A Erradicação do Trabalho Infantil nas Carvoarias de Paragominas

AutorPatricia C. Brasil; Cintia de Medeiros Suelotto
Páginas156-162

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Queira poder dançar. Damázia Gonçalves 1

1. Introdução

A atividade laborativa acompanha o desenvolvimento da espécie humana desde as mais remotas épocas e sob as mais diversas formas de organização. A utilização da mão de obra de crianças e adolescentes, ao longo da história, é prática rotineira em todo o mundo, com destaque negativo para sua incidência em países com desigualdades sociais mais intensas.

Dados da Organização Internacional do Trabalho — OIT apontam que existem hoje cerca de 168 milhões de crianças submetidas ao trabalho infantil, o que corresponde a 11% da totalidade da população infantil mundial2. No Brasil, de acordo com dados compilados do último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2011, existiam cerca de 3,7 milhões de crianças e adolescentes submetidos indevidamente ao trabalho precoce3.

A evolução socioeconômica do Brasil revela o predomínio, por mais de três séculos, de uma política de abandono e marginalização de crianças e adolescentes, em que estes representavam uma alternativa de mão de obra barata para diminuir custos de produção e que o desrespeito à dignidade muitas vezes levava à morte prematura4. A promulgação

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da Constituição de 1988 significou uma verdadeira transformação formal neste paradigma e abriu portas para a posterior adoção da doutrina da proteção integral, consagrada pela Lei n. 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No entanto, oito anos após a aprovação do ECA e dez anos após a promulgação da Constituição, em 1998, respeito, dignidade e proteção eram palavras desconhecidas das crianças de Paragominas.

2. O trabalho infantil nas carvoarias de Paragominas

Paragominas é um município situado no sudoeste do Estado do Pará, Região Norte do Brasil, que em 2014 registrava aproximadamente 105 mil habitantes e cuja base econômica é a extração de madeira5. Sua fundação, em 1965, decorreu de determinação do Governo Federal para a implantação de uma cidade planejada entre as cidades de Belém (PA) e Imperatriz (MA), às margens da recém-construída Rodovia BR 010 (Belém/Brasília), como base do Plano de Integração Nacional (PIN). O objetivo era criar uma cidade polo no projeto de integração da Amazônia com o restante do país, promovendo a migração de pessoas de várias regiões que lá se instalaram para explorar os recursos naturais disponíveis, especialmente a madeira6.

As inúmeras madeireiras existentes até hoje em Paragominas atraíram siderúrgicas da região que lá instalaram suas carvoarias nas décadas de 1970 a 1990. Os refugos de madeira eram vendidos a preços irrisórios às carvoarias, tornando a produção do carvão vegetal mais barata. O carvão produzido nas carvoarias instaladas na cidade abastecia os fornos das siderúrgicas. Além do baixo custo do refugo da madeira utilizado na fabricação do carvão, a mão de obra barata também explicava o crescente interesse das siderúrgicas pela cidade.

Até 1998, existiam cerca de 200 carvoarias atuando no entorno da cidade, que à época registra-va 75 mil habitantes. Funcionavam, ao todo, mais de mil fornos de barro no município. Estes fornos ficavam escondidos sob a terra e camuflados com pó de madeira e areia para facilitar a torrefação do carvão, eram chamados de caieiras. Quando acesas, as caieiras expiravam uma fumaça escura que invadia o céu da cidade, grudava na pele dos trabalhadores, invadia os pulmões, irritava a garganta e prejudicava a visão.

O trabalho infantil ligado à atividade carvoeira em Paragominas se apresentava na forma de trabalho informal doméstico e também como atividade arregimentada. No primeiro caso, tratava-se de produção familiar, em pequena escala, realizada no quintal das casas e cujo produto era vendido nas feiras. Já na outra forma, o trabalho era realizado nas carvoarias pertencentes, em grande número, às siderúrgicas que, através de intermediários, arregimentavam trabalhadores adultos, adolescentes e crianças para ensacar, carregar os sacos e controlar os fornos de carvão. Muitas vezes, também, as crianças eram levadas pelos próprios pais para as carvoarias das siderúrgicas, seja para ajudarem na tarefa, seja porque os pais não tinham com quem deixá-las.

Nas carvoarias não familiares, o trabalho de crianças e adolescentes era recompensado, na maioria das vezes, com um prato de comida, e, em alguns casos raros, eles chegavam a receber o equivalente a meio salário-mínimo, sem qualquer direito trabalhista assegurado.

Fatalmente, nesta dinâmica cotidiana, os menores carvoeiros acabavam caindo nos buracos, sofrendo traumas físicos e psicológicos que acompanham suas vidas para sempre. Eram os chamados “meninos da fumaça”. Somente no ano de 1997, foram registradas mais de 20 crianças mutiladas ao se acidentarem nos fornos de carvão em Paragominas7.

Em situação de extrema pobreza, os pequenos carvoeiros impunham grande resistência à abor-

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dagem da fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho, uma vez que aquele era, na maioria das vezes, o único meio de sobrevivência para eles.

A situação vivida pelas crianças e pelos adolescentes de Paragominas à época, representou grave violação à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e às Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil.

De 1998 a 2001, uma série de reportagens publicadas em todo o país denunciou a realidade das crianças em Paragominas e acabou mobilizando o poder público, os órgãos de fiscalização, os organismos internacionais e a iniciativa privada em prol da erradicação do trabalho infantil na cidade8.

3. Trabalho precoce x proteção integral

O reconhecimento dos direitos da infância e da condição da criança como sujeito de direitos é fato recente na história brasileira e em outros países do mundo. [...] No século XX, o discurso predominante sobre a infância atribuiu-lhe o estatuto de sujeito de direitos, imagem construída com base na elaboração de dispositivos legais e documentos internacionais, entre os quais: a Declaração de Genebra (1923), a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção dos Direitos da Criança (1989)9.

A Constituição de 1988, em aderência à tendência legislativa internacional, reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direitos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.10

Também se estabeleceu o marco constitucional para o ingresso na atividade profissional, proibindo-se o trabalho para menores de 14 anos. Em 1998, contemporaneamente às primeiras denúncias sobre os “meninos da fumaça”, o dispositivo constitucional foi alterado pela Emenda Constitucional n. 20, que elevou a idade mínima para o...

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