Entrada da polícia em residências sem mandado judicial e o julgamento do hc n. 59801 Pelo superior tribunal de justiça

AutorRogerio Schietti Cruz
CargoDoutor e Mestre em Direito Processual (USP)
Páginas20-52
19.ª EDIÇÃO
20
ARTIGO
Revista dos Estudantes de Direito
da Universidade de Brasília;
19.ª edição
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ENTRADA DA POLÍCIA EM RESIDÊNCIAS
SEM MANDADO JUDICIAL E O JULGAMENTO
DO HC N. 59801 PELO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Rogerio Schietti Cruz 1
A análise a ser desenvolvida neste artigo apresenta as questões
subjacentes ao tema do direito à inviolabilidade do domicílio, enfren-
tadas pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do
HC n. 598.051, assim detalhadas:
1. Na hipótese de suspeita de agrância delitiva, qual a exigên-
cia, em termos de standard probatório, para que policiais ingres-
sem no domicílio do suspeito sem mandado judicial?
2. O crime de tráco ilícito de entorpecentes, classicado
como de natureza permanente, autoriza sempre o ingresso sem
mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga?
3. O consentimento do morador, para validar o ingresso no
domicílio e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime,
sujeita-se a quais condicionantes de validade?
4. A prova dos requisitos de validade do livre consenti-
mento do morador, para o ingresso em seu domicílio sem mandado,
incumbe a quem, e de que forma pode ser feita?
5. Qual a consequência, para a ação penal, da obtenção de
provas contra o investigado ou réu, com violação a regras e con-
dições legais e constitucionais para o ingresso no seu domicílio?
1 Doutor e Mestre em Direito Processual (USP)
Professor dos cursos de Mestrado e Doutorado da UniNove
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
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I. STANDARDS DE PROVA PARA INGRESSO EM
DOMICÍLIO. FUNDADAS RAZÕES (JUSTA CAUSA,
CAUSA PROVÁVEL).
O Brasil caminha, posto que ainda lentamente, rumo à adoção da
teoria dos standards de prova como meio de fornecer segurança jurídica
aos prossionais do direito, na averiguação da hipótese fática e sua com-
provação. É dizer, “standards de prova são critérios que estabelecem o
grau de conrmação probatória necessário para que o julgador considere
um enunciado fático como provado” (BADARÓ, Gustavo H. Epistemo-
logia judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019, p. 236).
Há necessidade de diferenciar, nos diversos momentos processu-
ais, ou tipos de decisões a se tomar, os respectivos graus de standard de
prova. E, por óbvio, será muito mais difícil preencher os requisitos do
standard probatório para além da dúvida razoável (o patamar utilizado
para poder o juiz condenar o acusado) do que o exigido para uma pre-
cária e urgente atuação policial (fundadas razões, justa causa ou causa
provável) para ingressar no domicílio onde supostamente esteja sendo
cometido um crime.
Despiciendo sublinhar, por oportuno, que toda medida que res-
tringe direitos fundamentais deve ser fundamentada e racionalmente
controlável, independentemente do momento processual, de modo a
oferecer parâmetros objetivos de justicação.
II. PRECEDENTES E DOUTRINA SOBRE A
NECESSIDADE DAS FUNDADAS RAZÕES PARA O
INGRESSO NO DOMICÍLIO
A jurisprudência e a doutrina pátria entendiam, até recentemente,
que, por ser o tráco de drogas de um crime de natureza permanente, no
qual a consumação se protrai no tempo, estaria autorizado o ingresso em
domicílio alheio a qualquer momento e sem necessidade de autorização
judicial ou consentimento do morador, o que decorria de interpretação
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literal do permissivo constitucional, que alude a “agrante delito” entre
as hipóteses de ressalva à inviolabilidade domiciliar.
Porém, o Supremo Tribunal Federal aperfeiçoou esse entendi-
mento, a partir do julgamento do RE n. 603.616/RO (Tribunal Pleno,
Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 5/11/2015, DJe-093), com
repercussão geral previamente reconhecida. Na oportunidade, o Ple-
nário assentou a seguinte tese, referente ao Tema 280: “A entrada for-
çada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período
noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justi-
cadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de
agrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do
agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados” (destaquei).
Salientou, ainda, que a interpretação jurisprudencial sobre o
tema precisa evoluir, mas que já antevia importante avanço na pro-
posta de denição da exigência da justa causa, controlável a posteriori,
para a busca domiciliar, de sorte a trazer mais segurança tanto para os
indivíduos sujeitos a tal medida invasiva quanto para os policiais, que
deixam de assumir o risco de cometer crime de invasão de domicílio
ou de abuso de autoridade, principalmente quando a diligência não
tiver alcançado o resultado esperado.
Em verdade, a atividade policial brasileira se baseia fundamental-
mente na gestão burocrática da prisão em agrante, como pontua Ade-
mar Borges Filho, conclusão que extrai de pesquisa realizada pelo Ipea
em parceria com o Ministério da Justiça entre os anos de 2011 a 2013. E,
em relação ao tema objeto deste writ, no caso dos delitos que envolvem
tráco de entorpecentes, 91% das prisões são realizadas com a entra-
da dos policiais nas residências sem autorização judicial (BORGES
DE SOUSA FILHO, Ademar. O controle de constitucionalidade de leis penais no
Brasil. Belo Horizonte: Forum, 2019, p. 47), o que, seguramente, implica
o afastamento de direitos fundamentais de pessoas que, por sua condição
social e hipossuciência econômica, habitam moradias nas periferias dos
grandes centros urbanos.
Tome-se, como exemplo, o que conclui relatório produzido pela
ONG Redes da Maré, no qual se destaca que “seguindo o padrão dos
anos anteriores, a invasão de domicílio foi a violação de direito prepon-

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