Ensino religioso como instrumento de combate à desigualdade e à intolerância religiosa no ambiente escolar: perspectivas a partir do julgamento da ADI 4439

AutorSérgio Augusto Lima Marinho
Páginas243-275

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Apresentação

O presente trabalho tem por objetivo geral analisar a constitucionalidade do direito fundamental ao ensino religioso praticado nas escolas públicas e de que forma tal ensino pode ser útil ao combate à desigualdade e ao preconceito religioso. A pesquisa encontra-se pautada em consulta bibliográfica sendo, portanto, uma pesquisa dogmática, uma vez que se analisa a (in)constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas em vista de outros direitos e bens jusfundamentais, sendo realizada com o auxílio do método dedutivo. Para tanto, encontra-se em três partes, cada uma correspondente aos objetivos específicos. Primeiramente, aborda-se o direito ao ensino religioso enquanto direito fundamental tanto em uma perspectiva formal como em uma perspectiva material; em seguida, apresenta-se a neutralidade religiosa como exigência do Estado Democrático, visto que esta é fundamental à garantia da liberdade religiosa e dos direitos fundamentais, incluídos os das minorias; e, por fim, analisa-se o ensino religioso confessional e os argumentos aduzidos pela Procura-doria Geral da República pelos quais a Suprema Corte deve declará-lo incompatível com a Constituição, verificando-se como o ensino religioso praticado de forma não-confessional tende a contribuir para o combate à desigualdade e intolerância religiosa. A conclusão mostra que o ensino religioso confessional é de constitucionalidade duvidosa, sobremaneira em virtude da possibilidade de ofensa aos direitos fundamentais dos discentes

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professantes de cultos minoritários, direitos estes que, conforme o texto constitucional gozam de absoluta preferência (art. 227). Assim, eventual declaração de inconstitucionalidade do ensino religioso confessional e imposição de uma forma não-confessional de ensino religioso, além de assegurar a liberdade religiosa dos estudantes professantes de credos minoritários, pode se revelar como mecanismo eficaz de combate à desigualdade e à intolerância religiosa.

1 Introdução

A liberdade religiosa é, enquanto decorrência do direito geral de liberdade de consciência, um dos direitos fundamentais mais importantes, razão pela qual se encontra assegurada em qualquer Estado que se pretenda democrático e de direito. Tal direito garante ao seu titular uma série de direitos subjetivos, dentre os quais se encontra o direito a aprender sobre a religião professada.

Além disto, a Constituição brasileira, ao tratar do direito à educação, positiva o ensino religioso enquanto direito fundamental autônomo. Dai surge a necessidade de compatibilização desde direito com outros direitos e bens jusfundamentais, velando-se pela unidade e harmonia da ordem constitucional.

Ademais, em virtude elementos históricos amplamente conhecidos, infelizmente, pode-se afirmar ser o Brasil um país marcado por sensível dose de desigualdade e intolerância religiosa, o que se verifica em todos os setores da sociedade, incluso o ambiente escolar. Há notícias, por exemplo, de alunos impedidos de ingressar em estabelecimentos públicos de ensino utilizando adereços e indumentárias típicas de suas religiões.

Então, o presente trabalho tem por objetivo geral analisar a constitucionalidade do direito fundamental ao ensino religioso praticado nas escolas públicas e de que forma tal ensino pode ser útil ao combate à desigualdade e ao preconceito religioso. A pesquisa encontra-se pautada em consulta bibliográfica, sendo, portanto, uma pesquisa dogmática, uma vez que se analisa a (in)constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas em vista de outros direitos e bens jusfundamentais, sendo realizada com o auxílio do método dedutivo.

Para tanto, divide-se o trabalho em três partes: aborda-se o direito ao ensino religioso enquanto direito fundamental tanto em uma perspectiva formal como e uma perspectiva material; apresenta-se a neutralidade religiosa como exigência do Estado Democrático, visto que esta é fundamental à garantia da liberdade religiosa e dos direitos fundamentais, incluídos

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os das minorias; e, por fim, analisa-se o ensino religioso confessional e os argumentos aduzidos pela Procuradoria Geral da República pelos quais Suprema Corte deve declará-lo incompatível com a Constituição, verificando-se como o ensino religioso praticado de forma não-confessional tende a contribuir para o combate à desigualdade e intolerância religiosa.

