem como a possibilidade de reflexões a partir do cotejamento de diferentes fontes contribui de forma significativa para a pesquisa histórica. Sendo assim, os periódicos colaboram com elementos relevantes que nos remetem a discursos e representações sociais.

De acordo com os teóricos da comunicação, especialmente os frankfurtianos 4, os meios de comunicação de massa determinam a construção da realidade dos seus públicos. Sob esta perspectiva, sem tratarse de um determinismo, podese afirmar que, de alguma forma, a percepção que a comunidade de Novo Hamburgo construiu/constrói do tema a ser investigado é fortemente influenciada pelo jornal referido. Neste sentido, poderíamos dizer que representações5 foram construídas acerca da crise do setor coureirocalçadista no imaginário social do Vale do Rio dos Sinos. Para Baczko (1985, p.310), o imaginário social envolve a construção de imagens oriundas de diferentes agentes sociais, sendo assim o “imaginário social e as representações traduzem as lutas de poder pelo domínio simbólico”.

A utilização do jornal como fonte histórica para o historiador vem sendo discutida há muitos anos, pois esta nem sempre foi considerada a fonte mais apropriada para o trabalho historiográfico. Capelato (1988, p.13) já dizia que “o periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época”.

Entretanto, o documento histórico oriundo da imprensa não pode ser considerado o reflexo da realidade, mas o lugar onde há a representação do real. Ainda segundo Capelato (1988),

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Sua existência é fruto de determinadas práticas sociais de uma época. A produção desse documento pressupõe um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem desvendadas. A imprensa age no presente e também no futuro, pois seus produtores engendram imagens da sociedade que serão reproduzidas em outras épocas (CAPELATO, 1988, p. 24,25).

Primamos por uma leitura intensiva do jornal, considerando a circulação, o contexto e os leitores deste (ELMIR, 1995). Os jornais são veículos pelos quais a sociedade produz e veicula modelos e reflexões vigentes em determinada época6. A linguagem possibilita determinar valores morais e comportamentais, assim como classificar e justificar grupos sociais, que no entendimento de Bourdieu (2002), seria “um ato de poder”. Segundo Orlandi (1990, p.35) “a partir dos jornais, desenvolvese a construção de um discurso histórico porque cria tradição, passado, e influencia novos acontecimentos”.

O jornal, dentro dessa perspectiva, não é apenas fonte de informação, mas, também, fonte histórica, pois,

[...] possui toda uma série de qualidades peculiares, extremamente úteis para a pesquisa histórica. Uma delas é a periodicidade, os jornais constituemse em verdadeiros arquivos do cotidiano, nos quais podemos acompanhar a memória do diaa-dia e estabelecer a cronologia dos fatos históricos. Outra é a disposição espacial da informação, que nos permite a inserção do acontecimento histórico dentro de um contexto mais amplo. E outro aspecto singular do material jornalístico é o tipo de censura instantânea e imediata, diferente de outras fontes que poderão ser submetidas a uma tiragem antes de serem arquivadas [...] (ESPIG, 1998, p. 274).

Para além da leitura “intensiva” das palavras lançamos mão da análise qualitativa de conteúdo como forma de categorizar e de sistematizar informações relevantes para o estudo.7

Por esta perspectiva, buscamos explorar através do jornal as leituras sobre a crise do setor coureirocalçadista nos anos 1990 e suas representações veiculadas no Jornal NH, principal veículo de comunicação da cidade de Novo Hamburgo e região.

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Conforme os dados do IVC (Instituto Verificador de Circulação), em julho de 2007, o Jornal NH era o maior diário, em termos de assinaturas pagas, do interior do estado do Rio Grande do Sul. A circulação do Jornal NH abrange hoje 52 municípios dos vales do Rio do Sinos, Caí e Paranhana.

O Jornal NH faz parte do Grupo Editorial Sinos 8, que foi criado em 1957, na cidade de São Leopoldo, por Mário Alberto e Paulo Sérgio Gusmão. A partir de 1960, o grupo se instalou na cidade de Novo Hamburgo, defendendo a ideia de que um jornal deveria participar do processo construtivo de uma sociedade.

Segundo o site do Grupo, seus veículos de comunicação se caracterizam por “diferenciais claramente percebidos, quer em regionalização da cobertura, quer em segmentação editorial, tornandose fortes e respeitados em suas áreas de atuação”. Diz ainda que o “jornalismo comprometido não só com a informação, como também com o desenvolvimento e necessidades das comunidades onde atua, tem sido o maior responsável pelo seu crescimento e sucesso [...].”9

O Jornal NH, com o passar dos anos, ultrapassou os limites do município de Novo Hamburgo, circulando em outras cidades da região 10, sempre incentivando campanhas a favor de desenvolvimento regional.

