Ernest Mandel: essential/Ernest Mandel: imprescindivel.

AutorBehring, Elaine Rossetti

Introducao

Em 2015 completam-se vinte anos da ausencia fisica de uma das grandes referencias da tradicao marxista do seculo XX, o belga Ernest Mandel (1923-1995). O presente artigo presta uma homenagem a este critico da economia politica, militante e intelectual tao importante, ao mesmo tempo em que ressalta alguns aspectos da sua obra, tendo em vista, especialmente, as pessoas que nao tiveram um contato maior com seu trabalho.

Mandel, com suas descobertas originais e provocacoes, e imprescindivel para enfrentar os desafios deste inicio de seculo XXI. Estes sao tempos em que o capitalismo mostra com contundencia o esgotamento de suas potencialidades civilizatorias, preconizado por Mandel (1982) em seu Magnum opus, no Brasil publicado com o titulo O capitalismo tardio (1), e se mantem destruindo como nunca, num ambiente de profunda crise estrutural.

Os ultimos quarenta anos confirmaram as analises originais e antecipadoras de Mandel, configurando-se como um periodo de tonica regressiva, de grande ofensiva sobre os trabalhadores na busca por superlucros e de ataques conservadores e reacionarios a toda critica do mundo do capital, critica a qual Mandel se dedicou durante toda a vida. A crise material e de legitimidade dessa forma de producao e reproducao da vida social, paradoxalmente, amplifica o potencial teorico e metodologico do arsenal critico do marxismo revolucionario, apesar de opinioes em contrario.

A expansao da "universidade operacional" traz consigo a recusa da perspectiva heuristica da totalidade, o trabalho academico estandardizado, empobrecido e marcado pelo "produtivismo", as tentativas mais ou menos bem-sucedidas de isolamento da critica radical do mundo do capital, a influencia do pos-modernismo e a hipervalorizacao das micronarrativas (CHAUI, 1998). Desta forma, esta expansao tambem requisita o resgate das ideias de intelectuais, da estatura de Ernest Mandel, como momento necessario para a difusao do pensamento critico e para o reconhecimento das pessoas imprescindiveis. Aqui, aludimos ao muito conhecido poema de Brecht, sobre os homens que lutam toda a vida (2). Mas, em se tratando de Mandel, sua persistencia militante e seu legado de um pensamento denso, critico e de combate a exploracao dos trabalhadores e a desigualdade social, alimentaram a luta da sua geracao e a das geracoes subsequentes de socialistas, numa obra que ultrapassa a si mesma e a seu tempo.

Mandel pode ser considerado como um classico do seculo XX. Portanto, o objetivo deste artigo e o convite ao conhecimento de sua contribuicao e ao dialogo critico com seu legado, sem o qual muitos aspectos do mundo em que vivemos nao teriam explicacao.

Meu contato pessoal com a obra de Mandel nao se deu pela via do marxismo academico, na qual, alias, nosso autor nao se destacou. Deuse pelo caminho da luta social, nos tempos dos primeiros passos militantes na organizacao de esquerda, a Democracia Socialista (ORM-DS) (3), no inicio dos anos 1980. Livros como O Lugar do marxismo na historia e Introducao ao marxismo eram de leitura obrigatoria nas celulas daquela organizacao, que reivindicava o legado de Marx, Lenin, Trotsky e Mandel. A ORM-DS vinculava-se ao Secretariado Unificado da IV Internacional, organizacao que se colocava na perspectiva de construir uma nova internacional comunista, e que tinha entre suas principais liderancas nosso autor em foco.

O ambiente da pos-graduacao da Escola de Servico Social da UFRJ, a partir de 1988, veio a adensar e sofisticar este contato, no dialogo com professores como Carlos Nelson Coutinho, Jose Paulo Netto e Marilda Iamamoto. Por meio deles, tive o privilegio de poder acessar ao melhor do pensamento socialista no mundo e no Brasil: a critica da vulgata marxista dos manuais e do stalinismo; a perspectiva metodologica em Marx; a radicalidade da critica da economia politica do capital, com seu metabolismo incessante, e que hoje se expressa nas formas mais barbaras e fetichistas, reforcadas pela assertiva de Rosa Luxemburgo (ano), Socialismo ou barbarie, autora que influencia decisivamente a obra mandeliana. Alem disto, tambem a necessidade da superacao revolucionaria do capitalismo, nao como algo inatingivel, mas como um trabalho incessante, complexo e cotidiano, que faz historia e potencializa os vetores profundamente humanistas da sua "hemorragia de sentidos", como nos diz Daniel Bensaid (1999). E nesse campo que se insere Ernest Mandel.

Pelos vinculos politicos iniciais, tive, ainda como estudante, a oportunidade de encontrar Mandel nas suas vindas ao Brasil, por pelo menos duas vezes. Estava diante de um homem grande, de semblante serio, mas com um olhar alegre e muito vivo, e que tinha uma ideia fixa naqueles meados dos anos 1980: a experiencia do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil. Nos, os brasileiros, queriamos formacao teorico-politica, conhecer suas analises da conjuntura internacional, dos movimentos do capital, da situacao da esquerda. Ja Mandel queria avidamente informacao sobre o Brasil. Perguntava, perguntava e perguntava sobre a experiencia do PT, suas possibilidades revolucionarias, seus limites.

