O Erro como Eximente do Nexo Subjetivo

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas455-481

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18.1. Prolegômenos

A questão do erro na condição de eximente da culpabilidade constitui assunto tormentoso e complexo, uma vez que grassa renhida e acesa problemática a seu respeito, a ponto de Binding, lembrado por Odin Americano, dizer que no Direito Penal, não se sabe se por influência da denominação do tema, campeia muito erro1033.

Esperamos, em face da nossa postura diante das teorias da ação típica, não incorrer na referida censura.

Ignorância é a falta de conhecimento. Erro é o conhecimento falso e equivocado. A propósito, Paulo José da Costa Júnior ressalta, louvado em Asúa, que ignorar é não saber; errar é saber mal. A ignorância configura um estado negativo, que é a ausência total de qualquer conhecimento. O erro, pelo contrário, é um estado positivo: o agente conhece, mas de forma errônea. Erro é a falsa noção1034.

Em termos penais, as duas situações se equiparam sob a nomenclatura genérica de erro para a isenção da culpabilidade de agente de fato penalmente incriminado pela deficiência do nexo subjetivo, eis que o erro turva a representação real do episódio e impede o agente de alcançar o conhecimento da ilicitude (v. n. 15.1).

Para a produção desse efeito, porém, é preciso que o erro se caracterize como essencial e sobressaia plenamente justificável pelas circunstâncias.

Existente erro essencial, justificando-o as circunstâncias, não há crime por carência de culpabilidade do agente.

Não se confundem, entretanto, e nesse sentido é oportuna a observação de Anibal Bruno, ignorância e erro em sentido estrito com a dúvida, posto que esta não exclui a

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culpabilidade. Na dúvida há mais de uma representação, mas uma delas é conforme a realidade, e se o indivíduo atua, atua admitindo a possibilidade de o seu comportamento ser contrário ao dever1035, gravitando nos domínios do dolo eventual (v. n. 15.2), pois, como remarcou De Marsico, chi arrischia vuole.

18.2. Erro essencial

Como expusemos anteriormente, dolo não é somente vontade (simples elemento típico - v. n. 3.1), mas intenção com conteúdo penalmente relevante (v. n. 3.1), ou seja, com representação e conhecimento da antijuridicidade (v. n. 15.1). Na culpa também há representação e esta emerge da possibilidade de previsão do resultado, permitindo ao agente obter na esfera psíquica a consciência da inadequabilidade da sua conduta

(v. n. 16.4).

Ocorre o erro essencial quando o sujeito ativo, por desconhecimento ou falsa impressão da realidade, estrutura o seu psiquismo com deficiente ou deformada representação dos fatos, circunstância que o impede de haurir o conhecimento da antijuridicidade da ação empreendida e obsta que se aperceba da nocividade ou do conteúdo antissocial do seu comportamento. No erro essencial, destarte, a representação obnubilada do episódio ofusca a percepção e a consciência da ilicitude pelo sujeito ativo e impede que o dolo se perfaça com a inteireza e a plenitude de seus componentes. No caso, existe vontade dirigida ao cumprimento de certo objetivo, sem que o infrator da lei se dê conta de sua conotação lesiva e ilícita.

O erro, no entanto, deve ser essencial. Se uma deficiente ou errônea percepção fática não bloquear ao sujeito ativo a cognição antijurídica, o erro é acidental e, assim, não será eximente da culpabilidade (v. n. 18.6).

Outrossim, insta que o erro impediente do conhecimento da antijuridicidade seja plenamente justificável pelas circunstâncias, sem o que derivará - em princípio - de culpa e deverá ser punido a esse título se, para a espécie, houver expressa previsão legal para a conduta culposa (v. n. 16.5).

O erro essencial, que desintegra o crime pela carência de culpabilidade, pode apresentar-se sob duas espécies, juridicamente batizadas erro de tipo e erro de proibição.

O diploma penal afastou-se, nesse passo, do sistema anterior, que sufragava a velha e ultrapassada dicotomia entre o erro incidente sobre o fato e o relativo ao direito e que tornava escusável o primeiro em determinadas situações e inescusável o último em qualquer hipótese. A legislação atual preferiu abandonar o que antes se supunha um fenômeno simples e que só tinha por objeto ou o fato ou a lei1036para interligar a norma e o episódio sob o prisma do conhecimento da contrariedade entre ambos, criando os erros de tipo e proibição, a seguir examinados com sua possível manifestação injustificada.

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18.3. Erro de tipo

Verifica-se o chamado erro de tipo (Tatbestandsirrtum) quando o agente não se apercebe, por desconhecimento ou distorcida impressão da realidade, de aspecto essencial à configuração típica do delito, id est, de componente que participa do conjunto dos elementos descritivos do tipo legal (art. 20, CP). Vale dizer: a insciência relativa a certa particularidade que integra a definição do crime na lei é que descortina o erro essencial de tipo, por não se dar conta o sujeito ativo - escreve Alcides Munhoz Neto - de estar realizando, em concreto, a conduta abstratamente descrita na lei1037. É, em suma, o erro incidente sobre os elementos que participam da estrutura típica1038e que recai sobre característica da própria figura delitiva.