2 Ensino religioso nas escolas públicas como direito fundamental

É inegável que a existência de um Estado Democrático pressupõe a garantia de posições jusfundamentais, semelhantemente, não se pode olvidar que a dignidade humana1e os direitos fundamentais somente são plenamente realizáveis em um ambiente democrático e constituem as condições do regular funcionamento da democracia. Afirma-se, inclusive, que o grau ou nível de democracia de um Estado pode ser medido a partir do grau ou nível de universalidade dos direitos fundamentais.2Nesta quadra, há quem atribua um duplo significado à soberania popular ao lado do significado tradicionalmente construído, pelo qual ela é a forma de legitimação do governo, existe um segundo significado. A partir de um paradigma de democracia constitucional, a soberania popular, em substância (não meramente em forma), representa a garantia de direitos fundamentais. Isto porque a vontade popular não pode se manifestar livremente onde não se possa expressar-se livremente, e não se pode expressar-se livremente onde não existam direitos políticos, direitos de liberdade e direitos sociais.3A fundamentalidade de um direito pode ser encarada em um viés formal ou material. Um direito é considerado formalmente fundamental quando está previsto de forma expressa pela Constituição Federal. Isto lhe propicia gozar de um regime jurídico todo especial, pois se encontrando no topo do ordenamento jurídico, vincula os poderes constituídos. Ademais,

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o traço constitucional de um direito fundamental lhe põe a salvo do poder de reforma constitucional do Legislador, já que a Lei Maior petrifica tais conteúdos jusfundamentais por força do disposto no conhecido art. 60, § 4º, IV.

A este respeito, Ingo Wolfgang Sarlet pondera que:

Importa consignar aqui que ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra o Estado corresponde sua condição (como direito objetivo) de normas de competência negativa para os poderes públicos, no sentido de que o status fundamental de liberdade e igualdade dos cidadãos se encontra subtraído da esfera de competência dos órgãos estatais, contra os quais se encontra também protegido, demonstrando que também o poder constitucionalmente reconhecido é, na verdade, juridicamente constituído e desde sua origem determinado e limitado, de tal sorte que o Estado somente exerce seu poder no âmbito do espaço de ação que lhe é colocado à disposição.4A seu turno Luigi Ferrajoli, pesquisando acerca dos direitos fundamentais, propõe alguns questionamentos, sendo o primeiro deles a respeito do que seriam os direitos fundamentais, em sua resposta indica que:

Son derechos fundamentales todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a todos los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de obrar; entendiendo por derecho subjetivo cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un sujeto por una norma jurídica; y por status la condición de un sujeto prevista asimismo por una norma jurídica positiva, como presupuesto de su idoneidad para ser titular de situaciones jurídicas y/o autor de los actos que son ejercicio de éstas.5

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Assim, a Constituição se mostra o locus adequado para salvaguarda dos direitos fundamentais, isto porque, tais direito (agora em uma perspectiva material), são direitos tão importante que a decisão sobre garanti-los ou não, não deve ser deixada para a maioria parlamentar simples.

Neste sentido, Robert Alexy preleciona que: "como ninguém conhece o legislador futuro e também as circunstancias sob as quais ele agirá, ninguém pode ter certeza de que ele não utilizará - diferentemente do que ocorreu no passado e no presente - aquelas liberdade e competências de forma desfavorável aos indivíduos."6Entres os direitos fundamentais, encontram-se tanto a liberdade religiosa quanto o direito à educação. Deve-se ter presente que tais direitos gozam de fundamentalidade tanto em sentido formal, pois expressamente positivados pelo Constituinte (arts. 5º, VI e 6º, respectivamente), quanto em sentido material, em vista de sua íntima relação com valores fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana.

Inclusive, há quem defenda que o que impulsionou o florescimento deste Estado Constitucional foi justamente a busca por liberdade religiosa. E, uma vez reconhecido, o direito universal criou o ambiente propício ao reconhecimento dos direitos humanos. Neste sentido, Georg Jellinek lembra que a ideia de direitos originários dos indivíduos é destacada de forma mais veemente a partir do pensamento religioso.7Nesta quadra, Chaïm Perelman preleciona que:

A noção de direitos humanos implica que se trata de direitos atribuíveis a cada ser humano enquanto tal, que esses direitos são vinculados à qualidade de ser humano, não fazendo distinção entre eles e não se estendendo a mais além. Reconheça-se ou não a origem religiosa do lugar especial reservado aos seres humanos nessa doutrina, proclama ela que a pessoa possui uma dignidade que lhe é...

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