Ensino jurídico no Brasil: críticas e sugestões

AutorTiago Soares de Aquino
Páginas352-360

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Apresentação

Neste trabalho procuro expor considerações, perplexidades, críticas e sugestões relacionadas ao ensino do Direito em nosso país. Adoto uma perspectiva eminentemente subjetiva ou até intimista, na medida em não me valho de referências a fatos históricos ou atos normativos que determinaram transformações no programa acadêmico dominante no Brasil ou a dados estatísticos hábeis a indicar as deficiências e informar os avanços na formação de profissionais que seguirão as carreiras jurídicas.

O leitor encontrará neste ensaio, entretanto, a despretensiosa e genuína opinião de um estudante do quinto ano da Faculdade de Direito do Recife - originada da transferência da Faculdade de Direito de Olinda, que fora fundada em 1827, simultaneamente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - sobre as disciplinas, as aspirações dos alunos, a abordagem dos docentes, a monografia de conclusão de curso, as formas de avaliação, a pesquisa científica, os desafios do mercado de trabalho e a influência exercida pelos concursos públicos durante os cinco anos de formação do profissional do Direito, dentre outros temas que considerei pertinentes ao debate.

Introdução

Considero o absoluto prestígio dispensado ao curso de direito um fenômeno extremamente curioso. Pairam sob o profissional com formação jurídica uma série de expectativas generalizadas da sociedade, como resultado de uma crença de que aquele conhecimento acumulado a custo de anos de estudo a fio conferiria ao jurista a possibilidade encontrar a solução para questões dos mais diversos matizes, sejam elas comerciais, éticas, políticas e até filosóficas.

A complexidade característica da pós--modernidade deixou a civilização ocidental refém da ausência de um paradigma ético universal, pois nem a religião nem a ciência se prestam mais para essa tarefa. O Direito passou a ser a única instância com conteúdo ético que pode ser invocada e de legitimidade reconhecida por todos.

Um dos reflexos dessa sobrecarga é a superestimação do labor dos indivíduos encarregados da interpretação e da aplicação do Direito.

Aliadas à realidade global ou, ao menos, ocidental, as peculiaridades nacionais contribuem para reforçar o halo que rodeia tudo que é relacionado ao Direito. Refiro--me aqui a dois aspectos que serão detalha-

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dos adiante: a cultura do bacharelismo e a ânsia pela estabilidade financeira, esta última traduzida pelo ardor com que se busca a aprovação em um concurso público.

Não deixo de reconhecer que o interesse pelo Direito também aumentou devido à ampliação do acesso à justiça. A partir do processo de redemocratização do país no curso dos anos 80 do século passado, culminando com a Constituição de 1988, o panorama jurídico do Brasil adquiriu uma visibilidade e uma importância inéditas.

Para não ir muito longe, basta lembrar que, hoje, o que são e o que fazem os Ministros do Supremo Tribunal Federal é algo que qualquer cidadão brasileiro medianamente instruído, querendo, conhece. Num passado não muito distante, aliás, quem, não sendo um jurista praticante, sabia ou tinha algum interesse em saber quem era o seu presidente? Hoje em dia, seria impossível alguém escrever um livro com o título de O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido, como o político e jurista Aliomar Baleeiro fez em 1968.

Contudo, como os objetivos do presente trabalho são criticar e sugerir, refugio-me dentro do círculo de minha escolha, vá lá a expressão esnobe, o "corte epistemológico", de maneira que será dado enfoque especial aos aspectos da realidade que possam ser criticados

O que explica a demanda exponencial e a abertura desenfreada de cursos de Direito no país? O bacharelismo como ponto de partida para entender essa anomalia resulta de uma escolha que se volta para a compreensão de nossas "raízes". Todos conhecem a figura cômica do indivíduo que se considera provido de poderes extraordinários por portar um diploma de bacharel em Direito, que exige o tratamento de "doutor" de seus interlocutores e que não perde uma oportunidade de lançar mão dos últimos aforismos em latim que aprendeu.

Há uma explicação sociológica para o aparecimento dessas constantes figuras: o patrimonialismo que nunca deixou de se destacar no processo de formação de nosso Estado, o qual, como retrata Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, foi concebido como uma estrutura político-adminis-trativa para servir de prolongamento do Estado patrimonial português.

A atual cultura do bacharelismo seria, portanto, reflexo e consequência do objeti-vo, consciente ou não, e por vezes alcançado, de pertencer ao círculo elevado qualificado para o exercício do poder.

O homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda, que, é bom lembrar, vem de cordis, coração, é o ser formado na ordem doméstica, tão característica da grande propriedade, e que, ao projetar-se no espaço público faz dos lugares e postos que ocupa, bem como das prerrogativas que lhe são atinentes, uma ampliação do círculo familiar.

Não obstante a obra do tempo venha desintegrando esses complexos retardatários, a sucessão das gerações não conseguiu eliminar o estudante de direito sem vocação alguma, que, por ter alguma pessoa próxima em uma posição de destaque, se fia no ditado de que quem tem padrinho não morre pagão.

É importante deixar claro que a influência exercida pelas pessoas de sucesso ao redor do futuro estudante de Direito não é essencialmente negativa. O que se critica é a escolha baseada na ingênua crença de que, tendo o predecessor aberto um caminho, bastaria tão somente segui-lo e continuá-lo, quando se sabe que talento não se transmite e cliente não se herda.

Muito embora a cultura do bacharelismo assole as faculdades de Direito, o efeito destruidor provocado pelos concursos públicos é atualmente insuperável. Não exagero ao afirmar que ocupar um cargo público é o ápice teleológico de três quartos dos estudantes de Direito que conheço.

Dentre esses universitários há os que se apaixonaram pela magistratura ou pelo Ministério Público, por exemplo, e existem aqueles cujo escopo único é alcançar a

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"estabilidade" por meio do êxito em qualquer dos frequentes certames. O mais obtuso dos observadores saberá identificar qual dos dois grupos constitui a maioria.

Os "concurseiros" profissionais são extremamente nocivos para a Academia, na medida em que todo conhecimento só lhes parece útil se se tratar de matéria exigida em editais. Inexiste preocupação em pensar o país e seu Direito, debater a política nacional e regional, pesquisar a origem e acompanhar a evolução de instituições jurídicas, contribuir para o aperfeiçoamento do ensino e, de alguma forma, no caso de universidades públicas, oferecer algum retorno à sociedade que paga na forma de tributos por um curso caríssimo para que praticamente apenas os filhos das classes dominantes possam aproveitar.

A mentalidade da aprovação impõe que se faça vista grossa para qualquer desses temas. Deles só se ocupará se alguma instituição que elabora provas os eleger como conteúdo a ser estudado.

A multiplicação dos prestadores de concursos arruína o ensino do Direito no país, contribui para desprestigiar a advocacia e transforma as faculdades em algo próximo do que seria um curso preparatório piorado. A crítica a esses pontos será retomada...

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