Tivesse o sujeito ativo noção do componente alojado no tipo, facilmente alcançaria o conhecimento da antijuridicidade. Desconhecendo a particularidade típica, ele não reúne condições para o completo discernimento e não chega a inteirar-se da consciência da lesividade do ato. Isso não significa que o agente deva ser letrado em ciências jurídicas e conhecer o que seja tipo ou tipicidade. A denominação erro de tipo unicamente serve para designar, juridicamente, a situação psíquica do sujeito ativo diante de determinado acontecimento.

Mévio, por exemplo, recebe de um amigo um embrulho em papel opaco e, sem qualquer razão para desconfiar do companheiro de infância ou do conteúdo do invólucro, atende seu pedido para levar o pacote a determinada cidade, para onde se encaminha, com o fito de entregá-lo, em certo endereço, a terceiro. Sucede que o embrulho contém cocaína, mas Mévio supõe tratar-se, por informação do amigo, de medicamento. Mévio é surpreendido, porém, por agentes policiais, quando transportava o entorpecente. É irrefragável que se Mévio soubesse ser droga a substância que carregava, ele se aperceberia da ilicitude da conduta. Mas, por desconhecer a natureza da substância e trazê-la consigo de boa-fé, é inconcusso que Mévio não alcançou o conhecimento da antijuridicidade da ação, eis que ignorava ser droga aquilo que portava, circunstância guindada à categoria de constitutiva do modelo típico inscrito na Lei n. 11.343/2006. Há erro de tipo, afastando o crime com relação a Mévio por falta de culpabilidade.

Pelo mesmo motivo, quem cultiva em sua casa um pé de maconha, supondo ser planta medicinal ou ornamental, não comete crime1039.

Caio é professor de Direito. Diariamente carrega consigo, para a ministração das aulas, o Código Penal. Certo dia, esquece o código em casa. Decide não retornar, já meio caminho percorrido até a faculdade, para buscá-lo. Leciona sem o diploma legal em mãos. Ao término da aula, alunos se acercam do professor, fazendo perguntas e solicitando esclarecimentos. Sobre a mesa catedrática alguns códigos penais são depositados. Ao despedir-se dos alunos, após as respostas instadas, Caio, habituado com o

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transporte de um código depois das aulas, apanha um daqueles deixados sobre a mesa, semelhante ao seu, na suposição de que é o próprio. O código, contudo, pertence a um dos alunos. Apoderou-se o professor de coisa alheia móvel, sem se aperceber dessa qualidade inerente ao objeto, insculpida no art. 155 do CP como condição para a configuração jurídica do furto. Conclusão: erro de tipo, causa eximente da culpabilidade, que não existiria, pelo conhecimento da ilicitude, se Caio tivesse ciência que o código não lhe pertencia.

Caçador embrenha-se em mata virgem e fechada, distante de qualquer centro povoado, com o propósito de abater animais silvestres. Pelas tantas, vislumbra vulto movimentando-se entre as ramagens de encorpada vegetação. Supondo ser caça de grande porte, efetua o disparo. Atinge o alvo e constata, para sua surpresa, que não abateu um animal, como pensava, mas uma pessoa que, por mera casualidade, ali passava. Crível é que o caçador, se soubesse tratar-se de pessoa o alvo, tomaria conhecimento da antijuridicidade, pois teria a consciência de que matava alguém, circunstância constitutiva do tipo incrustada no art. 121 do CP. Entretanto, ignorando a qualidade do alvo e supondo ser um animal, o caçador não teria perpetrado qualquer crime, por falta de culpabilidade, ex vi do erro de tipo no qual incorreu.

Fulano mantém relação sexual com Beltrana, que conta apenas 13 anos de idade (art. 217-A, CP). Sucede que a moça, com compleição e desenvolvimento físicos avantajados, aparenta ter uns 20 anos, idade que Fulano supôs que ela tivesse. Há erro de tipo a elidir a responsabilidade de Fulano pelo estupro objetivamente praticado1040.

Não comete o crime entalhado no art. 243 do ECA, com a redação introduzida pela Lei n. 13.106, de 17 de março de 2015 (antiga contravenção penal descrita no art. 63, n. I, da respectiva Lei), por força do erro de tipo, quem vende bebida alcoólica a adolescente, pessoa menor de 18 anos, supondo que ele possui, pela aparência, idade adulta1041.

Não pratica furto, pela mesma razão, aquele que supunha serem suas as terras onde acabou por extrair certa quantidade de milho1042.

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