Para Ávila (2005), os fundadores do jornal seguiram o mesmo caminho que Assis Chateaubriand e seus Diários Associados, envolvendose com a comunidade11, pois

também aderiram às campanhas pelo desenvolvimento de Novo Hamburgo e região, e

9 Disponível em http://www.gruposinos.com.br/

11 Segundo Ávila (2005) as campanhas nas quais se envolveu Assis Chateaubriand foram: “Dê Asas à Juventude” que promoveria, durante dez anos, a doação de aviões para aeroclubes de todo o Brasil, a Campanha Nacional da Criança, cujo objetivo era diminuir a mortalidade infantil com a construção de postos de saúde em todo o Brasil e a campanha para a criação do Museu de Arte de São Paulo.

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o jornal, desde sua criação, envolveuse nas campanhas e nas conquistas que a comunidade alcançou.

O autor ressalta três campanhas que tiveram atuação decisiva do jornal: primeiro a campanha em prol da FENAC (Feira Nacional do Calçado), que impulsionou o setor coureirocalçadista, chamando a atenção do mundo para o Vale do Sinos; depois a campanha pela telefonia, pois a mesma até o início dos anos 60 era via telefonista, e qualquer contato telefônico poderia levar horas; e por fim, a campanha para a implantação de cursos superiores na cidade que acabou levando à criação da ASPEUR (Associação PróEnsino Superior em Novo Hamburgo) e, mais tarde, à FEEVALE (Federação de Estabelecimentos de Ensino Superior em Novo Hamburgo).

Atualmente, segundo dados do IVC (Instituto Verificador de Circulação), o Jornal NH é o maior diário, em termos de assinaturas pagas, do interior do estado do Rio Grande do Sul.

2 A SITUAÇÃO DE CRISE ELABORADA PELO JORNAL NH

As reportagens sobre o tema aqui pesquisado não dispõem de um grande espaço textual e, dificilmente, ultrapassam meia página, o que é justificável pela própria natureza do texto jornalístico, o qual é renovado diariamente a partir de informações que são constantemente atualizadas. Por outro lado, há uma constância na temática, apontando para a preocupação do veículo em refletir, nas suas páginas, fatos importantes para a economia regional.

As matérias podem ser encontradas, principalmente, nos cadernos de Economia, Empresas, Empregos e Geral. O mais usado até o ano de 1995 foi o de Economia, a partir daí, o caderno Empresas recebeu maior destaque. Curiosamente, o caderno Empregos portou, entre as matérias pesquisadas, apenas uma veiculação de reportagem relacionada à crise calçadista, que ocorreu no ano de 1995 e intitulouse “Anúncio atrai 500 sapateiros”. Geralmente a presença das matérias ocorria na página direita do jornal, o que remete à importância dada ao assunto

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crise/emprego/desemprego, pois este se constitui lugar privilegiado em um veículo de comunicação impresso.

Também foi possível constatar em meio às reportagens coletadas, a ausência de matérias referentes ao tema desemprego durante o ano de 1996, sendo que a única encontrada traçava um perfil da situação do trabalho no ano anterior (1995). Esta ausência pode ser justificada pelo fato de que houve um aumento de 10,86% nas exportações brasileiras de calçados naquele ano, o que diminuiu um pouco os efeitos da crise12

No período que compreende as décadas de 1980 e 1990 foi intensa a influência do neoliberalismo na economia do país, modelo econômico que apresentava como uma de suas principais características as privatizações do Estado, a desregulamentação dos direitos trabalhistas e a desmontagem do setor produtivo estatal. Esta influência mostrouse mais clara a partir dos anos 90, com os governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, através das políticas monetárias, das privatizações de empresas públicas e do afastamento dos estados do setor produtivo, das flexibilizações e desregulamentações, dentre outras medidas. A consequência foi a alteração nos condicionantes fundamentais do ambiente econômico, o que inspirou um quadro de reestruturação dos mercados e exigiu uma melhor capacitação tecnológica e eficiência produtiva. A mundialização do mercado de capital apresentou resultados complexos no mercado do trabalho, fazendo crescer o mercado informal, as subcontratações e as terceirizações (FIORIN, 2002).

O mesmo autor explica ainda que tal situação ocorreu em quase todos os mercados, os nacionais e os internacionais. Depois de 1990, mas sobretudo depois de 1994, os mercados foram abertos e desregulamentados, e o setor público foi privatizado velozmente em nome da...

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