Mandel, um militante incansavel, de origem judaica, que lutou na resistencia ao nazismo e fugiu duas vezes dos campos do holocausto do Terceiro Reich. Tao jovem--com 18 anos, era ja incorporado a direcao do movimento socialista mundial. Viveu os embates dos tempos de profundo isolamento da esquerda revolucionaria, engendrado pelos anos de ouro do capitalismo, em especial na Europa, e pelo advento do stalinismo, com um movimento operario e popular polarizado entre a social-democracia e a burocracia dos PCs durante um longo tempo. Aquele que viveu e analisou os movimentos de 1968 como expressao de tendencias profundas do capitalismo contemporaneo e como um momento de renovacao e respiracao da esquerda, apesar de seus limites; ele estava ali conosco, empolgado com a novidade brasileira. E nos tambem estavamos embalados pela perspectiva de construir um projeto socialista afastado da social-democracia e do socialismo burocratico, vendo o PT como a via de construcao do partido revolucionario no Brasil, apesar de cientes dos seus dilemas internos (4).

Introduzo, aqui, uma lembranca muito pessoal da "tietagem" apaixonada de uma jovem estudante diante de um icone, orgulhosa em poder levar Mandel para o lugar onde se hospedaria no Rio de Janeiro. Mas o que se quer colocar em evidencia e uma forte caracteristica de Mandel: a sensibilidade para o movimento de massas, a atencao para a luta de classes e para a perspectiva da revolucao, na qual se mostrassem sinais de novas possibilidades historico-sociais. Sempre com um otimismo visceral, claramente de inspiracao trotskista, sobre a vida futura e, naquele momento, sobre o Brasil.

Sabemos hoje que os dilemas internos se agudizaram com a consolidacao do PT. Os desdobramentos mais recentes desta experiencia brasileira mostram tanto a capacidade de o capital impor seu avassalador metabolismo, levando de roldao muitas das melhores intencoes, quanto as escolhas politicas da maioria dos sujeitos que hegemonizou o partido. Assim, abrindo mao de um projeto de transicao e de ruptura com o capital, obrigaram-nos a uma especie de reconstrucao permanente dos nossos instrumentos de luta. Contudo, foi com individuos como Ernest Mandel que aprendemos sobre a tenacidade, sobre a resistencia, sobre a esperanca e sobre o humanismo revolucionario profundo que da sentido a vida (LOWY, 1999).

Em 1989, afastei-me da DS por razoes pessoais; em 1994, comecei tambem a me afastar do PT, desta vez, por razoes politicas. Dentre essas razoes, destaca-se o giro na politica de aliancas eleitorais, naquele momento de novas eleicoes presidenciais apos a grande derrota de 1989, e o advento do neoliberalismo. Mas a formacao teorica e politica (5) que adquiri nessa experiencia marcou-me para toda a vida.

Alem da oportunidade de conhecer Ernest Mandel--bem como outros intelectuais da mesma tradicao teorico-politica, como Michael Lowy, Daniel Bensaid, Eric Toussaint, Francisco Louca, Livio Maitan, Michel Husson, Pedro Montes, e, ainda, alguns brasileiros, a exemplo de Joao Machado e Joao Antonio de Paula ", seus textos de formacao me acompanharam nos mergulhos intelectuais e politicos subsequentes. Assim, encontrei e continuo encontrando, no trabalho e na referencia mandeliana, pontos de apoio fundamentais para a critica ao mundo e ao Brasil.

  1. Alguns destaques do legado de Ernest Mandel

    O primeiro destaque a fazer sobre a obra mandeliana e sua abordagem e incorporacao do metodo em Marx. Pode-se afirmar que o metodo da economia politica orienta o trabalho teorico-politico de Mandel numa perspectiva ortodoxa. Segundo Lukacs (1989, p. 15):

    O marxismo ortodoxo nao significa, pois, uma adesao sem critica aos resultados da pesquisa de Marx, nao significa uma 'fe' numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro 'sagrado'. A ortodoxia em materia de marxismo refere-se, pelo contrario, e exclusivamente ao metodo. (grifo no original). No conjunto da obra mandeliana essa perspectiva do metodo comparece de forma clara: a reconstrucao do concreto como a sintese de multiplas determinacoes. Por exemplo, quando ele se propoe a reconstrucao, como concreto pensado, da logica contemporanea do capital, da totalidade concreta. Identificando, com isso, as formas de valorizacao do capital do pos-guerra e suas tendencias de crise a partir do final dos anos 1960 e incorporando de maneira riquissima dimensoes politico-culturais do capitalismo maduro.

    Como um elemento interno ao metodo, esta presente na obra mandeliana a contradicao, a dimensao faustiana da negacao, ou seja, a luta de classes tencionando o processo de valorizacao do capital. Nesse sentido, e interessante a observacao de Michel Husson (1999) sobre as descobertas de Mandel, que empreendem uma articulacao entre teoria e historia encontrada apenas nos melhores textos da tradicao marxista. Para ele, com a formulacao acerca das ondas longas...

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